26 Setembro 2020
"Há uma rixa muito perigosa (na Cúria? Entre movimentos? Entre diplomatas?) na qual todos continuarão apresentando ao papa acusações carregadas de balas de canhão, apostando que, como em uma roleta russa, o decisionismo bergogliano dará corda a atos de justiça precipitada", escreve Alberto Melloni, historiador italiano, professor da Universidade de Modena-Reggio Emilia e diretor da Fundação de Ciências Religiosas João XXIII, de Bolonha, em artigo publicado por Editoriale Domani, 25-09-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Nunca. Nunca um prefeito teve que renunciar ao seu próprio dicastério como ocorreu nessa quinta-feira, 24, quando Angelo Becciu devolveu ao papa a liderança da Congregação para as Causas dos Santos e (como diz um errôneo comunicado vaticano) os “direitos” da sua púrpura.
Ato amadurecido pelos caminhos curtos, considerado como inevitável, às vésperas da publicação de documentos relativos à gestão do dinheiro que as habituais “toupeiras” vazaram à revista L’Espresso: a partir dele viria à tona que, após uma série de transações imobiliárias e financeiras em Angola e em Londres, Becciu teria desviado fundos e favores aos seus parentes.
Esse ato, porém, como eu dizia, nunca teve precedentes. Porque a renúncia ao cardinalato de Louis Billot, que devolveu o barrete ao papa no término de uma briga furiosa, tinha outra origem: ele havia criticado a condenação papal do movimento reacionário da Action Française, e a sua indignação em entregar esse sinal da dignidade cardinalícia e a do papa em ter que fazer com que ele entregasse são objetos de diversas divisões.
Em junho de 2018, quando Francisco removeu Theodore McCarrick – aquele que, como arcebispo de Washington, disse que dar a comunhão ao candidato democrático John Kerry “era um problema” – tanto a púrpura quanto a dignidade episcopal, os motivos eram outros: estava-se na presença de um molestador em série de seminaristas neocatecumenais, cujas implicações muitos já conheciam há anos.
Becciu não. Ele nunca foi o defensor de correntes reacionárias: no máximo, ao abrir a porta de casa a Giancarlo Giorgetti, tentou encontrar a “parte boa” do soberanismo salviniana, como se ela existisse.
Ele nunca foi um homem de vícios: no máximo, praticou aquela ascese do poder que é um pouco típica do ofício do substituto – o papel desempenhado antes dele por Montini, Silvestrini, Filoni –, isto é, o homem que regula grande parte do acesso ao papa, das relações com o governo e dos assuntos políticos em uma relação de concorrência estrutural com o secretário de Estado.
Em vez disso, veio à tona há quase dois anos que aquele escritório, que investia alguns ativos vaticanos, havia embarcado em manobras imprudentes pelo menos na escolha como parceiros de financiadores sobre os quais o próprio Becciu havia sido alertado.
Um edifício em Londres (que, nesse meio tempo, havia aumentado de valor) havia sido objeto de investigações passadas à imprensa, e uma série de empregados foram postos para a rua. Uma limpeza rápida – hoje esse é o costume – cujas consequências cairiam como avalanche: no dia 19 de outubro, Domenico Giani, comandante da Gendarmeria vaticana e fiador do sistema de proteção do papa, foi forçado a renunciar, apenas por ter espalhado nas portas vaticanas as fotos dos empregados demitidos, para que não pudessem retornar sorrateiramente para os seus escritórios.
Alguns dos demitidos, ouvidos por um sistema investigativo muito peculiar, começaram a contar sobre usos ainda mais impróprios daqueles fundos, que teriam beneficiado os familiares do substituto, que é titular de uma discricionariedade plena.
Pode ser que a acusação seja circunstanciada, e que, se a lógica justicialista que dotou “aquele pouco de terra que basta para conter a alma” da Santa Sé em um pequeno estado com pequenos tribunais, pequenos investigadores, pequenos processos, pequenas toupeiras, quiser um processo, o processo vai condenar Becciu. Embora seja difícil fazer coincidir isso com a fama e a história de um homem que poderia ter obtido qualquer coisa de qualquer pessoa sem precisar se expor em operações bizarras e sobre as quais ele também devia saber que paira a célebre regra do cardeal Tardini: “Nada permanece em segredo para sempre”.
No máximo, retorna à boca o gosto amargo do caso Salonia: frade capuchinho, psicoterapeuta, que devia se tornar auxiliar do arcebispo de Palermo, Corrado Lorefice. A acusação de ter abusado de uma religiosa foi lançada contra Giovanni Salonia: uma acusação que, depois, se revelou totalmente infundada, mas que chegara sem verificações em tempos tão rápidos aos ouvidos do papa a ponto de se pensar que havia sido um dos irmãos de Becciu que o usou como canal de calúnias sicilianas.
As investigações não dirão o que há de verdadeiro e o que há de falso nas acusações contra Becciu, de quem veremos as fotos com óculos escuros, para dar um look sombrio a esse diplomata focolarino menos esperto do que o esperado.
Mas o fato de o Mons. Peña Parra – o sucessor de Becciu – também ter tropeçado no pastiche do imóvel de Londres, porém, deve deixar claro que a questão não é um jogo de polícia e ladrão de batina e mozeta, auxiliados por um jornalismo inclinado a publicar dossiês que têm curadores, mandantes e fins específicos.
É uma rixa muito perigosa (na Cúria? Entre movimentos? Entre diplomatas?) na qual todos continuarão apresentando ao papa acusações carregadas de balas de canhão, apostando que, como em uma roleta russa, o decisionismo bergogliano dará corda a atos de justiça precipitada.
Os impactos sobre o papa e sobre o papado são perigosos e não dizem respeito à abusada categoria dos “inimigos” do papa. O fato de o Papa Francisco ter inimigos é algo evidente. O fato de que, entre estes, também figurem personagens como Mike Pompeo, que, como demonstra a preparação e a agenda da sua visita a Roma, reivindica o direito de escolher o pedaço de Igreja para louvar, o pedaço de Igreja para bater e o pedaço de Igreja para chantagear, é menos evidente, mas, no fundo, não é decisivo. Porque a força de Francisco não está em gerir tudo isso diplomaticamente – o cardeal Parolin se preocupa com isso: mas repousa na sua fisionomia evangélica pessoal e profunda. Ela não impede que o papa cometa erros de governo, passos em falso e grosserias: mas o torna invulnerável aos flechas hostis diretas.
Portanto, quem quiser atingir Francisco ou enfraquecê-lo só tem uma arma indireta: fazer com que ele pareça um puro, piedoso e espiritualíssimo papa inepto. Capaz de despedir, de demitir qualquer pessoa, mas certificado pela repetição de tais sanções como impotente diante de vilezas morais que ele não é capaz de controlar: e das quais ele é absolvido chamando-lhe hipocritamente de santo, de severo, de furioso inconclusivo. E, como as mesquinharias da Igreja de Roma, especialmente em Roma, são inumeráveis, a arma indireta torna-se inesgotável.
O papa deveria ser defendido desse tipo de diminuição da comunhão dos bispos em primeiro lugar; e, em segundo lugar, de uma Cúria em que, no entanto, tendo sido ele o primeiro a explodir os mecanismos institucionais, desclassificados como costumes “de corte”, tudo se contorce, e só quem lhe assinala distorções a serem remediadas cumpre realmente o seu dever de ajudá-lo, de protegê-lo, e são poucos.
Portanto, ele se encontra exposto a uma pressão que se tornará muito forte quando Bento XVI vier a faltar, pedindo, mais uma vez em nome dos problemas estruturais não resolvidos, uma renúncia que transformaria a liberdade de renunciar de todo pastor em uma lei não escrita para a Igreja de Roma. Preparando a continuação de um papado não italiano.
“Vimos as estrelas caírem”: foi o que disse o cardeal Pellegrino na saída do conclave de 1978. A referência era ao confronto explosivo entre os cardeais Benelli e Pignedoli, que havia encerrado (definitivamente) o debate sobre um papado italiano.
Sob os olhares incrédulos dos purpurados, de fato, havia se consumado um duelo envolvendo golpes de alusões e vulgaridades, que dera a todos a sensação de que os cardeais da península haviam perdido o direito ao trono de Pedro de que gozaram ininterruptamente. Uma convicção nada diferente havia perpassado o conclave de 2013: sobre o qual – o papa renunciante era alemão, o seu prefeito da Doutrina da Fé, alemão, e algumas das figuras mais altas da Cúria eram francesas e das Américas – havia a convicção, porém, de que a desordem sistêmica que havia marcado os últimos três anos de Bento XVI era um problema “italiano” e que, excluindo “os italianos” da sucessão – isto é, tomando um papa do hemisfério Sul e com uma fisionomia espiritual fora do comum –, se remediariam os problemas do governo.
Não era verdade. Os problemas não eram italianos, mas estruturais: e, sob o papado de Francisco, acalmados por pouco tempo, eles se reapresentaram, encontrando algumas mentes muito sagazes que entenderam como usá-los para garantir um amanhã que não os enfrente.
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A rixa interna no Vaticano e os bastidores do caso Becciu. Artigo de Alberto Melloni - Instituto Humanitas Unisinos - IHU