28 Mai 2024
"No final tudo é poder. Essa ideia deve ser derrotada, pois leva o Ocidente à derrota. Tudo é logos, é preciso ser dito. No início está a palavra que causa acordo e convence, está o diálogo político, o reconhecimento da liberdade do outro", escreve Massimo Cacciari, filósofo italiano, em artigo publicado por La Stampa, 27-05-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Segundo ele, "a Autoridade não está nas mãos de um Líder, nem num país nem na face da Terra, mas é a própria Relação, são as normas e as leis que a estabelecem e regulam e que todos reconhecem porque veem nelas a garantia da sua própria paz. Que direitas e esquerdas compreendam isso, colocando assim fim ao seu desentendimento trágico e secular, e se possa finalmente começar uma nova Política".
A virada que poderia ser determinada pelas próximas eleições para o Parlamento Europeu por uma “governança” baseada na “grande coalizão” entre socialdemocracias de vários tipos e forças de centro, junto com a presença determinante de partidos e movimentos declaradamente de direita, deveria convidar a uma reflexão cultural e histórica, longe de ideologismos e torcidas. É um perigo efetivo para os destinos da Europa e do Ocidente sua eventual afirmação? De que "direita" se trata, de que componentes é formada? Até algum tempo atrás parecia possível colocar uma distinção muito simples: a direita nacionalista marchava contra a própria ideia de unidade política europeia.
A sua praxe obedecia a uma visão identitária que se opunha por natureza aos processos de globalização. As últimas tragédias tornaram esse perigo muito aleatório, precisamente no momento em que pressionam a adiar quase indefinidamente a perspectiva de uma Europa politicamente unida com base numa estratégia autônoma. O estado de guerra força a unidade no plano substancial da política externa e militar em todo o país ainda firmemente líder do Ocidente. Uma direita "no poder" amanhã na Europa dificilmente poderia mudar alguma coisa na linha que hoje se segue. De qualquer forma, as decisões serão tomadas em outro lugar.
Que diferenças reais e que eventuais perigos, então, em relação à história da União vivida até aqui, pode representar e comportar uma virada à “direita”? Certamente existem impulsos dentro dela restauradores-reacionários. Vêm de longe, afundam em passados não apenas remotos da cultura europeia. Um pensamento da “restauração”, cujos princípios contradizem aqueles iluministas da Grande Revolução, permeia a história do Ocidente europeu e certamente não se limita ao período dos De Maistre, dos Bonald, dos Donoso Cortes. Ele se reapresenta, em formas mais ou menos explícitas, em toda crítica à democracia representativa e do regime parlamentar, como dissolução de toda Autoridade estruturalmente incapaz de dar vida a elites políticas competentes e estáveis. As osmoses entre essa perspectiva e outras, de natureza oposta, mas movidas por uma crítica igualmente radical do "parlamentarismo", são incontáveis.
A questão é: existe hoje uma direita que encarne tal potencial? Apenas aparentemente - na realidade, nada mais é do que populismo, oposto em si mesmo a toda ideia elitista do poder político. Estamos diante de uma caricatura daquela crítica autenticamente reacionária da "democratização" típica especialmente daquelas correntes do pensamento europeu do século XX que foram eficazmente indicadas com o termo de "revolução conservadora". O verdadeiro perigo hoje abrange todo o espectro político: todos democráticos e nenhum em condições de expressar reformas sérias para fazer funcionar a democracia à altura das revoluções e dos desafios em curso.
Mas, dir-se-á, os “valores” da direita contrastam radicalmente com aquela ideia de defesa e desenvolvimento dos direitos da pessoa, que é certamente imanente à concepção da democracia. Os "valores" são tais, porém, enquanto valerem, isto é, expressarem um poder efetivo. É uma questão de ver até onde realmente podem aqueles propagandeados pelas direitas. Nada ou quase nada, pois qualquer contraste real de sua parte em relação à dominante cultura econômico-individualista traduzir-se-ia numa sua derrota. O mesmo vale para um certo anticapitalismo romântico que aparece e desaparece continuamente na história das direitas europeias (e também aqui as osmoses com o “outro lado” são inúmeras), anticapitalismo que pode assumir tons duramente polêmicos contra a primazia anglo-saxónicos do econômico, aqueles de um pensamento tradicional-esotérico, ou aqueles laico-pragmáticos de um estado social reivindicador de sua primazia contra os “poderes fortes”. Nenhum desses “perigos” assume hoje uma consistência política que possa ir além da propaganda de curtíssimo prazo.
O perigo que envolve todos é a impotência para governar os processos de globalização e os desequilíbrios geopolíticos que eles acarretam. Ideologias ou nostalgias próprias das direitas tornam tal impotência ainda mais grave, mas certamente não a produzem. O maior perigo que representam é que, na sua defesa abstrata de "identidades" de valores fora de qualquer consciência crítica, se torne ainda mais difícil enfrentar com desencanto e realismo a verdadeira questão: que o Ocidente, hoje Ocidente americano, já não é mais estruturalmente capaz de se confrontar com os outros Grandes Espaços com base de uma sua própria vontade hegemônica. É preciso saber “declinar” de tal vontade, não para desaparecer, mas, pelo contrário, para dar vida a um novo Nomos da Terra multipolar e policêntrico. Todos os dados demográficos, econômicos, movimentos entre povos dizem que só essa é a única estratégia capaz de evitar a catástrofe e criar um mundo que supere o inferno atual.
Se uma característica sempre caracterizou as direitas europeias é a ênfase sobre a vontade de poder. Poder do próprio país, poder do Ocidente contra as culturas que não admitem a sua supremacia. No entanto, houve um pensamento conservador, embora absolutamente minoritário nessas direitas, que se moveu numa direção oposta, de pleno reconhecimento da grandeza das outras civilizações, no sentido da comparação e da aproximação mútua. Essas correntes deveriam ser meditadas, mesmo por muitas “esquerdas”, que nunca acertaram seriamente as contas com o pensamento “em grande” de uma certa direita europeia.
No final tudo é poder. Essa ideia deve ser derrotada, pois leva o Ocidente à derrota. Tudo é logos, é preciso ser dito. No início está a palavra que causa acordo e convence, está o diálogo político, o reconhecimento da liberdade do outro. A Autoridade não está nas mãos de um Líder, nem num país nem na face da Terra, mas é a própria Relação, são as normas e as leis que a estabelecem e regulam e que todos reconhecem porque veem nelas a garantia da sua própria paz. Que direitas e esquerdas compreendam isso, colocando assim fim ao seu desentendimento trágico e secular, e se possa finalmente começar uma nova Política.
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Extremas direitas mais fortes: o que arrisca a Europa. Artigo de Massimo Cacciari - Instituto Humanitas Unisinos - IHU