22 Agosto 2016
Alicia Massarini iniciou Biologia na Universidade de Buenos Aires (UBA), porque possuía o interesse de conhecer como o conhecimento científico podia intervir no campo social. Com efeito, desde muito cedo, problemáticas como a doença de Chagas revelaram seus sentidos em intermináveis noites sem dormir, mas cheias de sonhos. Tudo era maravilha até que precisou se exilar no México. A Ditadura a empurrava para fora das fronteiras nacionais e, com efeito, continuou sua formação na Universidade Nacional Autónoma do México (UNAM). Ali, adquiriu experiências muito valiosas que combinavam teoria e prática, um duo dinâmico, cujas raízes cimentaram um enfoque que vincula ciência e sociedade. Tempo mais tarde, regressou a Argentina, obteve uma bolsa do Conselho Nacional de Investigações Científicas e Técnicas (CONICET), realizou um doutorado em Biologia na UBA e pesquisou na prestigiosa equipe de Osvaldo Reig, até inícios de 2000.
O caminho de Adriana Schnek foi menos direto. Quando adolescente reunia um acúmulo de curiosidades e se destacava por uma inclinação artística muito potente que a convidava a ser bailarina, quase por inércia. No entanto, após sua passagem pelo Colégio Nacional de Buenos Aires, decidiu estudar Biologia porque se tratava de um campo que nucleava múltiplas áreas disciplinares que lhe interessavam. Após um começo pouco auspicioso, no 6º ano as coisas mudaram para sempre. Em sua trajetória, Reig também foi uma referência: foi aluna em sua primeira cátedra e, quase por arte de magia, os conhecimentos adquiridos foram sistematizados e integrados. O guarda-chuva da evolução se abria para ambas. Assim que se formou, dedicou-se ao ensino e percorreu todos os níveis educacionais. Com a mudança de século, viajou a França para realizar um mestrado em Epistemologia e História da ciência, na Universidade Paris VII.
Parágrafo em especial merece o biólogo e paleontólogo Osvaldo Reig (1929-1992), que após se exilar em várias ocasiões, obteve seu doutorado em Zoologia e Paleontologia na Universidade de Londres. Em 1984, retornou ao país e se tornou membro superior do CONICET. Além disso, foi professor na UBA e no Departamento de Ciências Biológicas (pertencente à Faculdade de Ciências Exatas e Naturais), e liderou o Grupo de Pesquisa em Biologia Evolutiva (GIBE). Foi, talvez, o principal expoente do enfoque evolutivo na Argentina. Uma perspectiva que representa o eixo articulador da Biologia contemporânea, na medida em que analisa os processos, as adaptações e os acidentes para interpretar a história da vida, de sua origem à atualidade. Porque, em definitivo, sem esta concepção – que supera uma perspectiva fragmentada, anacrônica e descontextualizada – seria difícil definir a Biologia como ciência.
Qualquer leitor que tenha em suas mãos a obra ‘Biología en contexto social’, imediatamente advertirá que se há um atributo que identifica o mundo biológico é sua densidade. Mais de 900 páginas explicam com rigor e beleza todas as complexidades que caracterizam a vida, de suas origens à atualidade. No entanto, as autoras não só realizam o esforço incalculável que implica condensar os processos históricos – de leitura amável, sólida e integral. A novidade radica na construção de um enfoque que, baseado no eixo evolutivo, consegue recuperar a centralidade dos cenários para penetrar na própria cozinha do conhecimento. A partir daí, edificam um ponto de vista que se propõe conhecer o modo como a ciência se produz, reproduz e é ressignificada.
Uma tentativa que pretende combater a especialização e a departamentalização dos campos do saber com o objetivo de dessacralizar deuses de papelão e derrubar premissas autocumpridas, pois a ciência não é universal, não é objetiva, nem muito menos neutra. Do mesmo modo, as disciplinas não são castelos, nem os investigadores cavaleiros que guardam terrenos. O livro representa um esforço para abrir as veias da academia, na medida em que as mensagens se comunicam, sem infantilizar o público. Não é necessário colocar o receptor em uma posição de desprestígio para promover o acesso e estimular a participação. Massarini e Schnek compreendem isto, possuem experiência e não a entesouram. Elas têm claro que se o conhecimento é asfixiado e não circula pelo tecido social, não serve para nada.
A entrevista é de Pablo Esteban, publicada por Página/12, 17-08-2016. A tradução é do Cepat.
Eis a entrevista.
Vocês são autoras de um dos livros mais importantes na tradição do pensamento biológico, em nível internacional e regional. Por que escrevem sobre Biologia?
Alicia Massarini: Pensamos que a Biologia é a ciência contemporânea mais significativa para compreender nosso presente e pensar de modo inteligente o futuro. Ocupa-se em explicar a história de tudo o que é vivo e como essa trama nos habilita um espaço. Das ciências (mal chamadas) “duras”, é a que mais integra. Nós, biólogos, aprendemos física, química e matemática. Com efeito, ponderamos de maneira articulada nosso objeto de estudo a partir da inter-relação de todos esses níveis, para construir o biológico.
De modo que “o biológico” constitui um enfoque superador.
A. M.: O biológico tem uma especificidade e uma complexidade próprias que permitem o desenvolvimento de uma perspectiva mais integral.
Adriana Schnek: A partir disso, nosso grande desafio como biólogos é a abordagem de outras complexidades. Recuperar visões e pontos de vista para ir além. O objetivo é ir do geral ao particular, mas sempre considerando a totalidade, porque caso se fragmente o biológico, a essência do vivo se resigna.
Compreendo que este não é o primeiro material em que trabalham juntas. Quando se conheceram? Como chegaram a escrever um livro central neste campo?
A. M.: Quando finalizei o doutorado, comecei a me preocupar em como o enfoque evolutivo poderia se desenvolver nas universidades do país, assim como também em instituições educacionais de nível primário e secundário. Deste modo, destinei uma parte significativa de meu tempo à divulgação e ao ensino da evolução. A ideia orientadora era a construção de ferramentas pedagógicas que pudessem servir aos docentes em suas aulas. Foi assim que nos encontramos com Adriana, primeiro, para redigir livros e diversos materiais de capacitação docente, e mais tarde para preparar cursos, organizar oficinas.
A. S.: A Editorial Médica Panamericana me consultou para apresentar um projeto com o objetivo de atualizar o material realizado em edições anteriores por Helena Curtis. Participei na 6ª edição, como coautora, e para a 7ª foi realizada uma seleção da qual participaram equipes de diversos países e, felizmente, fomos selecionadas. Realizamos um projeto muito importante que condensava tudo o que, em nossa perspectiva, era necessário ao livro. Confeccionamos uma prova piloto para enviar a Curtis (que naquele momento vivia) e a Sue Barnes (outra das coautoras que havia participado em edições anteriores).
O interessante é que Curtis não era bióloga, mas jornalista científica...
A. S.: Ela obteve uma bolsa na Universidade Columbia (Estados Unidos) e construiu uma longa trajetória na redação de textos com um estilo próprio, singularíssimo. Depois, publicou a primeira versão de Biologia... que, do meu ponto de vista, na atualidade se constitui como o melhor livro que estuda a disciplina. Mais tarde, ingressou Barnes como coautora, com quem mantemos contatos postais e nos comenta que está muito satisfeita com nossa contribuição.
A. M.: Antes de participar no livro, fomos leitoras e o amamos. É uma paixão que compartilhamos com muitos docentes e estudantes de biologia.
Como está estruturado?
A. M.: Nos primeiros capítulos, expomos nossa visão da ciência: um enfoque construído por nós e, claro, por um corpo de colaboradores de excelência, composto por docentes e pesquisadores. Desta maneira, tomamos as contribuições tanto de referências internacionais, como locais. No entanto, a grande novidade em relação a edições anteriores é o peso que conferimos ao “contexto social”.
De que maneira materializam a contribuição?
A. M.: Cada capítulo inicia com uma problemática sociocientífica relacionada à temática pontual. Do mesmo modo, o capítulo termina com a exposição de possíveis respostas ou, então, com novas perguntas que incentivem os leitores a pensar e refletir a respeito de seu próprio contexto. Por exemplo, no primeiro capítulo intitulado: “Origem da vida”, abordamos a vida sintética gerada a partir do laboratório. Também se somam trechos como “Temas em debate”. Neste caso, recuperamos a tensão ao redor do desenho inteligente. Além disso, se somam recortes jornalísticos, se incorporam tramas. Existem diversas formas de acessar o livro, que habilitam múltiplas leituras. Por outra parte, diferencia-se de edições anteriores por sua ancoragem no contexto nacional e regional.
Um enfoque para transformar a realidade
Parece existir um objetivo quase enciclopédico. A ideia de reunir todos os conhecimentos em um só livro. O que levaram em conta uma vez que foram selecionadas e começaram a trabalhar nele?
A. S.: Somos conscientes que nosso esforço consiste em realizar uma transposição didática. Com efeito, concebemos um trabalho de reconfiguração, de reinserção, de pensar e repensar as atualizações que se produzem no campo. Decidimos quais transformações não podem ficar fora, quais os pontos de vista que abandonamos e quais reconsideramos. Em muitos casos, recuperamos alguns acontecimentos que haviam ficado no esquecimento e que para nós são valiosos.
Se tivessem que caracterizá-lo, diriam que é um livro de divulgação científica?
A. M.: Não é um livro de divulgação, mas aponta para a educação e o ensino nos diferentes níveis pedagógicos. Nossa maneira de comunicar a ciência tem a ver com nossa concepção acerca dela. O propósito destes materiais tem a ver com democratizar seu acesso, sem abandonar sua complexidade. Em definitivo, esclarecer e tornar explícitos os processos pelos quais esses conhecimentos são construídos. Muitas vezes, são controversos, na medida em que entram em tensão por conflitos de interesses. Não compartilhamos a ideia de infantilizar a forma de comunicar a ciência com o suposto objetivo de torná-la mais acessível, porque isso coloca o interlocutor em uma posição de receptor acrítico.
O que vocês destacam, enfatiza a distância entre as práticas de difusão e de divulgação.
A. S.: Não se trata de ganhar o leitor com artifícios ou meios banais. Não é uma postura nova, nem própria de iluminados ou gênios. Pensamos com base na experiência das aulas e na demanda dos docentes com quem trabalhamos, na necessidade de incorporar a complexidade e as problemáticas atuais no ensino.
Já que sua maneira de comunicar a ciência se constrói em paralelo ao modo como pensam nela, o que significa destacar que “a ciência faz parte da cultura”? Como derrubar os mitos de neutralidade e objetividade que ainda perduram no campo?
A. S: Trata-se de um processo que implica devolver à ciência o lugar ao qual nunca deveria ter saído: a cultura. Embora a ciência emerge da cultura, em seguida, se torna um espaço de autoridade e é apresentada com uma suposta neutralidade, universalidade e objetividade. Trata-se de grandes mitos que não conduzem para lugar algum, nem colaboram no progresso do conhecimento. Em contraposição a isso, nós concebemos que a ciência é uma ferramenta a mais, mas não é a única, nem a superior.
A partir disso, quais outros saberes consideram que devem ser recuperados?
A. S.: Por exemplo, saberes tradicionais vinculados ao conhecimento da natureza que são desenvolvidos em vários países da região, como Bolívia e Equador. Construir um lugar de contrahegemonia para conseguir questionar certo autoritarismo e desmerecimento que a comunidade científica pratica quando não presta atenção ao que, com efeito, ocorre na comunidade.
A. M.: A ciência, neste sentido, é uma via de aproximação da realidade que tem suas lógicas e regras. Muitas vezes, assume-se que o científico é uma forma superior de conhecimento que pode atuar como árbitro nos conflitos e nas problemáticas complexas. Nós pensamos que é necessário desmistificar esta ideia. Uma representação social muito estabelecida que, em muitas ocasiões, é replicada pelos próprios cientistas e divulgadores. E tudo isso procuramos apresentar no livro.
Vocês realizam uma contribuição implícita que se esforça em relacionar os diversos campos e especialidades que compõem o saber científico. Neste sentido, como superar a departamentalização?
A. M.: Por um lado, a interdisciplinaridade representa um verdadeiro desafio para a universidade na Argentina e ainda não encontra seu lugar. Não existem espaços nos sistemas de pesquisa que promovam e confiram estabilidade aos projetos onde se integram os diferentes ramos da ciência. Precisa ir acompanhado de debates públicos que promovam a participação social, com o propósito de que o científico se vincule com outras lógicas.
A. S.: Nossa maior aposta no livro aponta para o diálogo acerca do modo como se constrói o conhecimento junto aos estudantes, docentes e pesquisadores da região. Um material que quebra a lógica da academia e sua ideia de produzir em instâncias que não se comunicam com a sociedade. Não pensamos tanto em colocar a citação de uma maneira correta, nem em indexar um artigo. O que nos interessa é a ciência como bem social, que devemos proteger e contribuir para se desenvolver.
A. M.: Em definitivo, procuramos fazer com que a biologia se torne uma ferramenta para poder pensar, intervir e transformar a realidade.
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