14 Março 2020
"Desse modo, considerando as péssimas condições de moradia e transporte da maioria da população brasileira, bem como o tamanho do mercado informal de trabalho sem cobertura previdenciária, não devemos subestimar os efeitos dessa pandemia, tampouco o nível de estresse sobre o Sistema Único de Saúde – SUS, que hoje está subfinanciado e pressionado pela dengue e o retorno de doenças evitáveis como sarampo e febre amarela", escreve Carlos Ocké-Reis, economista, pesquisador do Ipea e pós-doutor pela Yale School of Management (as opiniões emitidas não exprimem, necessariamente, o ponto de vista do Ipea); vice-presidente da Associação Brasileira de Economia da Saúde (ABrES), em artigo publicado por Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), 12-03-2020.
A Organização Mundial da Saúde – OMS declarou nesta quarta-feira que o coronavírus (Covid-19) é uma pandemia, pressionando os mercados em escala global com sua disseminação em mais de cem países, em todos os continentes.
Apesar da insegurança sobre a magnitude e duração dessa pandemia, neste momento de desaceleração econômica, um conjunto de países adota medidas para fortalecer suas economias e sistemas de saúde: vários bancos centrais já reduziram seus juros e vêm defendendo políticas fiscais expansionistas.
Vale dizer, a decisão da Arábia Saudita de reduzir o preço do petróleo, dentro da disputa geopolítica internacional entre Rússia e EUA, acabou contribuindo para o aumento da instabilidade na economia mundial, reforçando a queda dos preços dos ativos de risco, que já vinha ocorrendo por causa do Covid-19. Observa-se um aumento da aversão ao risco, bem como das dúvidas sobre a disseminação da doença. Por exemplo, no Brasil, além da alta do dólar e do movimento de fuga de capitais, o Ibovespa já suspendeu o pregão da bolsa de valores duas vezes nesta semana, embora a política cambial desastrada de Guedes já tivesse favorecido no momento anterior a queima das reservas internacionais e a desvalorização do câmbio.
Diante de tais incertezas econômicas e sanitárias é crescente o risco de a economia global crescer abaixo de 1,5% em 2020, podendo comprometer a capacidade de pagamento das dívidas corporativas das empresas, criando um círculo vicioso, uma vez que o baixo preço do petróleo, pode colocar em xeque o mercado de crédito nos Estados Unidos.
Neste quadro, de um lado, a União Europeia criará um fundo de 25 bilhões de euros para combater os efeitos da pandemia na zona do euro, que será usado, entre outros, para reforçar os sistemas de saúde e proteger o mercado de trabalho europeu. Em particular, o Reino Unido anunciou a aplicação de 30 bilhões de libras para enfrentar o coronavírus. De outro lado, a Casa Branca anunciou também um pacote de estímulos fiscais para conter os efeitos do coronavírus, bem como prometeu ampliar a licença médica dos trabalhadores estadunidenses. E, finalmente, a Itália pretende oferecer uma moratória do pagamento de dívidas e hipotecas, para permitir que trabalhadores e empresas enfrentem o coronavírus: o governo italiano aplicará até 10 bilhões de euros para reduzir os danos causados pela pandemia.
Sendo assim, o governo Bolsonaro está no mínimo mal assessorado no tocante à ameaça do coronavírus. No contexto de redução do piso per capita da saúde do governo federal, entramos na fase da transmissão comunitária do vírus com alta taxa de letalidade entre os idosos: idade avançada, doenças crônicas e sinais de sepse indicam maior risco de gravidade. A China, é bom lembrar, precisou adotar medidas agressivas do ponto social e econômico contra a expansão da doença, que permitiu até agora a redução do número de novos casos
Desse modo, o Ministério da Economia não deveria permanecer prisioneiro da sua estratégia de manter as restrições aos investimentos públicos e gastos sociais, de negar o papel do BNDES como garantidor do crédito de longo prazo da economia, de aprofundar a política de austeridade com a aprovação das “reformas”, e de contingenciar o orçamento federal dada a queda da projeção do PIB para 2020.
Essa postura fiscalista é irracional e irresponsável. O próprio Banco Central Europeu recomendou a aplicação da política fiscal para combater o coronavírus, citando a crise financeira de 2008 como um exemplo dos riscos associados à paralisia governamental.
Por sua vez, o mercado fez o seguinte balanço antes do anúncio da pandemia pela OMS: no cenário otimista haveria estabilização do ritmo da alta de novos infectados e controle efetivo da transmissão em dois meses; no intermediário, a epidemia continuaria a se espalhar pelo mundo, mas sem se transformar numa pandemia global, encerrando seu ciclo em julho; e, finalmente, no cenário pessimista, o coronavírus se tornaria uma pandemia com reflexos negativos sobre a demanda global até o terceiro trimestre de 2020.
Devemos nos prevenir para evitar o quadro sofrido até agora pela China, Itália, Irã, Coréia do Sul e mesmo os Estados Unidos e não podemos repetir a forma como a ditadura civil-militar tratou a meningite a jogando para debaixo do tapete.
Dada a estagnação da economia brasileira e as altas taxas de desemprego, o governo precisa de alguma forma responder a esses cenários superando o teto do gasto (Emenda Constitucional 95), para retomar o crescimento econômico, aumentar a arrecadação e mitigar os efeitos desta pandemia, no contexto do aumento da pobreza e da desigualdade.
A rigor, os investimentos públicos e os gastos sociais devem ser avaliados pela sua efetividade, ou seja, pelo seu efeito multiplicador na cadeia produtiva e pelo bem-estar produzido na sociedade e não apenas pelos efeitos fiscais produzidos sobre o déficit primário. Desta óptica, a abertura de crédito extraordinário é uma ação insuficiente, mas, ao menos, vai na contramão do absurdo contingenciamento proposto pelo tesouro.
A inflação hoje está abaixo do centro da meta e o Banco Central vem reduzindo a taxa de juros, abrindo espaço fiscal para o Estado adotar uma política contracíclica, a partir da introdução de quatro mecanismos:
(i) a evolução da despesa primária deve estar condicionada a uma meta fiscal vinculada ao ciclo econômico (Produto Interno Bruto ou Receita Corrente Bruta);
(ii) o investimento público deve ser retirado do cálculo do superávit primário (assim como o gasto com juros é retirado desse indicador);
(iii) as desonerações devem ser reduzidas progressivamente (o teto da despesa primária não incidiu sobre os gastos tributários, tampouco sobre os subsídios creditícios e financeiros).
O mais importante é agir preventivamente e aprovar os recursos necessários para preparar o SUS, caso haja um crescimento exponencial de casos do coronavírus. Nos Estados Unidos, o teste do coronavírus custa em média US$ 2.500 dólares e no Brasil o mercado cobra até 2 mil reais pelo exame laboratorial até que os planos de saúde incluam o teste no rol de exames com cobertura obrigatória.
O governo federal junto com o congresso nacional poderia fazer um acordo, alocando o montante de R$ 15 bilhões do orçamento impositivo, para criar um fundo público emergencial semelhante ao da União Europeia.
Seria uma demonstração objetiva de que o ciclo eleitoral está subordinado às demandas populares.
Os recursos deste fundo teriam por objetivo fortalecer um conjunto de medidas na área da saúde, bem como proteger seus profissionais: (i) retomada do programa Mais Médicos; (ii) melhoria das ações de vigilância em saúde; (iii) busca ativa de possíveis infectados a partir dos agentes comunitários de saúde (iv) ampliação do teste laboratorial do coronavírus; (v) garantia de insumos, equipamentos e respiradores nas unidades de saúde; (vi) oferta de leitos hospitalares e de unidades de terapia intensiva; (vii) agilidade da licença médica dos trabalhadores (auxílio-doença); (viii) organização das quarentenas e dos isolamentos de locais públicos com a participação do controle social; (ix) campanhas educativas massivas nas rádios, tevês e redes sociais.
Em particular, é fundamental destinar recursos adicionais para a Fiocruz produzir fármacos e kits de diagnósticos, bem como participar dos esforços da comunidade científica internacional na busca da vacina contra o coronavírus. Como afirma corretamente o Professor Reinaldo Guimarães, vice-presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva – Abrasco“(…) não é razoável acreditar que um país que não estiver envolvido no esforço global de pesquisa e desenvolvimento de ferramentas diagnósticas, terapêuticas ou de vacinas contra o vírus poderá ter a capacidade de produzir industrialmente essas ferramentas e o direito de comercializá-las”.
Desse modo, considerando as péssimas condições de moradia e transporte da maioria da população brasileira, bem como o tamanho do mercado informal de trabalho sem cobertura previdenciária, não devemos subestimar os efeitos dessa pandemia, tampouco o nível de estresse sobre o Sistema Único de Saúde – SUS, que hoje está subfinanciado e pressionado pela dengue e o retorno de doenças evitáveis como sarampo e febre amarela.
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Mudar a política econômica e fortalecer o SUS são medidas corretas para combater coronavírus - Instituto Humanitas Unisinos - IHU