20 Julho 2020
O que significa experimentar a fé por meio de práticas digitais? Que mudanças e transformações estão em jogo naquilo que chamamos de fé? Certamente, essas questões incidem em aspectos teológicos, eclesiológicos e pastorais da relação entre a Igreja e a sociedade contemporânea, marcada tão fortemente por um processo de digitalização e conectivização.
A opinião é de Moisés Sbardelotto, jornalista, doutor em Ciências da Comunicação e professor colaborador da Universidade do Vale do Rio dos Sinos - Unisinos. Seu livro mais recente é "Comunicar a fé: por quê? Para quê? Com quem?" (Ed. Vozes, 2020).
“Antes de ser templo, a Igreja foi casa. Jesus saiu do templo e entrou na casa. E aí começou a experiência cristã.” Esse movimento, descrito pelo cardeal português José Tolentino Mendonça em um recente evento sobre a espiritualidade cristã em tempo de isolamento social, precisou ser reavivado forçosamente pela Igreja hoje, devido à pandemia.
Atualmente, contudo, não habitamos mais o mesmo modelo de casa dos primeiros séculos. Nossas casas são espaços aumentados, expandidos, conectados, graças à evolução tecnológica. Em tempos de isolamento, essas verdadeiras “Igrejas domésticas” se conectaram entre si, unindo pessoas, famílias, grupos e comunidades em encontros de oração e formação pela internet.
O fenômeno digital escancarou as casas ao mundo, fazendo com que as pessoas fossem convocadas ao “céu aberto” da comunicação, inclusive para viver uma nova eclesialidade (ekklesía, do grego, “chamar para fora”), ressignificada pelo fechamento dos templos e pela conectividade das redes. Essa conjuntura problematizou não só a compreensão da fé, mas também a sua própria experiência.
Esse processo, contudo, como toda novidade, tem os seus riscos, especialmente o de ser interpretado como uma mera “virtualização da fé”. Segundo esse ponto de vista, os fiéis, impossibilitados de participar da experiência religiosa “real”, entre pessoas de carne e osso, recorreriam a uma fé “virtual”, com graves perdas, principalmente a do “contato” humano. Com isso, a encarnação, tão central para o cristianismo, poderia perder o seu sentido mais profundo, pois máquinas substituiriam as relações humanas. O medo é de que as pessoas abandonem o mundo “real” da fé e, após a pandemia, não queiram mais voltar aos templos.
Mas será mesmo? O que significa experimentar a fé por meio de práticas digitais? Que mudanças e transformações estão em jogo naquilo que chamamos de fé? Certamente, essas questões incidem em aspectos teológicos, eclesiológicos e pastorais da relação entre a Igreja e a sociedade contemporânea, marcada tão fortemente por um processo de digitalização e conectivização.
Para avançar nessa reflexão, é importante resgatar o sentido comunicacional da própria fé. Isso ajuda a problematizar essa concepção “virtualizante” do ambiente digital. E também nos permite aprofundar alguns conceitos centrais para a experiência da fé cristã nesses novos contextos de relação: o corpo e a comunicação; a presença e a comunhão; a participação e a comunidade.
Para encontrar pistas que ajudem a jogar algumas luzes sobre a experiência de fé, podemos recorrer ao “documento esquecido” de Francisco, a sua primeira encíclica, intitulada justamente “A luz da fé” (Lumen fidei). Na realidade, trata-se de um texto inacabado de Bento XVI, que não conseguiu finalizá-lo antes de sua renúncia. Francisco, então, retomou esse material, colocou o seu toque final e publicou-o.
O papa apresenta a fé, na leitura cristã, como um movimento tríplice. Primeiramente, ela é um encontro: “A fé nasce no encontro com o Deus vivo” (LF 4).
Mas a fé só é possível porque é um encontro com um Deus que sai ao nosso encontro, “que nos chama e revela o seu amor: um amor que nos precede” (LF 4). Segundo Francisco, “a fé cristã [...] é fé num Deus que se fez tão próximo que entrou na nossa história [...] no Filho de Deus feito homem em Jesus de Nazaré” (LF 18).
Por sua vez, esse encontro com Deus nos leva a sair ao encontro dos outros. A fé “nos leva a ultrapassar o nosso ‘eu’ isolado, abrindo-o à amplitude da comunhão” (LF 4). A fé “abre o indivíduo cristão a todas as pessoas” e, portanto, não é um “fato privado, uma concepção individualista, uma opinião subjetiva, mas nasce de uma escuta e destina-se a ser pronunciada e a tornar-se anúncio” (LF 22). Por isso, “a fé tem uma forma necessariamente eclesial”, que parte “do corpo de Cristo como comunhão concreta dos fiéis”.
Nesse sentido, a experiência da fé só é possível pela comunicação: é a relação entre o sagrado, que sai ao encontro do ser humano; este que o escuta e o experimenta; e um “outro”, a quem se narra e se anuncia essa experiência. A “palavra escutada” se converte, então, em “palavra anunciada”. A comunicação divino-humana gera comunhão, que constrói comunidade. Comunicação, comunhão e comunidade formam um “movimento” de experiência da fé cristã.
Essa experiência, é claro, muda de acordo com os tempos, os lugares e as pessoas, segundo as categorias de Santo Inácio de Loyola. A experiência de fé no século XXI não é a mesma experiência feita na Idade Média, pois a concepção sobre o divino e o humano evoluiu nesse intervalo de tempo. A experiência de fé no Brasil é diferente da experiência em outros países, dadas as diferenças socioculturais. Além disso, cada pessoa experimenta a fé de acordo com a sua identidade singular e as especificidades das relações pessoais e sociais que vai tecendo em sua vida.
O mais importante nisso tudo é reconhecer que, em todo tempo, lugar e pessoa, a experiência de fé sempre ocorre mediada. Como afirma o Evangelho, “ninguém jamais viu a Deus; o Filho [...] foi quem o deu a conhecer (revelou, contou, narrou)” (Jo 1,18). Ou seja, a experiência da fé cristã nasce mediada desde a sua origem, pelo encontro com a existência humana de Jesus. Com o seu corpo, os seus gestos, os seus discursos, a sua história, a sua cultura. E, por sua vez, a pessoa que faz essa experiência a faz pela mediação do seu próprio corpo – seus afetos, sentimentos, sensações.
Ao longo da história humana, há também uma série de mediações da experiência de fé que são técnicas e tecnológicas. Trata-se de artifícios e artificialidades que não são “naturais”, mas inventados pelas pessoas na relação que estabelecem entre si e com o sagrado. Os gestos, os símbolos, a fala, a linguagem, a música, a escrita, a imagem, o digital: é mediante essa “complexa ecologia comunicacional”, na qual “tudo está estreitamente interligado” (LS 16), que a experiência de fé se torna possível.
O ser humano, portanto, não é apenas religiosus, mas também technologicus. Essa articulação entre a dimensão religiosa e a dimensão tecnológica é constitutiva da humanidade. Afinal, a técnica, já dizia Bento XVI na Caritas in veritate, é “um dado profundamente humano, ligado à autonomia e à liberdade do ser humano” (n. 69). É por meio dela que a pessoa “realiza a própria humanidade”, o que envolve também a sua experiência religiosa.
Hoje, na evolução humano-tecnológica, as mídias podem até ser entendidas como “espécies companheiras” (Timothy Lenoir), ou seja, realidades tecnológicas que são fruto da experiência humana, mas que, por sua vez, também transformam o ser humano. É aquilo que o papa emérito já afirmava em 2013, ao falar sobre o ambiente digital: “As redes sociais são o fruto da interação humana, mas, por sua vez, dão formas novas às dinâmicas da comunicação que cria relações”.
Há, então, uma importante dimensão comunicacional e tecnológica da fé. E isso nos leva a questionar a ideia de uma suposta “virtualização” da experiência religiosa na cultura digital.
Para falar do conceito de “virtual” e de “virtualização” (do latim virtus, “força, potência, latência”), seria necessário resgatar a densidade de tais noções na reflexão filosófica.
Mas o que nos interessa aqui é problematizar aquilo que o senso comum costuma entender por “virtual”. Normalmente, usa-se esse adjetivo para se referir a tudo o que é digital ou que está disponível na internet, entendendo-o como algo imaterial e incorpóreo, ou o contrário do “real”.
O novo “Diretório para a Catequese”, lançado em junho passado, que foi anunciado como um texto mais “conectado” por abordar a importância da cultura digital, também defende que, ao se “utilizar as novas tecnologias”, é preciso evitar uma “virtualização da catequese”, gerando uma “ação catequética fraca e sem influência” (n. 371). Segundo o documento, “muitas formas de interação pessoal tornaram-se virtuais suplantando totalmente, especialmente entre as jovens gerações, a necessidade de formas de relação tradicionais, impedindo-as de tomar contato direto com a angústia, a trepidação, a alegria do outro e com a complexidade da sua experiência pessoal” (n. 369).
Esse ponto de vista simplificador não é exclusivo da Igreja. A internet, em muitos outros âmbitos sociais, continua a ser vista meramente como um “limbo eletrônico”, um “universo paralelo”, o “ciberespaço”, um “continente digital”, ao qual os “internautas” chegam por “navegação”: expressões todas que remetem a um “lá fora” da realidade.
Significativamente, tais expressões não fazem mais parte do vocabulário das gerações mais jovens ao se referirem àquilo que vivem e experimentam nas redes. Essas metáforas até podiam fazer sentido nos anos 1990, quando a conexão discada realmente demandava que a pessoa se posicionasse em frente a um computador, geralmente em uma sala específica para isso. Ali, realizava-se uma espécie de “liturgia” de conexão que, mediante uma série de passos e ações, finalizava com um som característico, quase sobrenatural (aos mais jovens, este vídeo pode ajudar), gerando a expectativa de acesso ou não à “biblioteca das bibliotecas” e à “rede das redes”. A saga cinematográfica “Matrix”, nesse sentido, é uma metáfora muito representativa de como a conexão com as redes digitais era entendida há não muito tempo.
Mas não estamos mais nos anos 1990. Não precisamos mais “entrar na internet”, como algo “lá fora”, porque praticamente nunca saímos dela – e, mesmo quando nos desconectamos, nossas presenças online continuam disponíveis para quem quiser nos contatar.
É preciso, portanto, superar a dicotomia “virtual x real”, “offline x online”. Hoje, vivemos uma experiência “onlife” (Luciano Floridi). A conectividade e as redes já são uma dimensão existencial das pessoas. Redes e ruas estão mais do que nunca conectadas e interligadas. O “véu” dessa separação se rasgou há um bom tempo.
Bento XVI afirmava ainda em 2013: “O ambiente digital não é um mundo paralelo ou puramente virtual, mas faz parte da realidade cotidiana”. E Francisco, hoje, ao pedir uma “Igreja em saída”, também esclarece que “entre estas estradas estão também as digitais, congestionadas de humanidade”. Segundo ele, o ambiente digital não é apenas “uma rede de fios, mas de pessoas humanas”.
Alguns dados podem nos ajudar a entender melhor o que esse processo de digitalização e conectivização significa na prática. Segundo o instituto de pesquisas DataReportal, em 2019, havia 150,4 milhões de usuários frequentes de internet no Brasil (71% da população). Também chama a atenção o tempo médio de uso diário de internet por parte dos brasileiros: 9h17min, praticamente a metade de um dia, o que coloca o país no 2º lugar mundial em relação ao tempo de conexão (perdendo apenas para as Filipinas).
Dados sobre a internet no Brasil
(Foto: DataReportal)
Em abril deste ano, o DataReportal realizou uma nova pesquisa, para entender quais transformações a pandemia havia provocado nesses dados. Constatou-se que 58% dos brasileiros entrevistados (entre 16 e 64 anos de idade) passaram ainda mais tempo nas redes sociais durante a quarentena. O Brasil também aparece em segundo lugar entre os países que afirmam ter aumentado seu tempo de conexão durante a pandemia.
Tempos de uso de mídias digitais no Brasil
(Foto: DataReportal)
O digital, portanto, é real. É uma realidade cultural e social. É uma expressão cada vez mais encarnada, concreta e material de humanidade. Que, por sua vez, também possibilita novas formas de encontro e de relação, inclusive com o sagrado. E, por isso, transforma a própria experiência e vivência da fé.
Se a fé é um processo comunicacional que gera comunhão e constrói comunidade, há alguns aspectos centrais que entram em xeque na experiência da fé no ambiente digital: as noções de corpo e comunicação; de presença e comunhão; e de participação e comunidade.
Especialmente neste tempo de quarentena, uma questão que geralmente surge é: onde está o “outro” nas relações em rede? Pelo fato de o contato ocorrer a distância, afirma-se que a relação fica limitada, porque ocorre uma comunicação na “ausência do outro” e do seu corpo. Haveria apenas uma interação entre máquinas, dígitos, símbolos, representações, simulacros. Será mesmo?
Na verdade, o corpo conectado não está “desencarnado”: o que as redes possibilitam é um contato efetivamente entre corpos, embora às vezes em lugares e tempos distintos (como na leitura que você está fazendo deste texto). Mas não abandonamos nossos corpos quando estamos conectados.
Pelo contrário, o corpo é ressignificado nas redes, torna-se híbrido, na interface entre o biológico, o tecnológico, o simbólico, o social, o cultural. Surgem daí novos modos de percepção, de cognição, de expressão, mas que sempre passam pelo corpo, como “mediação natural” básica de todo contato humano.
Na complexidade da própria biologia humana, o digital reforça ainda mais um processo conhecido como sinestesia, ou seja, a complexa rede de relações entre os sentidos humanos. Por meio desse processo, o estímulo de um sentido pode provocar a percepção em outros. É o que ocorre, por exemplo, quando dizemos que nos “sentimos tocados” ao ouvir uma música ou ao assistir a um filme. E a linguagem aqui não é neutra: algo realmente nos “toca” nessas novas experiências de “tato”, que ocorrem por meio do afeto, das sensações, dos sentimentos encarnados em um corpo.
Francisco já afirmou também que “o uso da internet é complementar ao encontro em carne e osso”. É, inclusive, um “recurso para a comunhão”, segundo o papa. Talvez, o desafio seja repensar as mediações digitais, para que favoreçam essa sensibilidade em relação ao “outro”. É preciso escolher criteriosamente as plataformas, as linguagens, os símbolos e tudo o que o digital oferece, possibilitando que se “sinta” a presença do “outro” na experiência da relação.
Paulo de Tarso foi alguém que entendeu isso muito bem, milênios atrás. Ao escrever à comunidade de Corinto, ele reconheceu que, embora “ausente de corpo”, ele estava “presente de espírito, como se estivesse aí entre vocês”, por meio de sua carta (1Coríntios 5,3). Aliás, foi por meio de uma carta que ele convidou aqueles primeiros cristãos a serem também “uma carta de Cristo (...) escrita não com tinta, mas nas tábuas de carne do coração de vocês” (2Coríntios 3,3). Corpo ressignificado em carta, carta ressignificada em corpo: sem dicotomias, nem alienação.
Em sua recente fala, Dom Tolentino também afirmou: “Este tempo de isolamento é um tempo de intensificação da relação”. Mas como construir essa relação, se supostamente estamos diante da “ausência do outro”? Como gerar comunhão se os vínculos supostamente são tão frágeis a ponto de se desfazerem quando a conexão cai?
Na verdade, é preciso reconhecer que “presença” e “ausência” não são conceitos unívocos, já dados a priori. Muitas vezes, há pessoas que estão apenas “de corpo presente” em determinado evento. E, infelizmente, essa é a experiência em algumas liturgias celebradas nos templos: as pessoas estão lá com o corpo, talvez por obrigação, mas, com o pensamento e os afetos, estão muito distantes. São presenças que revelam uma ausência.
E o contrário também é verdadeiro: nos debates eleitorais, a “cadeira vazia” ou o “púlpito vazio”, quando um determinado candidato não comparece, acaba falando mais do que a sua própria presença.
O Papa Francisco, em um dos primeiros gestos do seu pontificado, ainda em 2013, também deixou uma “cadeira vazia” bem no meio da Sala Paulo VI, no Vaticano, onde seria realizado um concerto da Orquestra Rai por ocasião do Ano da Fé. Foi uma ausência que revelou a sua presença em relação a outras prioridades, que os meses e anos seguintes do pontificado deixaram bem claras. O mesmo ocorreu em março passado, na oração do papa pelo fim da pandemia, em uma Praça de São Pedro vazia: a ausência do povo “gritava” mundialmente a presença de uma humanidade ferida e sofrida.
O mesmo vale para os contatos em rede, especialmente diante do fenômeno comunicacional deste tempo de pandemia: as onipresentes “lives”. Qual o seu diferencial? Justamente a experiência de uma copresença “aqui-agora”, de uma nova forma de encontro e de relação, mesmo que a distância.
Nas interações em rede, portanto, a conexão estabelecida é uma presença real aqui-agora das pessoas que interagem, graças àquilo que veem, ouvem e sentem. Elas podem não estar presentes no mesmo ponto geográfico, mas estão presentes umas às outras, em relação, e estão presentes em uma mesma experiência, que passa por seus corpos (suas emoções, afetos, sentimentos...), embora a distância.
Voltemos a Paulo. As suas comunidades, geograficamente distantes, mantinham a sua comunhão não apenas quando ele se encontrava em visita a uma delas, mas também por meio de suas cartas, que transformavam a sua ausência em uma presença real. Exagero? Ele mesmo responde:
“Como dizem alguns, ‘as cartas são duras e fortes, mas a presença dele é fraca e sua palavra é desprezível’. Aquele que diz isso fique sabendo que, assim como somos pela linguagem e por carta quando estamos ausentes, tais seremos por nossos atos quando estivermos presentes” (2Coríntios 10,9-11).
Para Paulo, assim, não havia dicotomia entre o “virtual” (as cartas em sua ausência) e o “real” (a sua presença física nas comunidades). A sua presença era real e equivalente em ambas as modalidades de relação, bem como a sua coerência de vida.
Nesse sentido, a mediação digital, milênios depois de Paulo, também permite uma forma de presença e de comunhão, porque, no fundo, a experiência de uma presença aqui-agora se constrói na relação.
Disse Jesus: “Onde dois ou mais estiverem reunidos em meu nome, Eu estou aí no meio deles” (Mateus 18,20). Trata-se de uma verdadeira promessa de presença real do próprio Jesus. O importante, aí, não é o “onde” em sentido geográfico, mas, sim, reunir-se em comunidade em nome de Jesus – a distância ou de perto, em rede ou fora dela.
Nessas novas formas de relação e presença, é preciso repensar o que entendemos por participação. Hoje, especialmente em tempos de quarentena, surgem novas formações comunitárias e novas formações propriamente eclesiais em rede. Nesta pandemia, percebemos a constituição de verdadeiras “comunidades eclesiais digitais”, que atualizam, por outros meios e em outros ambientes, uma mesma busca de experiência religiosa e de vínculo interpessoal. Trata-se, no fundo, de “outra forma de ser Igreja”, em meio às variações históricas das formas comunitárias, que nunca foram as mesmas, nem iguais ao longo da história da Igreja e nas diversas culturas.
É o que Francisco ressalta na Evangelii gaudium: “Como podemos ver na história da Igreja, o cristianismo não dispõe de um único modelo cultural (...). Não faria justiça à lógica da encarnação pensar num cristianismo monocultural e monocórdico” (EG 116). E cada modelo cultural, em sua diversidade, possibilita diferentes formas de encontro e de relação, de comunhão e de comunidade – em suma, de participação.
Continua o papa: “A fé não se pode confinar dentro dos limites de compreensão e expressão de uma cultura. É indiscutível que uma única cultura não esgota o mistério da redenção de Cristo” (EG 118). Pelo contrário, a fé cristã assume também “o rosto das diversas culturas e dos vários povos onde for acolhido e se radicar” (EG 116). Isso também vale para a cultura digital.
Nesse sentido, “as comunidades em redes digitais complementam e fortalecem as comunidades presenciais”, como afirma o Diretório de Comunicação da Igreja no Brasil (n. 183). Mas isso, continua o documento, “exige uma renovada capacidade de dialogar com as pessoas”. Ou seja, conexão não é automaticamente relação. A comunidade é fruto da comunhão entre as pessoas, que, por sua vez, é fruto da “capacidade de dialogar”, de um processo comunicacional. Em rede é preciso não apenas reconhecer a presença do “outro”, mas também envolvê-lo e deixar-se envolver por ele, para que seja possível uma coparticipação ativa na construção de uma comunidade, por meio da relação e do diálogo.
E isso diz respeito a outro fenômeno deste tempo de pandemia, que foram as transmissões de ritos religiosos, como as denominadas “missas sem a presença de fiéis”. Se os fiéis não estão presentes na celebração, para quem (e para que) se faz a transmissão? Qual o papel dos fiéis no rito transmitido? O risco é cair na mera encenação, exibicionismo, espetacularização da liturgia, chegando a um “clericalismo midiático” e contrariando tudo o que a reforma litúrgica e os próprios documentos conciliares afirmam sobre a celebração da liturgia e a assembleia celebrante.
Ora, se a transmissão é feita para que os fiéis possam viver a celebração, o desafio é promover uma participação “ativa e efetiva” nos ritos religiosos em rede. Como fomentar que o fiel seja sujeito da liturgia, não “apesar” de todas as mediações tecnológicas, mas justamente por meio delas? Isso demanda repensar algumas concepções teológico-litúrgicas dentro da conjuntura contemporânea, conhecer as modalidades de conexão, dominar os recursos das plataformas e as linguagens digitais e, também, formar as pessoas para as novas possibilidades de participação, em uma verdadeira “iniciação à vida cristã digital”.
No fundo, o principal é reconhecer que há uma pessoa do outro lado da tela, à qual o cristão é chamado a sair ao encontro, entrar em comunhão e formar comunidade. O “outro” não é (e não deve ser) um mero leitor, espectador ou ouvinte coisificado, um número a ser contabilizado como visualização, a fim de “bombar, viralizar” nas redes. Não se deve ignorar o “outro” em sua humanidade.
Falar de encontro, de relação, de comunhão e de comunidade, de presença e de participação é sempre levar em conta a alteridade, o “outro”: primeiramente o “Outro” divino que sai ao nosso encontro e, também, o “outro” humano, a quem saímos ao encontro para partilhar a experiência de fé. O “outro” é um “lugar teológico”, em que Deus já se faz presente, nos precede e se revela a nós.
Nesse sentido, o principal risco que a pastoral pode enfrentar é justamente cair em um “individualismo conectado”. Pessoas conectadas, mas não em relação. Ao não reconhecer o “outro” com quem se vive a experiência de fé, pratica-se uma “privatização da fé”, em que não há abertura, saída e encontro com o Mistério e o irmão, mas fechamento, encurvamento, autorreferencialidade e autossuficiência, em que “Deus” e o irmão só têm valor e importância em função do “eu”, a serviço de “mim”. Em meio às conexões em rede, o Senhor continua nos perguntando: “Onde está o teu irmão?” (Gênesis 4,9). E espera uma resposta diferente da de Caim.
Entretanto, essa tentação de uma experiência de fé narcísica não foi uma invenção do digital, mas faz parte da “gênese” do humano. E hoje também não se restringe às redes. Tomemos a missa celebrada em nossos templos de pedra: o rito é verdadeiramente a comunicação de uma experiência de comunhão com Deus e os irmãos e irmãs por parte da comunidade reunida? Como nos portamos na chegada às nossas igrejas? Sentimo-nos indo ao encontro de nossos irmãos e irmãs na fé, ou é como se estivéssemos entrando em um mero “teatro” cheio de desconhecidos, em que precisamos encontrar o primeiro lugar vago antes que tenhamos que ficar de pé? Silenciamos, escutamos, rezamos e cantamos como “um só corpo”? Na procissão do ofertório ou da comunhão, caminhamos como comunidade rumo ao encontro do seu Senhor ou como em uma fila de banco, defendendo o próprio lugar? Ou, pior, nos acotovelamos como crianças em uma distribuição de doces?
O digital apenas explicita práticas já existentes em nossas igrejas. É o que vemos em outro fenômeno preocupante que a pandemia reforçou na vida litúrgica: uma espécie de “consumismo litúrgico”, em que a Eucaristia perde sua dimensão de comunhão com o corpo de Cristo, que é a Igreja, de “comunhão de vida com Deus e a unidade do povo de Deus” (Catecismo da Igreja Católica, n. 1325). Desaparece o aspecto comunitário da comunhão, e a hóstia se transforma em um amuleto, um objeto de direito pessoal, consumido em uma “comunhão intimista”, exclusivamente com Cristo, dispensando a comunhão fraterna, comunitária e cósmica (João Paulo II, Ecclesia de Eucharistia, n. 8).
Assim, a comunhão passa a se restringir apenas ao seu significado de “sacramento de piedade”, perdendo seus outros sentidos igualmente relevantes e interligados de “sinal de unidade”, de “vínculo de caridade”, de “banquete pascal” (CIC 1323). Sem dúvida, trata-se de um sacramento de união íntima com Cristo, sim, mas que também “une todos os fiéis num só corpo: a Igreja” (CIC 1396).
Esse consumo privatista da hóstia tem relação direta com a experiência do consumismo mercantil de bens e serviços. Tanto que alguns grupos, nesse período de pandemia e de templos fechados, chegaram a criar slogans como: “Sem sacramentos, sem dízimo”. Isso revela uma concepção canhestra da religião como mero mercado da fé e troca de bens espirituais, postura tão denunciada pelo próprio Jesus a quem se comunga.
Isso tem levado, inclusive, à prática de uma “meritocracia eucarística”, em que só comunga quem pode por “direito divino”, como o clero, ou quem consegue por “direito privado”, como as pessoas que conseguem chegar mais cedo às igrejas reabertas e ocupar o seu espaço nos poucos lugares disponíveis nos bancos agora distanciados, ou, ainda, aquelas que conseguem conquistar o seu lugar nos serviços de “pré-reserva” que algumas paróquias desenvolveram para limitar o número de fiéis nos templos. A comunhão se transforma em mérito de poucos: azar é de quem não pode ou não consegue alcançá-lo.
O que a pandemia vem revelando sobre certas práticas católicas não é tanto uma virtualização da fé, mas, sim, uma verdadeira coisificação da fé. Isso deve levar a Igreja a pensar sobre a sua pastoral no aqui-agora da história, que se revela como um tempo de crises ou, melhor, como um tempo crítico para a experiência de fé.
E se a pandemia nunca fosse embora e tivéssemos que viver “confinados” de agora em diante, como ficaria a nossa vivência da fé? De que modo alimentaríamos a comunhão para formar comunidade?
Esperamos que tal cenário apocalíptico nunca se concretize, mas o momento atual, com seu somatório de tensões, revela cada vez mais a necessidade de reconhecer o próprio digital como um “lugar teológico”. Em rede também é possível encontrar a Deus e o “outro”. Também é possível viver experiências de comunhão e de comunidade.
Mas, para isso, é preciso superar pré-conceitos sobre o digital, alguns dos quais tentamos indicar aqui, dentre muitos outros, que impedem as pessoas de assumirem a cultura digital com suas possibilidades e seus limites, suas luzes e sombras, suas riquezas e pobrezas.
O desafio é, precisamente, promover uma inculturação digital que permita reconhecer as “formas e valores positivos” (EG 116) presentes na cultura digital e que podem enriquecer a evangelização, introduzindo-os na cultura eclesial. Trata-se de assumir as “categorias próprias da cultura [digital]” no anúncio do Evangelho e de permitir que, por sua vez, a força do próprio Evangelho “provoque uma nova síntese com essa cultura” (EG 68).
Esse é um processo “artesanal”, que deve ser discernido e elaborado a partir das especificidades de cada contexto, de acordo com os tempos, os lugares e as pessoas. Até porque, embora falemos em “cultura digital” no singular, as expressões da digitalização são as mais diversas, gerando diferentes “culturas digitais”, inclusive dentro de um mesmo país.
O Brasil, por sua vez, também tem uma forte cultura não digital. De acordo com os dados apresentados no início deste texto, há ainda 29% de brasileiros desconectados. Como favorecer uma experiência de fé junto a essas pessoas em tempos de distanciamento?
Em primeiro lugar, cabe a toda a Igreja, em suas várias dimensões, promover a defesa do acesso à internet como um direito humano e social básico hoje. Por isso, é necessário lutar por políticas públicas que defendam e promovam a universalização do acesso à internet, como fonte de informação e conhecimento e ambiente de participação civil.
Por outro lado, do ponto de vista da prática pastoral junto a pessoas e comunidades digitalmente excluídas, talvez seja necessário recorrer a outro tipo de inculturação e aprender com uma igreja local marcada, em diversas de suas comunidades, pelo “isolamento litúrgico” e pelo “isolamento digital” há muito tempo, mas que, mesmo assim, permanece viva, em comunhão e em comunidade: a Igreja da Amazônia. Sua “sabedoria ancestral” (QA 70) tem muito a nos iluminar.
Nos recantos brasileiros em que o digital é ainda uma utopia, a Igreja amazônica pode nos ensinar a resgatar o valor das “comunidades de base”, que permitem “integrar a defesa dos direitos sociais [como o acesso aos bens básicos, incluindo a própria internet], com o anúncio missionário e a espiritualidade”, e são “verdadeiras experiências de sinodalidade no caminho evangelizador da Igreja”. Desse modo, elas ajudam a “formar cristãos comprometidos com a sua fé, discípulos e missionários do Senhor” (QA 96).
Diante de tudo isso, o maior desafio pastoral é superar a lógica da “substituição” pela lógica da “complexificação”, da complementariedade, da interligação. Se o digital não se opõe ao “real”, então como promover uma “complexa ecologia comunicacional pastoral”, na qual “tudo esteja estreitamente interligado” (cf. LS 16)? Como impedir que a fé seja simplificada, coisificada, liquidada e favorecer que ela seja complementada pelas várias mídias e linguagens “que, principalmente nos nossos dias, o engenho humano extraiu, com a ajuda de Deus, das coisas criadas” (Inter mirifica, n. 1)?
Se a pastoral quer ser verdadeiramente cristã, nos passos do Deus que se encarnou na história e na cultura humanas, interligando estreitamente o divino e o humano, e se quer ser verdadeiramente católica, acolhendo a universalidade e a diversidade humanas, ela é chamada a abandonar a lógica do “ou” e a assumir a lógica do “e”. Não se trata de evangelizar “ou” no ambiente digital “ou” nos demais ambientes sociais, mas de sair ao encontro das pessoas no ambiente digital “e” nos demais ambientes sociais, isto é, onde quer que elas estejam, para assim gerar comunhão e construir comunidade, como fez Jesus com os discípulos de Emaús (cf. Lucas 24,13-35).
É o que Francisco afirma na Amoris laetitia, referindo-se a outras temáticas, mas cuja metáfora nos ajuda a compreender melhor o que está em jogo também na relação com o digital: “Por pensar que tudo seja branco ou preto, às vezes fechamos o caminho da graça” (n. 305). Não há uma realidade digital e uma realidade “real” claramente separadas, mas várias tonalidades misturadas que demandam discernimento. Para superar esse suposto impasse entre o digital e outros ambientes de experiência, de relação e de vida, o papa convida a um processo de “transbordamento, transcendendo a dialética que limita a visão para poder assim reconhecer um dom maior que Deus está a oferecer” (Querida Amazônia, n. 105).
É justamente esse esforço de transbordar a brecha digital pastoral que pode ajudar a Igreja a evitar “relativizar os problemas, fugir deles ou deixar as coisas como estão. As verdadeiras soluções nunca se alcançam amortecendo a audácia, subtraindo-se às exigências concretas ou buscando culpas externas” (QA 105).
Afinal, o digital não é um problema. Pelo contrário, é um sintoma de problemáticas bem mais profundas que não são meramente de ordem tecnológica, mas, sim, teológica, eclesiológica, pastoral, catequética, litúrgica. Essas questões demandam “ousadia e criatividade” (EG 33) por parte da Igreja, para que possa repensar o seu modelo e o seu estilo de evangelização, tendo em vista uma comunicação que gere comunhão e construa comunidade.
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Virtualização da fé? Reflexões sobre a experiência religiosa em tempos de pandemia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU