09 Março 2020
"Muitos vírus são odiosos porque minam os aspectos mais belos da natureza humana, como o afeto, as carícias, os abraços e os beijos. Precisamos dos outros para dar valor e significado à nossa vida individual. Gosto de pensar na ciência como um esforço global para eliminar esses inimigos e outras doenças que afligem a humanidade e dar a todos liberdade e oportunidades".
A opinião é de Elena Cattaneo, neurobiologista, professora da Universidade Estatal de Milão e senadora vitalícia da Itália, em artigo publicado por Il Messaggero, 07-03-2020. A tradução é de Luisa Rabolini.
Na última quarta-feira foi decretada a suspensão das atividades (...) didáticas nas escolas de toda a Itália. As últimas indicações sanitárias também aconselham contra apertos de mão, participação em conferências, eventos públicos e todos os tipos de aglomerações. Hoje, basta uma palavra errada para desencadear o pânico: eu tive pessoalmente a experiência disso nos últimos dias, quando, após minha manifestação no Senado sobre a emergência de Coronavírus, começou a circular um áudio de três minutos no qual me atribuíam declarações alarmantes, que na realidade eu jamais proferi. Notícias erradas, mas os medos de quem as fez eram verdadeiros e compreensíveis.
Nada pode nos dar certeza absoluta de que o coronavírus não possa se tornar mais letal ou contagioso, e estão sendo feitos esforços para evitar isso; nada garante que, quando as medidas de emergência expirarem, a situação retorne à normalidade. Continua sendo vital, agora, fazer todo o possível para esmagar a curva de contágios, diluindo e distribuindo o impacto das pessoas severamente afetadas pelo vírus ao longo do tempo e no território, para que nossos hospitais possam dar conta dele.
O que aprendi com uma participação de mais de trinta anos no método da ciência é que ela não serve para dar certeza sobre o futuro, nem para fornecer garantias de cura. Por esse motivo, em tempos de paz, é frequentemente desbancado pelo charlatanismo, sempre pronto a indicar, a um preço alto, a solução imediata, a cura milagrosa, a fórmula mágica infalível que acompanha a sedutora abordagem alternativa. Mas depois, em tempo de guerra, quando fica evidente que o risco zero em nossa vida não existe e o placebo não é suficiente, quando o chão parece desmoronar sob nossos pés, percebemos o quanto a ciência, com suas provas buscadas, encontradas, publicadas compartilhadas e consolidadas, seja a estrada mestra para nos reconectar com uma realidade incerta e em constante mudança. Uma realidade que diariamente tem que fazer as contas (matemáticas) com a nossa imperfeição e nossos erros sistemáticos de avaliação, os preconceitos ou os vezes enraizados em nosso cérebro, que de várias maneiras (comprar estoques nos supermercados e as irrazoáveis fugas da quarentena dos últimos dias nos demonstram isso mais uma vez) permaneceram os mesmos de quando vivíamos em bandos de caçadores-coletores.
Nestes dias de emergência sanitária, é essencial continuar a confiar nos números e estudar o que ainda não está claro. A ciência tem um método para fazê-lo: podemos estudar o fenômeno do contágio, reconstruir para trás a origem, as espécies animais das quais tudo geralmente inicia, os efeitos, a cura e a vacina. Com essas ferramentas, a União Europeia poderia organizar uma força-tarefa permanente para estar pronta, com a OMS, a enfrentar emergências semelhantes no futuro, otimizando os procedimentos sanitários e aprimorando tecnologias cada vez melhores, funcionais para continuar nossas atividades, evitando comportamentos sociais para nós profundamente arraigados, mas que se tornam perigosos na presença de uma patologia transmitida com o contato humano. Para esses casos limítrofes, será necessário identificar procedimentos regulatórios (fast track) rápidos para produzir e introduzir vacinas durante as epidemias que, em um mundo globalizado, provavelmente serão frequentes.
Hoje todo o país está fazendo um esforço titânico observado e apreciado pela comunidade científica internacional, também graças à excelência da classe médica e ao sistema nacional sanitário italianos. Cada um de nós colocou na mesa sua disposição em sacrificar horas de estudo, trabalho, lazer, vida, oportunidades de ganhos e trocas em nome da saúde de todos. É preciso reconhecer a cidadãos e instituições o senso de responsabilidade e seriedade ao adotar, respeitar e levar adiante com grande transparência medidas drásticas, aceitando suportar seu peso para evitar que a situação piore.
Sinto-me sensibilizada pela resistência de um sistema de saúde público já tão provado e de uma saúde privada pronta para fazer sua parte em um momento tão difícil.
Fico sensibilizada em perceber como os cidadãos encaram hoje a ciência com respeito, com grande confiança nas declarações e indicações dos estudiosos, com base em provas e dados; penso que isso demonstre como a maior responsabilidade da ciência, hoje como sempre, seja aquela de tornar o saber acessível ao maior número possível de pessoas, sem imprudência e sem alarmismos, como lembrou o Presidente da República Sergio Mattarella.
Nos próximos dias, não poderei comparecer ao funeral de um amigo próximo, apesar de querer muito estar perto de sua família. Um dos meus alunos discutirá sua tese via Skype e receberá cumprimentos em sua própria casa, na frente de uma tela, sem os seus amigos, os colegas de estudo e os professores que o acompanharam com orgulho em tal resultado. Forçados por rigorosas medidas de proteção da saúde pública a conter ou eliminar nossa propensão humana à socialidade, de repente percebemos hoje quão pouco peso estamos acostumados a lhe dar.
Muitos vírus são odiosos porque minam os aspectos mais belos da natureza humana, como o afeto, as carícias, os abraços e os beijos. Precisamos dos outros para dar valor e significado à nossa vida individual. Gosto de pensar na ciência como um esforço global para eliminar esses inimigos e outras doenças que afligem a humanidade e dar a todos liberdade e oportunidades.
Fico emocionada ao ver um país unido na dificuldade que coloca em ato, apesar de muitas incertezas, todos os procedimentos dolorosos necessários, e que esperamos sejam suficientes, superando interesses individuais, fragilidade e medos.
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