Segundo especialista em geopolítica, os nacionalismos fazem mal às nações e impedem soluções para resolução da crise internacional
Qualquer tentativa de previsão sobre como será o futuro das nações nas próximas décadas corre o risco de ser superada pela realidade. O que as análises geopolíticas permitem afirmar no momento é que o mundo vive uma fase de transição, na qual o “futuro radiante” está bastante distante. O que se observa no cenário internacional é que os países “não conseguem apresentar um front comum”, uma aliança de cooperação internacional que permita a superação das crises nacionais e globais, sublinha Manlio Graziano, especialista em geopolítica. Ao contrário, avalia, nacionalismos e protecionismos dificultam a reorganização de uma nova ordem mundial.
“Não vamos entrar numa nova ordem. (…) Podemos tomar as 20 potências do G20. Coloque todo mundo ao redor da mesa e pergunte para cada um quais as regras a seguir. Você acha que cada um vai responder a mesma coisa? Cada um vai apresentar as regras que lhe são úteis para o seu próprio país. Então, como fazer para chegar a um acordo? Não há meio para isso, porque nunca haverá alguém disposto a renunciar a algo. Não é teórico; é prático, é a realidade”, disse na videoconferência “A Guerra de Trump. Desequilíbrios internos e caos internacional”, promovida pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU em 01-07-2025.
Na atual conjuntura internacional, explica Graziano, os EUA, mas também outros países, culpam a globalização pelas crises e preferem “sair do mundo, destruir as regras que conduziram as relações internacionais” e “atacar os competidores” com a adoção de medidas protecionistas. De outra parte, a Europa, enfatiza, “não está em condições de decidir o que quer que seja” e muitos países veem a China como ameaça. Nesse contexto, assegura, o grande desafio das nações é de ordem política: “é como governar um país integrado ao resto do mundo”. “Neste caso, o que vemos não é nada agradável. Cada vez que leio as notícias, fico muito descontente. Todo dia acontece algo pior do que no dia anterior. É nessa realidade que vivemos hoje. O que não significa que, na política, como na vida também, as coisas tomem sempre uma única direção. Tudo pode acontecer. Não há um destino inexorável”.
Na conferência que integra o ciclo de estudos “A gramática do poder global. Desocidentalização, tecnoautoritarismos e multilateralismo no século XXI”, Manlio Graziano explica o papel dos EUA nas transformações geopolíticas desde o fim da Segunda Guerra Mundial, as crises que favoreceram a gestão de nacionalismos no mundo todo, e comenta os últimos acontecimentos da cena internacional: o genocídio em Gaza, a atuação de Israel com apoio dos EUA, a proposta de rearmamento da Alemanha e a divisão da União Europeia. E assegura: “A crise das relações internacionais que vivemos hoje começa e termina – até o momento presente – com os Estados Unidos”. A seguir, publicamos a videoconferência no formato de entrevista, com as perguntas formuladas pelos participantes do evento. A programação completa do ciclo de estudos está disponível aqui.
Manlio Graziano (Foto: Biblioteca Stense)
Manlio Graziano é graduado em Literatura francesa pela Universidade de Turim e doutor em Estudos italianos, pela Universidade Stendhal, na França. Posteriormente, especializou-se em Estudos geopolíticos. Leciona no Instituto de Relações Internacionais de Paris, Sciences Po, na Sorbonne, no Colégio da Europa e no Instituto de Geopolítica de Genebra. Publica artigos na Limes – Rivista Italiana di geopolitica e colabora com os periódicos Foreign Policy, Modern Italy, Geopolitical Affairs, International Affairs Forum, Heartland, Outre-Terre, Corriere della Sera e Il Sole 24 Ore.
Confira a entrevista.
IHU – O que explica a eleição e atuação de Trump no atual contexto histórico dos EUA?
Manlio Graziano – Donald Trump é o resultado ou produto da crise dos Estados Unidos. Claro que Trump agravou a crise do país e está fazendo isso de uma forma muito ativa, mas ele é produto da crise. Há alguns anos, um personagem como Trump nunca teria se tornado presidente da primeira potência mundial. Ele é, portanto, mais um sinal da profundidade dessa crise.
IHU – A crise internacional tem raízes nos EUA?
Manlio Graziano – A questão pode ser resumida assim: a crise das relações internacionais que vivemos hoje começa e termina – até o momento presente – com os Estados Unidos. Se quisermos fazer uma análise geopolítica, precisamos introduzir todo e qualquer assunto no seu contexto maior. Quando falamos em crise dos Estados Unidos, devemos retornar aos anos 1950, época em que os Estados Unidos dominavam o mundo de uma forma incontestável, com uma superioridade de todos os pontos de vista, político, econômico, militar e cultural. Em todos os setores, os americanos eram amplamente superiores aos outros. Eles alcançaram essa situação privilegiada porque haviam destruído totalmente os concorrentes durante a guerra, entre 1941 e 1945. No final da guerra, em 1945, os Estados Unidos produziam quase tudo que era produzido no mundo. Detinham 2/3 das reservas de ouro mundial, tinham a bomba atômica e estavam presentes em todos os continentes. Haviam vencido a guerra contra a Alemanha, contra a União Soviética e ganharam a guerra pela França e pela Rússia, não contra a Rússia. Destruíram e aniquilaram totalmente o Japão e a Alemanha e, portanto, não tinham rivais no mundo; podiam fazer o que quisessem. E o que fizeram foi ditar as regras do pós-guerra, tornando-se a potência estabilizadora da ordem do pós-guerra.
Todas as guerras e decisões tomadas foram no sentido de perpetuar a dominação dos Estados Unidos nos anos seguintes. Podemos dar exemplos: a divisão da Europa entre os Estados Unidos e a União Soviética, os Acordos de Bretton Woods, de 1944, criando uma série de organismos econômicos internacionais que respondiam aos interesses dos Estados Unidos com a superioridade do dólar como divisa internacional. Posteriormente, os Estados Unidos dão origem à Organização das Nações Unidas (ONU), a primeira das organizações multilaterais que depende totalmente dos Estados Unidos, porque se os Estados Unidos se retirassem da ONU, não teria sentido. Há também uma série de organizações dependentes dos Estados Unidos com o objetivo de perpetuar a sua potência. Só que a dinâmica das relações internacionais é regulada por um mecanismo regular, constante, que é sempre o mesmo: o mecanismo do crescimento desigual, do desenvolvimento desigual. Isto quer dizer que os países têm ritmos de desenvolvimento diferentes.
IHU – O que mais acontece no contexto dos anos 1950?
Manlio Graziano – É justamente nesse período que o ritmo, o desenvolvimento dos Estados Unidos e do resto do mundo começa a se distanciar. Os Estados Unidos, a partir de 1950, têm um crescimento menor, mais lento, comparado ao resto do mundo. Entre 1950 e 1975, ou seja, num período de 25 anos, os Estados Unidos tiveram um crescimento econômico medido em PIB da ordem de 4% ao ano, o que não é ruim. Mas a Alemanha, a França e a Itália tiveram ritmos superiores e, às vezes, superiores em 1/3. O Japão tinha um ritmo que era o dobro do ritmo de crescimento dos Estados Unidos.
Isso significa que a partir daí os competidores dos Estados Unidos, Alemanha, Japão e a França, junto com a Itália, começaram a se desenvolver mais rapidamente e começaram a reduzir as margens de ação dos Estados Unidos. Esta discrepância no plano econômico não se traduz mecanicamente no plano político, mas, como bem explicou o historiador Paul Kennedy, isso tem uma tradução política a longo prazo. O que que isso quer dizer? No início, não se observa os desequilíbrios e as relações de força, mas, a longo prazo isso se torna evidente. Quando é que os americanos perceberam que tinham perdido o terreno politicamente? Isso ocorreu no fim dos anos 1960, no início da década de 1970. A percepção disso foi consequência da derrota na guerra do Vietnã. A guerra no Vietnã foi a prova de que os Estados Unidos não podiam mais fazer aquilo que faziam antes e que sabiam fazer. Perderam, portanto, terreno.
Entre 1941 e 1945, os Estados Unidos ganharam duas guerras: uma guerra na Europa e uma guerra na Ásia. Na década de 1960, 15, 20 anos depois, desde o final da Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos não têm mais condições de ganharem aquilo que no jargão político-militar chamaríamos de uma “meia guerra”. A guerra do Vietnã foi considerada uma “meia guerra”. Eles tinham ganho duas guerras mundiais. 15 ou 20 anos depois, eles não estavam mais em condições de ganhar “meia guerra”. E aí perceberam que as coisas tinham mudado. Uma primeira decisão foi tomada em 1971, com o presidente Nixon, que decide pôr fim à conversibilidade do dólar em ouro, um dos pilares do sistema de Bretton Woods.
Bretton Woods dá origem ao Banco Mundial (BM) e ao Fundo Monetário Internacional (FMI). Então, a década de 1970 é aquela em que os Estados Unidos sofrem reveses um após o outro. Em 1975 ocorre uma crise, uma recessão mundial, a qual mostra que as potências emergentes não sofrem a crise do mesmo modo. Em 1975 nasce o G5, depois veio o G7. O nascimento do G7 é importante porque, neste organismo que se reúne pela primeira vez na Floresta de Rambouillet, próximo de Paris, estão presentes as potências que ganharam a guerra, França, Estados Unidos e Reino Unido, mas também as potências que perderam a guerra, Japão e Alemanha. Isso significa, portanto, que os Estados Unidos, sozinhos, não são mais capazes de fazer as coisas sem os outros. O G7 não é um organismo decisivo, mas, mesmo assim, a passagem para um mundo multipolar ocorreu. Há diferentes polos de potência, e os europeus e o Japão são integrados nessa ordem.
Outra etapa importante é o colapso da União Soviética: houve um equívoco nesse caso e na crítica histórica ainda há esse equívoco quanto ao sentido ou à importância disso. O colapso da União Soviética foi saudado como a vitória dos Estados Unidos na Guerra Fria. Não vou falar sobre a Guerra Fria, mas é importante entender que a ordem que surge no fim da Segunda Guerra Mundial foi chamada de ordem bipolar porque tínhamos dois polos, o polo americano e o polo soviético.
Imaginem um edifício sustentado em dois pilares. Se vocês tirarem um pilar, o edifício vai começar a tremer, na melhor das hipóteses. E foi isso que ocorreu posteriormente: os Estados Unidos tinham a Europa dividida e, quando a União Soviética desaparece, perdem o contrapoder. A responsabilidade dos Estados Unidos nas relações internacionais aumenta, portanto, e aumenta quando os Estados Unidos estão mais fragilizados não do ponto de vista absoluto, mas relativo, porque em 1945 as potências europeias estavam fragilizadas – Alemanha, Japão, China, como os conhecemos hoje, não existiam em 1975 –, mas depois de 1991, quando desaparece a União Soviética, as fragilidades desaparecem. Todos os países entram em competição e colaboração com os Estados Unidos. A queda da União Soviética foi, portanto, mais um problema para os Estados Unidos do que uma solução, porque os Estados Unidos ficaram sozinhos diante de um mundo que se tornou multipolar e, naquela conjuntura, os Estados Unidos estavam menos equipados do que antes, em 1945.
O que vai agravar o problema é o fato de que os americanos interpretaram equivocadamente essa mudança. Eles pensaram que a guerra tinha terminado, a paz mundial estava consagrada e tudo estava ocorrendo da melhor forma possível, no melhor dos mundos. Mas não. Nos anos 1990, os Estados Unidos tentaram colocar algumas peças no tabuleiro de xadrez para mostrar sua influência mundial, como, por exemplo, a dupla intervenção americana na Iugoslávia. Mas, nesse período, os Estados Unidos se deitaram sobre os louros da vitória da Segunda Guerra Mundial e não perceberam o que poderia ocorrer depois. Aproveitaram-se do crescimento da emergência chinesa para fazer negócios e para impedir os outros de negociarem. Os dirigentes econômicos americanos quiseram participar dessa corrida rumo ao ouro na abertura chinesa não só porque sabiam que era uma maneira de fazer negócios de ouro, mas também para impedir os europeus e os japoneses de fazerem isso sozinhos.
Hoje se fala muito sobre a entrada da China na Organização Mundial do Comércio (OMC), no governo Clinton, mas, à época, não houve oposição a essa aventura. Houve alguns nichos de oposição, mas as classes política e econômica americanas queriam que o mercado chinês se tornasse uma espécie de eldorado para os investimentos americanos. Eles não perceberam que se um mercado se abre e oferece oportunidades corre-se o risco, ao mesmo tempo, de que esse país se torne um competidor. Ou seja, há um mecanismo normal no sistema capitalista: quando se faz investimentos, se enriquece a cultura. Esse é o caso de toda a história de colonização. As potências coloniais levaram capitais para as regiões colonizadas e influenciaram ali também a cultura. Outro exemplo é a própria independência dos Estados Unidos no fim do século XIX. A mesma coisa aconteceu com a China.
IHU – Qual é a situação dos EUA e do mundo a partir do novo milênio, quando irrompem novas crises?
Manlio Graziano – Nos anos 2000, tivemos uma série de decepções e desilusões profundas. O século começa com o colapso da bolha informática e tecnológica. Investiu-se muito na bolsa, com enormes capitais, considerando-se que era o modo mais fácil de fazer dinheiro e, de repente, no início do século, a bolha explode e quase tudo que tinha sido investido nos cinco anos anteriores foi perdido. Depois, ocorrem outros eventos, como os atentados de 11 de setembro, em 2001, as guerras fracassadas, perdidas no Iraque e no Afeganistão. Tudo isso contribuiu para a perda de credibilidade dos Estados Unidos.
Falei sobre a “meia guerra” no Vietnã, mas, nesses casos foi menos do que “meia guerra”. Os Estados Unidos não conseguiram ganhar essas guerras, ao contrário, desencadearam uma onda de terrorismo internacional com a invasão do Iraque e do Afeganistão. Foi um paradoxo de uma guerra que foi chamada de guerra contra o terrorismo, mas que, na verdade, acabou sendo uma guerra que alimentou o terrorismo. Os atentados cometidos no Iraque e no Afeganistão coincidem com a chegada dos Estados Unidos nesses países. Há uma perda, então, de credibilidade dos Estados Unidos. Eles intervêm e o resultado é que agravam as situações, não as resolvem.
Mesmo antes do fim da primeira década do século XXI, ocorre a crise do subprime, em 2008, com responsabilidade dos Estados Unidos. Acrescenta-se aí mais uma camada de perda de credibilidade dos Estados Unidos em relação ao bom funcionamento da economia mundial. É uma grave crise de credibilidade, entre outras coisas. A crise de 2008 explica o nascimento do BRICS. É o momento em que todo o mundo fala sobre o BRICS. Considera-se que há novas potências emergentes – é preciso coragem para considerar a Rússia uma potência emergente, mas tudo bem. As potências emergentes, então, supostamente, iriam se instalar.
Não sei se no Brasil houve a mesma percepção do que no exterior – quando estamos dentro da situação, vemos as coisas de um modo diferente, mas pouco tempo depois, não se falava mais dos BRICS. Eu me lembro de ter ido buscar na Wikipédia se o BRICS ainda existia, porque não se falava mais sobre eles. E, de fato, a crise de 2008 foi como um maremoto que causou um tsunami e atingiu muitos países do BRICS: Brasil, Índia, África do Sul e desacelerou muito o crescimento chinês. Foi aí que a ideia de que esses países poderiam apresentar uma alternativa desapareceu. Começou-se novamente a falar do BRICS quando a Rússia atacou a Ucrânia. Muitas vezes fala-se do BRICS como um contraponto ao Ocidente, mas não concordo muito com essa denominação.
IHU – Qual o legado da crise de 2008 e seus efeitos políticos na década seguinte?
Manlio Graziano – O mais importante da crise de 2008 diz respeito ao fato de que a população dos países que dominaram o mundo nos séculos anteriores percebeu que o futuro não será tão bom quanto o passado. Europa, Estados Unidos e Japão gozam de grandes privilégios e uma parte desses privilégios foi perdida. Isso se tornou evidente com a crise que afetou muita gente, principalmente, nos Estados Unidos. Pessoas ficaram sem nada com essa crise. Essas pessoas começaram a dizer que a culpa da situação gerada pela crise era da globalização, dos competidores, dos países emergentes – como sempre, a culpa nunca é nossa, é sempre dos outros; somos sempre vítimas da maldade dos outros, nunca somos os malvados.
De toda forma, essa sensação, esse sentimento, com bases sociais e reais de perder aquilo que havia sido economizado durante a época das vacas gordas, se transforma em uma sede de revanche, de vingança. Como a culpa é dos outros, como a culpa é da globalização, é preciso sair do mundo, destruir as regras que conduziram as relações internacionais até então. É preciso atacar os competidores, inclusive as tarifas alfandegárias. E vejam, foi preciso um certo tempo, mas essas posições se afirmaram na cena política americana e não só lá. Há uma tendência mundial para isso. Na Europa e nos Estados Unidos isso é mais evidente, mas também temos o caso da Filipinas, do Brexit, ou seja, casos no mundo inteiro, em Israel, na Índia. São casos de países que enfrentaram governos nacionalistas, ultranacionalistas, que pensam que se fechar em si mesmos é a solução para todos os problemas.
IHU – Os nacionalismos e protecionismos foram sendo gestados em razão das crises anteriores?
Manlio Graziano – A reação americana se desenvolveu aos poucos. Mesmo sob a presidência de Barack Obama, que foi eleito pouco depois do início da crise de 2008, os Estados Unidos estão à frente, em termos de medidas protecionistas. Os países do G20 assinaram um documento, em 2009, dizendo que era preciso tomar cuidado para não cair na armadilha do protecionismo, mas todo mundo produz medidas protecionistas e os Estados Unidos em primeiro lugar. Esse momento marcou o início de tudo de uma forma discreta e depois, quando Trump foi eleito, isso se tornou menos discreto, tornando-se até mesmo a linha política, que é inclusive uma linha política compartilhada pelos republicanos, mas algumas dessas ideias também são compartilhadas, de certa forma, pelo partido democrata. Temos aí uma combinação de vários fatores: o fator da desaceleração da presença dos Estados Unidos no mundo, da credibilidade no Iraque e no Afeganistão. Em tudo isso se enxerta o populismo interno que deseja punir o resto do mundo que teria se aproveitado da generosidade dos Estados Unidos e teria tirado proveito.
Então, a ideia é fechar-se em si mesmo e abandonar os compromissos. Há um fundo de verdade em tudo isso: os Estados Unidos não conseguem mais sustentar todos os compromissos. Hoje, a tática de se fechar é total; é um retraimento total, abandonando o resto do mundo. Os EUA querem lutar contra o aumento do déficit do Estado porque há uma dívida acumulada. Algumas leis que serão votadas em breve vão multiplicar a dívida americana. E as coisas não se limitam a isso porque dentro dos Estados Unidos há um acerto de contas que afeta vários setores, principalmente todos os setores que tornaram os Estados Unidos grande. O slogan de Trump, “Make America Great Again”, é sentido porque nunca podemos recuperar o passado. Tudo o que fez a América grande foi desmantelado pela administração americana. Podemos falar sobre as instituições, as universidades. Todos aqueles que investiam nos Estados Unidos podiam saber que contavam com um sistema político confiável.
IHU – Como avalia a política dos EUA em relação aos imigrantes nesse contexto?
Manlio Graziano – Os Estados Unidos foram constituídos essencialmente pela imigração. Até mesmo a esposa de Trump é imigrante. Os europeus colonizaram também os Estados Unidos, se instalaram no país. Tocar nos imigrantes é tocar na jugular de tudo que fez funcionar os Estados Unidos e tudo que tornou a América grande. Hoje, uma série de setores existem graças à mão de obra imigrante, seja legal ou ilegal. As batidas da polícia nas fronteiras americanas obrigaram várias empresas a fechar porque não havia mais trabalhadores. A agricultura também foi afetada. Mas isso vale não só para os Estados Unidos, mas para o mundo inteiro. Sem os imigrantes, os Estados Unidos não poderiam existir, porque foram eles que construíram o país.
IHU – Qual pode ser o efeito internacional do protecionismo norte-americano?
Manlio Graziano – Se os Estados Unidos decidissem se suicidar ou se sabotarem, poderíamos dizer algo mais ou menos assim: “Lamentamos a decisão, mas o azar é seu”. Mas, mesmo assim, os Estados Unidos continuam sendo a primeira potência mundial. Não sei por quanto tempo, porque estão fazendo de tudo para demolir e desconstruir esse papel, mas, ainda assim, continuam sendo a primeira potência mundial. Se os Estados Unidos caírem, o resto do mundo vai cair. Poderíamos dizer que não há só os Estados Unidos no mundo. Há outros países da Europa, além da Rússia, China, Brasil, países da África. É verdade, mas, por enquanto, não conseguimos ver isso muito bem.
IHU – A Europa não está conseguindo se apresentar como uma alternativa aos EUA?
Manlio Graziano – Quando falamos sobre a Europa, não sabemos exatamente do que estamos falando. Será que estamos falando da União Europeia? A União Europeia não está em condições de decidir o que quer que seja. A Europa tomou algumas decisões no início do ano, votou documentos – e aliás, ninguém ouviu e informou a Europa quando estavam acontecendo algumas coisas no mundo. O cúmulo dessa situação é que os europeus se reuniram em meados de junho para saber qual linha seria aplicada no Oriente Médio. E enquanto eles estavam reunidos, o Irã foi atacado sem que eles fossem avisados. Ou seja, eles sequer foram informados sobre o que estava acontecendo. Não sei se os Estados Unidos estavam informados sobre o ataque de Israel, mas, de todo modo, os europeus foram, por enquanto, excluídos desse quadro, desse tabuleiro. Isso é um grande problema para os europeus.
No plano da segurança, eles foram protegidos pelos Estados Unidos e agora estão desprovidos porque a situação internacional não está indicando que viveremos dias melhores. E os europeus não sabem o que fazer. Este é o grande problema. Por enquanto, não temos a Europa; temos países europeus e todas as medidas tomadas até agora foram tomadas como países europeus singularmente. Não temos um exército europeu, não temos decisões unitárias europeias. A Europa, por enquanto, está excluída e os outros países estão isolados.
Entendo que o Brasil possa querer reforçar o Mercosul, mas com Milei é difícil e sem a Argentina o Mercosul não é grande coisa. No governo argentino anterior, com Bolsonaro no Brasil, era a mesma situação, o mesmo problema. A hipótese de um bloco regional parece se afastar muito a partir da crise de 2008, porque a ideia de criar blocos regionais, até então, funcionava bem. A região do extremo Oriente tomou decisões para acordos de livre comércio, mas há problemas políticos e muitos países não têm aspectos em comum politicamente, como China, Coreia do Sul, Filipinas, Vietnã. Sem contar que há outra potência emergente na região, a Indonésia. E o que dizer da Austrália? A Austrália hoje está um pouco órfã, como muitos outros países. Um acordo foi assinado com o Reino Unido e com os Estados Unidos, mas provavelmente tudo isso vai ser rediscutido, segundo Donald Trump. O que dizer do Canadá? Está sendo deixado pelos Estados Unidos.
Veja, então, os outros países não conseguem apresentar um front comum [aliança de cooperação]. Sabemos que a China pode representar uma ameaça para esses outros países. Então, não querem apresentar um front comum. Portanto, vivemos numa fase de transição: não temos um futuro radiante e, no fundo de toda essa confusão, temos os Estados Unidos. Começamos com os Estados Unidos e estamos terminando com os Estados Unidos. A crise nos Estados Unidos afeta o mundo inteiro e dificulta muito as soluções.
IHU – Predominará uma ordem multipolar ou uma ordem bipolar com Estados Unidos e China?
Manlio Graziano – Não vamos entrar numa nova ordem. Não haverá ordem. Não há condições para criar uma ordem. Uma ordem multipolar pressupõe o fato de termos vários polos. Podemos tomar as 20 potências do G20. Coloque todo mundo ao redor da mesa e pergunte para cada um quais as regras a seguir. Você acha que cada um vai responder a mesma coisa? Cada um vai apresentar as regras que lhe são úteis para o seu próprio país. Então, como fazer para chegar a um acordo? Não há meio para isso, porque nunca haverá alguém disposto a renunciar a algo. Não é teórico; é prático, é a realidade.
Vou dar um exemplo muito evidente, que está diante dos meus olhos há três décadas. Na União Europeia tem países com o desejo de aderir às regras comuns. No entanto, hoje, a União Europeia, que nasceu em 1992, está bloqueada porque não há uma União Europeia, mas, sim, 25 países da União Europeia com interesses diferentes. No entanto, eram eles que estavam mais movidos pela ideia de chegar a um acordo, um consenso. Mas em 1992, vocês podem me dizer, eles não eram 27 países porque outros foram entrando depois. Tudo bem. Mas se tomarmos os seis países fundadores, podemos pensar que, entre esses seis, os que estavam mais de acordo eram a França e a Alemanha, mas a França e a Alemanha sequer estão de acordo hoje.
E o que que significa entrar em acordo nesses organismos internacionais? Entrar em acordo é se perguntar ao que eu estou disposto a renunciar. Os mecanismos de compromissos de acordos são assim: eu tenho de renunciar a isto e você renuncia àquilo. Eu vivo na França e digo que a França não está disposta a renunciar ao que quer que seja. Vocês devem saber que o presidente Lula esteve em Paris há alguns dias para defender a causa da associação entre Mercosul e União Europeia e a resposta que ele obteve do Macron foi não. A França vai se opor ao acordo. As normas de preservação do planeta são muito bonitas, mas o problema do Macron são os 500 mil agricultores franceses que bloqueiam um mecanismo estratégico, que não é o mesmo mecanismo estratégico do Brasil ou da Úrsula von der Leyen, da União Europeia. E a França diz não.
Como podemos pensar França e Alemanha, países que em 1957 se reuniram num mercado comum, ficaram de mãos dadas durante décadas e disseram ao mundo inteiro que estavam unidos e não iriam mais fazer guerra entre eles? Pois bem, eles não concordam hoje. O protecionismo, para a Alemanha, é a pior coisa que se pode imaginar, porque a Alemanha é o terceiro país exportador mundial. Mas França põe veto ao Mercosul, à ordem multipolar. Portanto, é impossível. O que a França faz, todos os outros países também fazem. Não há dúvidas.
A ordem bipolar, por sua vez, entre China e Estados Unidos, não é possível. Com a União Soviética era possível porque a União Soviética não era competidora em relação aos Estados Unidos. Um economista sueco fez um bom quadro da União Soviética. Na melhor das hipóteses, dizia, a União Soviética era um país do terceiro mundo que funcionava bem. A União Soviética era um país que vivia num certo ostracismo e começou a ter relações econômicas com a Alemanha na década de 1970 em relação à energia. Mas antes, nada. A União Soviética não representava um competidor para os Estados Unidos. Os Estados Unidos podiam, então, ter um acordo com a União Soviética porque não eram incomodados.
A China também. Mas hoje, ela é o primeiro exportador mundial, o segundo investidor do mundo. Há toda uma outra dimensão. É bem diferente. A China está entrando no terreno dos Estados Unidos e é complicado entrar em acordo – não podemos excluir o fato de que Trump queira fazer uma espécie de diretório mundial com Xi Jinping e Putin. Isso é possível. Na sua cabeça passa essa ideia. Ele se vê como rei dos Estados Unidos e aprecia muito os ditadores. Ele gosta muito de Putin e de Xi Jinping.
Embora EUA e China cheguem a um acordo de alguma maneira, isso não significa que haja um acordo estratégico, porque os interesses da China e dos Estados Unidos são incompatíveis. A China quer ter acesso ao mar da sua costa livremente e os Estados Unidos querem impedir esse acesso, querem manter a sua posição no Pacífico. Fizeram guerra com o Japão porque o Japão queria o Pacífico. São coisas que Donald Trump não conhece. Marco Rubio, sim. Vance é ainda pior. Se os EUA decidirem se retirar voluntariamente do Pacífico, dizendo para a China ficar com Taiwan e fazer o que quiser, isso vai evitar uma guerra em Taiwan, entre Estados Unidos e China, mas vai provocar a bancarrota dos Estados Unidos. Uma das razões pelas quais os Estados Unidos são fortes no mundo é porque dominam o Atlântico e o Pacífico.
IHU – Reconhecendo que a crise dos Estados Unidos se alastra pela Europa e por outros países do mundo, não seria mais preciso falar em uma crise independente das fronteiras nacionais?
Manlio Graziano – Sim, claro. É isso. Ela é independente das fronteiras nacionais e o mais importante ainda é que todos aqueles que pensam resolver a crise internacional fechando-se dentro das fronteiras nacionais, agravam a crise. É um grande problema. Não temos o que fazer.
O problema é que as pessoas não sabem como funciona a sociedade capitalista. É simplesmente isso. Durante décadas e anos, pensou-se que o capitalismo era a solução de todos os problemas – o que foi verdadeiro durante certo tempo. No período da globalização, a humanidade deu um salto nunca visto em tão pouco tempo. Mas quando conhecemos as regras de funcionamento do capitalismo, vemos que depois desse grande salto tem um período de fechamento, de mais restrição, porque a o capitalismo precisa de mais riquezas, mais produção, e todo mundo, claro, pode aproveitar das riquezas, mas, em dado momento, o mercado não consegue mais absorver todos os produtos. A globalização, então, na sua constituição física, no seu germe, prevê também algo sem fim. E hoje, no entanto, o que estamos fazemos? Estamos acelerando o final da globalização. Como sabemos? É como se soubéssemos que vamos morrer e estivéssemos acelerando isso. É o que está acontecendo hoje. É como se estivéssemos à beira de um precipício, prestes a cair.
Os nacionalistas fazem mal à nação e não o bem, justamente porque em vez de tentar encontrar um modo de ir em frente, eles andam para trás, em marcha ré. Por isso essa ideia de querer fazer a América grande de novo, o Brasil grande novo etc. Mas atrás disso não tem nada. É impossível dar marcha ré. Sempre vamos em frente. O que temos à nossa frente pode ser pior, mas não podemos dar marcha ré.
Vivemos, de fato, numa crise do sistema capitalista; o capitalismo sofre pela sua riqueza. Essa é uma questão que foi descoberta há bastante tempo. Não me lembro mais do nome de um utopista francês do final do século XIX, mas ele dizia que via como o mundo estava começando a funcionar: um sistema que produz muito, de fato, mas, como vivemos, em um sistema de mercado. Se o mercado não é capaz de absorver o que é produzido, fica complicado. É o mecanismo de 1929, como já vimos na história. É uma crise desta ordem.
Muita gente fica contente, pensando que se o capitalismo é ruim, depois vamos criar algo diferente necessariamente. Quem pode prever e dizer o que virá depois? Falar sobre o futuro? Tivemos o capitalismo e uma crise global. O que veio depois de 1929? Novamente o capitalismo. Então, não dá para pensar que uma crise global do capitalismo vai provocar o fim do capitalismo. Pensar que o mundo vai melhorar depois da crise do capitalismo é uma hipótese. Mas não sei, não sei como responder. Não posso. Meu papel é analisar e não fazer previsões. Mas posso dizer o que não vai acontecer: a possibilidade de colapso do capitalismo depois de uma crise é muito distante. E a possibilidade de que depois do desaparecimento do capitalismo tenhamos uma bela sociedade, também é um problema.
IHU – Como o senhor avalia o genocídio televisionado em Gaza e o silêncio cúmplice da comunidade internacional, bem como o papel dos Estados Unidos? Existe alguma possível saída para o fim do extermínio palestino?
Manlio Graziano – Primeiramente, não gosto da palavra genocídio. Detesto porque é uma frase inflacionada que não significa mais muita coisa. A partir do momento em que Donald Trump fala de genocídio dos brancos na África do Sul, acho melhor eliminar a palavra do vocabulário.
Deixando um pouco de lado a questão terminológica, não gosto muito dessa palavra porque é muito politizada – e eu faço análises e não crio polêmicas. Seja como for, existe um massacre sistemático, certamente, dos palestinos em Gaza. Isso vai continuar não só em Gaza, mas também na Jordânia. Não vai parar. Se eu tivesse uma solução para pôr fim a esse massacre, aliás, massacre associado à violação total das normas do direito internacional, eu a implementaria, mas, lamentavelmente, não tenho essa solução. Israel está se lixando para o direito internacional, faz o que quer, sem qualquer incômodo.
Há responsabilidades que vão além de Israel. Isso é preciso dizer. Não só os Estados Unidos. Da parte dos Estados Unidos não poderíamos esperar algo de diferente. A partir de 1973, os Estados Unidos se associaram a Israel de uma forma biunívoca e perderam a capacidade de exercer pressão sobre Israel. Esse é um exemplo bem evidente do enfraquecimento dos Estados Unidos. Há 15 dias, no ataque contra o Irã, vimos quem manda nos Estados Unidos. Foi Netanyahu quem tomou a iniciativa do ataque e os Estados Unidos aproveitaram para se vangloriar. Os Estados Unidos não são mais capazes de frear Israel, mas são freados por Israel. Os Estados Unidos perderam qualquer capacidade de solução dos conflitos.
Biden não foi capaz de fazer algo porque ele não tinha vontade de fazê-lo. Ele repetiu a Netanyahu que ele não devia se comportar daquela forma, mas Netanyahu continuou se comportando e os Estados Unidos continuou fornecendo armas para Israel. Os Estados Unidos perderam toda a capacidade, mas os europeus também não conseguiram intervir. Quando viram o ataque contra o Irã, os países europeus, de certa forma, ouviram a propaganda israelense. Dois pesos, duas medidas. Em relação à Ucrânia, os europeus também se retiraram do jogo.
Na verdade, a ideia de Macron, de reconhecer a Palestina, me parece, a rigor, insultante e, além disso, é tão desnecessária, que chega a ser insultante, porque reconhece algo que não existe. Isso é demonstrar, é dar um sinal de impotência da França. O que dizer dos outros países? Os outros estão do outro lado, mas de nada adianta que a África do Sul ou o Brasil ou a Rússia digam algo sobre Israel. Isso não ajuda porque é um posicionamento que não resolve o problema.
Seria necessário colocar Israel contra a parede, dizendo que Israel tem de parar. Mas quem pode fazer isso são mais os amigos de Israel do que aqueles que se opõem ao país. O Paquistão nunca poderá resolver essa questão. É um exemplo. Mas, institucionalmente, se um país é contra Israel, ele não pode intervir, porque não vai ser ouvido, simplesmente. A Turquia poderia ter desempenhado esse papel, mas Erdogan quis se promover no Oriente Médio e, para se promover no Oriente Médio, é preciso se opor a Israel. E assim ele acabou perdendo a possibilidade de desempenhar o papel de mediação, porque tradicionalmente a Turquia tem excelentes relações com Israel e também com os países árabes.
Os outros países, nem se fala. Ficam silenciosos, não dizem nada. Não vejo quem poderia dizer a Israel, com capacidade de persuasão, que ele tem de parar. Os únicos que poderiam dizer isso são os americanos. Aliás, isso foi feito em 1973, com os russos. Os americanos e os russos concordaram em dizer para os israelenses parem e os israelenses pararam. Se os americanos disserem que não vão mais fornecer armas, eles param.
IHU – O Brasil tem uma posição delicada junto com os demais países da América, pois é vizinho dos Estados Unidos e a intervenção dessa potência é larga na política brasileira, sobretudo pela extrema-direita. O senhor tem algum palpite em relação a como o Brasil pode proteger a soberania e os interesses da própria população ao invés dos interesses econômicos estrangeiros?
Manlio Graziano – Os interesses das populações dos diferentes países são preservados das relações do resto do mundo. Não é nos isolando que podemos melhorar as condições da população. A ideia de que os capitais estrangeiros são perigosos é uma ideia equivocada. Vejam os chineses. Eles se tornaram o que são graças aos capitais americanos, japoneses etc. A presença estrangeira de capitais estrangeiros é um benefício. Claro, os países precisam ser capazes de se governarem, precisam resolver seus problemas. A China, depois da sua entrada na OMC, sabia o que queria, conseguiu resolver alguns problemas, estabelecer condições.
O problema, que não é específico do Brasil, mas de muitos países, inclusive da Itália, onde estou agora, e da França, são as crises políticas. A França, na verdade, não tem um governo, uma maioria no parlamento. Os problemas, na verdade, não são os mesmos. Se, dentro do país, o governo não é capaz de dirigir o tráfego, digamos assim, a circulação, isso gera um problema, porque qualquer um que investir e ver que é positivo, vai investir, mas isso depende de quem recebe os investimentos. A questão, repito, é como governar um país integrado ao resto do mundo.
A integração pode começar no plano regional. Desde o início deste século, houve uma série de hipóteses de organizações regionais na América do Sul, na América Latina. O mais importante, claro, foi o Mercosul, mas houve outras iniciativas. O Mercosul é uma iniciativa importante, mas, francamente, como disse antes, não vejo de que modo Argentina e Brasil possam entrar em sintonia. Há hostilidades históricas, mas, além disso, há o desequilíbrio político. Recentemente, vimos os peronistas no poder e, no Brasil, Bolsonaro. Agora, a coisa se inverteu. Milei não é muito favorável ao Mercosul. Ele ainda não retirou o país como prometeu fazê-lo. Mas se a Argentina se retirar do Mercosul, acabou. Mas se o Mercosul funcionar, é uma arma a mais para negociar com os outros, com o resto do mundo.
É preciso conversar com o resto do mundo, esperando ser ouvido pelo resto do mundo. Se vocês esperam que Trump queira fazer um acordo com Mercosul, vocês são muito otimistas. Repito, nenhum país pode se fechar em si mesmo sem agravar a sua própria situação disso. Disso, tenho certeza.
IHU – Como percebe o rearmamento da União Europeia, especialmente da Alemanha, em meio ao crescimento da extrema-direita no continente? Poderia falar mais da reconfiguração da relação Estados Unidos/União Europeia?
Manlio Graziano – Não há um rearmamento da União Europeia. A União Europeia não tem um exército, portanto, não pode se rearmar. A União Europeia não tem exército porque não tem uma política externa. Há um projeto de rearmamento bastante instável, mas é dos países europeus. O rearmamento da Alemanha, no entanto, é um fenômeno interessante de vários pontos de vista, porque quando o chanceler diz que a Alemanha quer ter o exército mais poderoso da Europa, ele está dizendo uma coisa que é possível, porque a Alemanha tem recursos para se tornar a potência militar mais importante da Europa. Mas há um espectro do passado, digamos assim, e isso é um problema.
A questão interessante em tudo isso é que a França não reagiu à declaração do chanceler alemão. Isso é muito interessante em termos de análise porque, normalmente, os franceses começariam a reconstruir a linha, mostrando que a Alemanha, a partir do século XVII, já constituiu uma ameaça. Hoje, contudo, não houve reação da França. Isso nos leva a crer que a declaração do chanceler foi em acordo com a França. Do contrário, a França teria reagido.
Quando digo a França, não estou me referindo apenas ao presidente e, sim, à França inteira. Não lemos nos jornais que a Alemanha se tornaria uma ameaça, mas a Alemanha sempre foi uma ameaça. Henry Kissinger [secretário de Estado e Conselheiro de Segurança Nacional dos EUA nos governos Nixon e Ford] chegou a perguntar a Charles de Gaulle [ex-presidente francês] o que a França faria se a Alemanha se tornasse independente demais. A França respondeu que haveria uma nova guerra – essa seria a reação habitual. No entanto, hoje não houve essa reação, o que significa que não sabemos de algo que pode estar relacionado à questão nuclear. Os alemães, como os outros europeus, começam a se preparar para a saída de cena dos americanos porque eles não podem ficar sem uma cobertura de armamento nuclear. A França já disse isso. A França também disse que é ela quem decide como fazer. Tudo isso está sendo discutido. A questão não fica por aí. Hoje, temos um presidente francês de centro direita, mais à direita do que ao centro, um presidente liberal, que negocia com o chanceler alemão. São homens de Estado. O que vai acontecer se amanhã, em 2027, tivermos a extrema-direita na França e na Alemanha? Não sei.
Estamos num território em que não podemos prever nada. A questão fundamental é a seguinte: Macron disse que poderia compartilhar o armamento nuclear com a Alemanha, mas a extrema-direita diz que jamais fará isso. E na Alemanha, dizem que não querem armas nucleares francesas no seu território.
Vejam que é bem complicado tudo isso. É um problema, mas não podemos resolver esse problema no diálogo. Isso está ligado à reação das populações. Na Europa e nos Estados Unidos, as campanhas políticas dos populistas são essencialmente dirigidas contra os imigrantes. Mas nos EUA e na Europa, os índices de natalidade baixaram muito. Se expulsarem os imigrantes, vão parar de existir; não haverá mais população. A idade média na Itália é de 48 anos. Não sei se vocês percebem, mas, pensem, a Itália é o terceiro país mais velho do mundo. Se expulsarem os imigrantes que vierem nos próximos 10, 15 anos, que são dinâmicos e mais empreendedores que os italianos, o futuro está acabado. Se continuarem essas campanhas, a Europa estará fadada ao suicídio.
A relação entre Estados Unidos e Europa não existe. Muitos europeus, a começar pelo secretário-geral da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) [Mark Rutte], se pudessem, abaixariam a cabeça e deixariam Donald Trump pisar em cima deles. Muitos países bálticos e a Itália estão alinhados com os Estados Unidos e querem ficar presos aos Estados Unidos, mas não tem um diálogo porque não têm força para o diálogo. Falam como italianos, estonianos, poloneses, mas a Europa não tem algo para pesar na balança. O que pode ser negociado com os Estados Unidos? Qual é a força da Europa? Quando a Europa tem elementos de força, o poder americano que diz: “Não, não vamos entrar nesse lado”. A situação, como disse, é de imobilismo total. E, para os americanos, a Europa não existe, simplesmente. A capacidade de influência da Europa é nula hoje. Infelizmente, vivo aqui e vejo isso.
IHU – Deseja acrescentar algo?
Manlio Graziano – Sou um analista, como disse, e tento ser um analista que observa com olhar frio, sem me envolver nas diferentes opiniões políticas. Não porque eu não tenha opinião política, mas nunca coloco as minhas opiniões políticas nas análises. Claro que nunca podemos ser totalmente objetivos. Neste caso, o que vemos não é nada agradável. Cada vez que leio as notícias, fico muito descontente. Todo dia acontece algo pior do que no dia anterior. É nessa realidade que vivemos hoje. O que não significa que, na política, como na vida também, as coisas tomem sempre uma única direção. Tudo pode acontecer. Não há um destino inexorável.
Talvez, tenhamos reações diferentes e visões de mundo diferentes, mas o mais interessante é termos sempre uma percepção mais direta possível dos sentimentos, das percepções, das reações. Vemos sempre uma situação precária por toda parte. Os americanos sabiam muito bem quem era Donald Trump. Sabiam que ele tinha vários processos nos tribunais, que ele tentou dar um golpe de Estado, que ele era um sedutor de mulheres, mas, mesmo assim, 67 milhões de pessoas votaram nele. Isso significa que não estamos protegidos de termos surpresas ruins no futuro.
Mas quero concluir com uma observação positiva. Todos que se interessam por acordos e relações internacionais e observam as iniciativas, queremos que as coisas melhorem e queremos desempenhar um papel. O meu papel é o de analista, o de examinar como e por que as coisas funcionam de uma certa forma. Aí vemos a importância da análise geopolítica, a importância de saber como é e como o mundo está. O único modo de intervir e fazer algo na realidade dos fatos e naquilo que nos cerca é conhecer a realidade. A realidade pode ser ruim, boa, mais ou menos boa. Isso tanto faz. O importante é conhecer a realidade.
Os médicos, por exemplo, não se posicionam sobre as doenças e não são a favor ou contra uma doença, mas eles precisam diagnosticar a doença, porque a única maneira de curar uma doença é admiti-la, reconhecê-la e saber do que se trata. Diria que o papel da geopolítica, o papel que tento assumir na sociedade, é o de diagnosticar. Depois, haverá aqueles que poderão intervir com base nos diagnósticos. Nós precisamos do diagnóstico, do contrário, não sabemos onde intervir. Este é o meu conselho final: sempre fazer o diagnóstico.