02 Outubro 2020
"O que a destituição de um poderoso cardeal diz sobre Francisco e a Cúria?", pergunta o historiador italiano Massimo Faggioli, professor da Villanova University, nos EUA, em artigo publicado por Commonweal, 01-10-2020. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Apenas uma vez na história moderna um cardeal adentrou a sala para uma audiência com o papa e saiu sem o barrete vermelho. Isso aconteceu em setembro de 1927, quando o Papa Pio XI retirou de Louis Billot, jesuíta, seu título cardinalício após este criticar a condenação papal feita à Ação Francesa. Em 24 de setembro deste ano, o Papa Francisco fez algo inédito também, destituindo um cardeal prefeito de uma congregação curial, Giovanni Angelo Becciu.
A notícia foi publicada num anúncio noturno altamente incomum pela Sala de Imprensa da Santa Sé e afirmou que Francisco aceitara a renúncia de Becciu “ao cargo de Prefeito da Congregação para as Causas dos Santos e aos direitos ligados ao cardinalato”. Este fato tem ligação com a visita a ser feita pelos inspetores da agência antilavagem de dinheiro do Conselho Europeu e com a publicação iminente de um relatório investigativo em torno das finanças vaticanas produzido pela revista italiana L’Espresso. Suspeita-se que Becciu tenha favorecido financeiramente familiares e amigos e, embora o prelado não esteja sob investigação formal, Francisco nomeou um procurador especial, em 28 de setembro, para analisar a matéria. No dia posterior à remoção, Becciu convocou uma coletiva de imprensa para defender-se e sugerir que, dadas as guerras facciosas que tipificam a Cúria, tal notícia poderia, de alguma forma, ser apontada a Francisco também.
Ainda que a redação do anúncio relativo à demissão de Becciu seja plena de sentido, ela não deixou claro como fica a questão do status geral do religioso. Se permanecer sendo cardeal, Becciu ainda reterá os direitos e deveres de todos os cardeais; ele perde estes direitos e deveres somente se perder o barrete vermelho. Theodore McCarrick renunciou do Colégio Cardinalício, em 28-07-2018; além disso, Francisco o suspendeu do exercício do ministério público e orientou-o a observar uma vida de oração e penitência por causa das graves acusações de abuso sexual feitas contra ele.
O cardeal escocês Keith O’Brien, o qual diante do conclave de 2013 admitiu uma conduta serial sexual imprópria, viveu sob restrições e condições semelhantes até sua morte, em 2018. No entanto, manteve o título de cardeal.
No caso presente, Becciu não foi suspenso do ministério público nem designado a uma vida de oração e penitência. (Em entrevistas após ser removido, Becciu pareceu queixar-se de que esta sua punição soa semelhante àquela reservada aos “pedófilos”.) Além das questões sobre o significado canônico das sanções contra o prelado, também não está claro qual o futuro de Becciu. Com 72 anos, para os padrões vaticanos ele é jovem ainda. É uma figura associada à instituição, não um guerreiro cultural e, portanto, provavelmente não será mais um Viganò ou Burke. Porém, difícil é imaginá-lo aposentando-se, retirando-se de cena em silêncio, a menos que o procurador especial de fato encontre evidências de crimes graves.
O caso Becciu equivale a um terremoto para o Vaticano e à Igreja Católica na Itália. Na última década, mesmo antes da eleição de Francisco, Becciu fora um dos homens mais poderosos do Vaticano. Ele foi núncio apostólico em Cuba, de 2009 a 2011, e em 2013 Bento XVI o nomeou para substituir o secretário de Estado, um dos cargos mais influentes no Vaticano, com um portfólio de deveres eclesiásticos e políticos. Becciu mantém relações de longa data com líderes políticos italianos e membros do establishment. Em 2018, Francisco o fez cardeal e prefeito da Congregação para as Causas dos Santos.
Diplomático por natureza e formação, Becciu encarna o estilo discreto da velha escola diplomática. Ele nunca demonstrou a extravagância de um Cardeal Bertone (famoso por seu apartamento luxuoso no Vaticano) nem a complacência de, digamos, um Cardeal Sodano (o qual vergonhosamente se calou diante de ditadores como Augusto Pinochet e predadores sexuais como Marcial Maciel).
Becciu, no entanto, tem membros familiares com interesses empresariais significativos e, pelo que parece, os favoreceu. (Vale considerar uma expressão italiana aqui: “tengo famiglia”, significando que ter uma família pode ajudar a encobrir todas as formas de pecado.)
Becciu pode também ter usado pessoalmente o dinheiro do Vaticano para negócios imobiliários em Londres e alhures. Embora Francisco já tenha destituído autoridades vaticanas (o Cardeal Müller, o Cardeal Burke, Dom Georg Gaenswein, o editor do Osservatore Romano, os porta-vozes da Sala de Imprensa da Santa Sé, etc.), a destituição de Becciu e a imposição de sanções contra seus deveres de cardeal são inéditos – não só neste pontificado, mas na história moderna do Vaticano. Como tal, envia uma mensagem a outras importantes figuras curiais, onde há pouca transparência e onde, com uma regularidade alarmante, veem-se demissões e detenções ligadas às finanças vaticanas.
Essa demissão de Becciu também levanta uma questão geral quanto aonde nos encontramos com este pontificado, quase oito anos desde que começou.
Além dos homens (e algumas mulheres) que têm feito um trabalho excelente nos departamentos de informação do Vaticano, aqueles da Roma “papal” como um todo e suas conexões jesuítas em nível mundial, quem são as figuras de confiança de Francisco? Temos visto um número mínimo de rotatividade na coorte dos cardeais nomeados por Bento, talvez por causa da “residência comum” do papa atual e do anterior. Mas isso é também um reflexo da distância que Francisco sempre manteve entre ele próprio e a Cúria.
Das 88 nomeações cardinalícias que Francisco fez desde 2014, apenas um punhado delas foi para postos curiais e, na maioria, para congregações não centrais. Quase todos os cardeais nomeados por Francisco vieram de – e devem permanecer em – cantos distantes da Igreja ao redor do mundo, para sinalizar a nova dimensão global do catolicismo. Os cardeais que, no início do pontificado, apoiaram Francisco (os cardeais Kasper e Marx, por exemplo) não têm estado visíveis nem ativos como certa vez o foram. Já faz quase dois anos desde que o Conselho de Cardeais reduziu-se a seis membros, sem haver renovações ou novas nomeações. O projeto mais importante deste conselho – a constituição da reforma da Cúria Romana – começou em 2014, mas este trabalho atrasou repetidas vezes e não se sabe exatamente o que aconteceu com ele.
E mais: no ano passado, houve uma crescente desconexão entre a mensagem emitida por Francisco e aquela enviada pelas instituições vaticanas que, para ele, trabalham desde 2013. Os documentos da Congregação para a Doutrina da Fé e da Congregação para o Culto Divino sobre a liturgia, e o documento da Congregação para o Clero sobre a vida paroquial, vão claramente na contramão da eclesiologia do papa.
Há talvez três exceções para isso que temos dito: a nomeação, em dezembro de 2019, do Cardeal Tagle, de Manila, para a Congregação para a Evangelização; a nomeação, em outubro de 2019, do jesuíta Michael Czerny como cardeal ao Dicastério para o Serviço do Desenvolvimento Humano Integral; e o Cardeal Kevin Farrell como prefeito do Dicastério para os Leigos, a Família e a Vida. Mas se a política na Cúria é um esporte de contato que deve ser também jogado com uma delicadeza implacável, claro não está o que estas nomeações deverão realizar.
Outras mudanças podem estar por vir ainda, havendo pendente uma dúzia de novas nomeações a cargos importantes que Francisco pode fazer nos próximos meses. A nomeação neste ano, do bispo maltês Dom Mario Grech como secretário para o Sínodo dos Bispos (peça importante na visão que Francisco tem de uma Igreja sinodal), pode ser um sinal do que está por vir.
Além disso, o anúncio de que a Secretaria de Estado não mais terá um orçamento separado e independente da autoridade orçamentária central vaticana sinaliza uma atenção à reforma curial, o que constitui um passo em direção à transparência e à responsabilização necessárias para que se inclua o Vaticano na “lista limpa” europeia dos países economicamente confiáveis.
Em junho, o Vaticano implementou novos procedimentos para a concessão de contratos públicos, o que pode também ajudar na transformação de uma cultura de negócios feitos pela Santa Sé e pela Cidade do Vaticano. E, em 1º de outubro, pela primeira vez, desde 2016, o Vaticano divulgou um orçamento detalhado – um dos frutos da nomeação, feita por Francisco em janeiro de 2020, do padre jesuíta Juan Antonio Guerrero Alves para prefeito da Secretaria para a Economia, do Vaticano. Mas, acima de tudo, Francisco parece menos focado na busca de reformas institucionais, e mais, isto sim, em enfatizar a sinodalidade e a conversão espiritual.
Enquanto isso, desde o início do ano – ou, para dizê-lo com mais precisão, desde a decisão de Francisco em não aceitar certas propostas de reforma institucional aprovadas no Sínodo para a Amazônia –, a dinâmica política do Vaticano parece ter mudado de rumo. Críticos ferrenhos como os cardeais Burke, Müller e Pell aquietaram-se com suas queixas teológicas sobre Francisco. Pell voltou a Roma após a queda de Becciu, seu rival no Vaticano; resta saber se voltou apenas para esvaziar o apartamento onde morava, ou se é para desfrutar de uma reabilitação eclesiástica na sequência da anulação de sua condenação, na Austrália, por abuso sexual. Muito dependerá do quão correto Pell conseguirá provar ter sido ele nos casos de corrupção curial e no estado das finanças vaticanas, bem como do que resta a ser revelado pela Comissão Real australiana a respeito de seu papel na forma como a Igreja, no seu país de origem, lidou com a crise de abuso sexual clerical.
Portanto, não devemos ver isoladamente a queda de Becciu, e sim no contexto das desconexões entre Francisco e a Cúria, e os efeitos dessa saída na missão papal de chegar às periferias, missão a que ele frequentemente faz referência. O presente caso reflete um problema mais amplo que envolve um equilíbrio entre a reforma espiritual e uma boa governança; tem a ver com a separação infeliz das dimensões institucional e carismática da Igreja (como exemplificado de modo tão trágico pela crise de abusos sexuais).
Na margem direita do Rio Tibre, em Roma, está o local onde Pedro foi enterrado, o que simboliza a Igreja sob a liderança institucional de Pedro e sucessores (a Basílica de São Pedro), e na margem esquerda há a igreja carismática de Paulo (a Basílica de São Paulo Fora dos Muros). Ser papa, pontifex, tem a ver também com a reconstrução de pontes entre estas duas margens.
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Cardeal Becciu, e além. Artigo de Massimo Faggioli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU