23 Abril 2020
"Não se tratava apenas de fazer ver, mas de buscar o aspecto performativo da encenação onde precisamente a afasia e a desorientação, a perda no frio das trevas, se tornaram elementos para participar e não simplesmente de ver um espetáculo. Participar porque todos nos sentimos perdidos e sozinhos em um tempo em que, como então, 'houve trevas em toda a terra'. Como dizer que a presença de Deus que salva é para ser percebida justamente nas trevas da história. Novamente, trata-se de uma questão de olhar", escreve Mons. Dario Edoardo Viganò, vice-chanceler da Pontifícia Academia das Ciências e da Pontifícia Academia das Ciências Sociais e ex-assessor do Dicastério de Comunicação, em artigo publicado por Settimana News, 19-04-2020. A tradução é de Luisa Rabolini.
“A arte não repete coisas visíveis, mas torna visível" (Paul Klee)
Cada um de nós tem uma dimensão social multidimensional e pluridiscursiva. Nem mesmo o Papa Francisco escapa disso, e dele se podem ser contadas de maneira concêntrica, a origem, a formação cultural, as experiências de vida até a eleição como pontífice (multidimensionalidade), bem como a partir de sua figura e de seu pontificado, se ativam uma multiplicidade de discursos intraeclesiais e extraeclesiais (pluridiscursividade). Em outras palavras: cada pessoa, cada sujeito, tem uma identidade social resultante de práticas discursivas que o identificam e diferenciam.
O Papa Francisco, como todo pontífice escolhido por Deus para guiar seu povo, a Igreja/noiva ao encontrar do Cordeiro/noivo, sabe que sua identidade social também é definida pelos discursos que circulam sobre ele na semiosfera, discursos que parcialmente condicionam e parcialmente já estão condicionados.
Nos últimos dois anos, o complexo discursivo do Papa Francisco apresenta um duplo trilho: primeiro, o retrocesso fisiológico na agenda medial; o segundo, mais ocasional, o surgimento na agenda das mídias por ocasião de algumas atitudes polêmicas, desde a acusação de heresia (com tanto de exorcismo) até aquela ideológica que o define como comunista.
Em uma análise mais próxima, um efeito de choque no conjunto dos discursos do Papa e sobre o Papa, o tivemos no último 27 de março, para a Bênção Urbi et Orbi, a oração extraordinária em tempos de epidemia, que reverberou depois por ocasião da Via Crucis da Sexta-feira Santa em 10 de abril. O pontífice retornou ao centro, e não prioritariamente de forma divisória, na semiosfera em sua função de pastor e guia universal do santo povo de Deus.
O contexto primeiro: a pandemia para alguns observadores inicialmente subestimada, que atinge de forma extremamente violenta a Itália (com algumas áreas particularmente afetadas), a Europa e o mundo inteiro.
As grandes potências, os bancos centrais, as bolsas de valores dos países mais ricos, subitamente estão perdidos e incapazes de lidar com a virulência do contágio de um vírus, o Covid-19. É interessante notar como o vírus, devido à sua propagação, tem a mesma dinâmica do mal: não tem vida própria, mas necessita de um corpo no qual se enraizar para viver.
Nesse contexto, portanto, nasceu no coração do papa a ideia de uma Statio Orbis: "É uma parada ao longo da peregrinação da vida e da evolução da história, como se fosse para fazer um balanço do caminho percorrido e recuperar as forças para objetivos futuros da história e do tempo. Todo o mundo cristão está simbolicamente envolvido e presente naquela parada eucarística. Parando no sinal da Eucaristia, voltando toda a atenção interior para o altar onde Cristo se faz presente sob as espécies eucarísticas, a Igreja renova sua fé na verdade fundamental [...] de que Jesus Cristo, o único Salvador do mundo, é pão para uma nova vida" (G. Marchesi, em La Civiltà Cattolica, n. 3607, 2000, p. 173). E, a seguir, se realiza a Via Crucis de acordo com modelos de celebração análogos.
Se a Statio Orbis e a Via crucis para os crentes representam momentos de oração e imersão no mistério de Deus, graças à obra do Espírito Santo, eles se tornaram para muitos - mesmo independentemente da adesão à fé cristã - um evento (e imagens do evento) de extraordinário significado simbólico. A arte da direção litúrgica e da encenação dos dois eventos nos leva a dizer que verdadeiramente "a arte é uma ferida que se torna luz" (Georges Braque). Que iluminou um mundo inteiro.
Os números da audiência da televisão são, no mínimo, impressionantes. Na sexta-feira, 27 de março, das 18h às 19h, para a Bênção Urbi et Orbi apenas na primeira rede Rai, Rai Uno, havia mais de 8 milhões de espectadores e mais de 32% de share. Como apontado por Aldo Grasso em sua coluna no Corriere della Sera (12 de abril) e Avvenire (28 de março), observando a cobertura das várias redes nacionais, naquela faixa de horário chegou a superar 17 milhões de espectadores e 64% de share. E pensar que esses são apenas os dados relativos à Itália.
Números igualmente altos, portanto, também para a Via Crucis, na Sexta-feira 10 de abril: a primeira noite do Rai Uno registrou cerca de 8 milhões de espectadores e 25,6% de share, sem contar os dados da Tv2000 ou os contatos em streaming.
Em primeiro lugar, a Statio Orbis, de 27 de março. A direção, assinada por Cesare Cuppone, não organizou simplesmente um evento. Se "o visível - como disse Maurice Merleau-Ponty - em si tem uma membrana de invisível" (cf. M. Merleau-Ponty, O visível e o invisível, Bompiani 1993), era necessário, na bem pensada direção, ir além da simples dinâmica de mostrar, de fazer ver e entrar mais na lógica de fazer participar.
Os recursos essenciais (sem o uso de jimmy ou steadycam) foram valorizados ao máximo: seis câmeras posicionadas no pátio, no átrio da Basílica de São Pedro, na praça (lado da Basílica), no meio e no fundo do Braccio di Carlo Magno, por fim, dentro da nave central da Basílica para o contracampo do Santo Padre com a praça vazia.
(Foto: Vatican News)
Mudança de cenário, em 10 de abril, para a Via Crucis (tradicionalmente realizada no Coliseu). Nove câmeras foram usadas para dirigir (nessa ocasião, a direção foi assinada por Stefano D'Agostini, juntamente com Cesare Cuppone): uma no obelisco, uma no pátio da igreja e uma no fundo do pátio, duas no Braccio di Carlo Magno, uma na Loggia delle Benedizioni, um na praça (lado da Basílica) e depois duas câmeras remotas (lado da plataforma de Santo Padre e sob o crucifixo de San Marcello). Além da coordenação e direção, nesse caso, também é necessário destacar a contribuição decisiva, como veremos, da fotografia (o diretor de fotografia é Walter Capriotti).
A oração de 27 de março, às 18 horas: é fim de tarde e o tempo parecia relatar os sentimentos da Itália, de todo o mundo, isto é, chuva incessante como lágrimas e escuridão como as trevas no coração. Justamente os agentes atmosféricos são o material a ser modelado para narrar a peregrinação nas trevas da humanidade em busca de uma palavra, de uma visão que seja consolação, um vislumbre de esperança.
A escolha fotográfica focou no black gamma, de modo que, com o passar dos minutos e a diminuição da luz, as partes escuras da cena se "colorem" com um tom azulado que, com o tempo, é gradualmente substituído por um preto mais profundo, criando assim um contraste nítido entre tons escuros e tons claros.
E depois a presença de chuva. À medida que cai, molha as lentes, criando reflexos e aberrações cromáticas que, se em outras situações resultam um elemento irritante ou até defeituoso, nesse caso geram um efeito dramático (mas não trágico) para a tomada.
(Foto: Vatican Media)
Naturalmente também o branco tem uma dominante fria com o efeito de uma exaltação da veste do papa em relação com o todo do enquadramento. Outra opção de direção e fotografia é de acentuar, com o filtro do detalhe nas câmeras, a chuva que cai no crucifixo. Como lágrimas da humanidade em busca do único Senhor e Mestre.
Não menos interessante é a escolha do diretor de fotografia para as imagens da noite de 10 de abril, a Via Crucis. As indicações do mestre de cerimônias, Mons. Guido Marini, são precisas: a iluminação rarefeita na praça e concentrada apenas no palco em que o Papa presidiria a Via Crucis. O contexto do qual partir é, portanto, a escuridão da noite, sabendo que se trata de um momento de oração que tem a ver com a memória de uma entrega por amor.
(Foto: Vatican Media)
A escolha fotográfica é, portanto, virar os tons escuros e as sombras nos tons quentes: o vermelho, que remete ao vermelho do sangue de Cristo na cruz e o vermelho do fogo das lâmpadas. Uma opção que permite que até o branco seja quente. Dessa maneira, o vermelho do fogo das tochas colocadas na praça e o sangue da cruz derramado tornaram-se o tom fotográfico predominante da oração.
(Fotos: Vatican Media)
As imagens estão, portanto, enraizadas no imaginário comum, certamente para esse cuidado com a filmagem e produção, mas também por outras razões.
Primeiro, a natureza radical da direção litúrgica: o papa poderia, de fato, ter rezado, pronunciar sua própria meditação e viver a adoração eucarística com a bênção final, no espaço liminar da Basílica, no espaço do átrio, entre dentro e fora, em um contexto que poderíamos dizer quase de celebração (vamos pensar, por exemplo, no rito de abertura da Porta Santa por ocasião do Jubileu), protegendo-se também dos eventos atmosféricos (como a chuva incessante sob a qual o papa caminhou subindo, sozinho, a escadaria de mármore em forma de leque para chegar ao dossel, o espaço da oração.
Nesse caso, a direção poderia ter optado por um jogo interno x externo. A escolha litúrgica quis, em vez disso, exibir (enfatizada pelas escolhas de cenário) a incomum praça vazia, o enorme abraço da Colunata de Bernini, geralmente lotado pelo burburinho e as cores das pessoas reunidas para se encontrar com o papa. É justamente a praça vazia que assume a força de um "poder expressivo de uma falta" (Maria Pia Pozzato).
A produção do evento seguiu o real, transformando-o em uma metáfora que "nunca deve ser construída, mas encontrada nas dobras da realidade", porque é "violação referencial" (M. Brenta). De alguma forma, portanto, a direção e a encenação litúrgica foram capazes de recordar a dinâmica dramática do amor (cf. João 20). Além disso, como dissemos, não se tratava apenas de fazer ver, mas de buscar o aspecto performativo da encenação onde precisamente a afasia e a desorientação, a perda no frio das trevas, se tornaram elementos para participar e não simplesmente de ver um espetáculo. Participar porque todos nos sentimos perdidos e sozinhos em um tempo em que, como então, "houve trevas em toda a terra". Como dizer que a presença de Deus que salva é para ser percebida justamente nas trevas da história. Novamente, trata-se de uma questão de olhar.
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Francisco: cena e dramaticidade do amor - Instituto Humanitas Unisinos - IHU