Ações do governo Trump criam uma instabilidade não somente internacional, mas também interna com um desejo de eliminação dos freios e contrapesos constitucionais
Considerando as distâncias históricas e geográficas e sopesando um certo anacronismo na comparação, Donald Trump refaz a famosa frase de Luís XV – “L’État c’est moi” (O Estado sou eu) – ao afirmar “aquele que salva seu país não viola nenhuma lei”. O jeito afetado de um e de outro, novamente considerando as diferenças de contexto, também operam como sintomas de uma crise que na França desembocaria, um século mais tarde, na Revolução de 1789, mas que nos Estados Unidos ainda é difícil de prever.
Afora estas semelhanças na condução das crises – um certo autoritarismo hedonista em ambos os casos –, há diferenças cruciais. A começar pela própria constituição dos EUA como país. “Os homens reunidos na Convenção Constitucional da Filadélfia criaram um governo central forte o bastante para garantir segurança e coesão ao novo país e suficientemente fraco para evitar o risco da excessiva concentração de poder e ameaçar os interesses localizados nos estados, como a escravidão. O resultado foi uma República dotada de um sistema de freios e contrapesos baseado no federalismo, na representação política dos governados e na divisão de poderes entre Executivo, Legislativo e Judiciário”, explica o professor e pesquisador Flávio Limoncic, em entrevista por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
No começo do século XX, os EUA, na chamada Era Progressista, criaram uma série de mecanismos estatais, agências reguladoras, como forma de garantir institucionalmente os mecanismos de freios e contrapesos previstos constitucionalmente. São, precisamente, esses dispositivos, conhecido como Estado Administrativo, que Trump tenta atacar.
“Trump acusa o Estado Administrativo de ser, ele próprio, parte de um deep state (Estado profundo). Segundo Trump, o Estado profundo é formado por burocratas não eleitos que impõem ao conjunto da sociedade uma série de normas e regulamentos que constrangem o funcionamento das empresas e promovem agendas políticas dissociadas da vontade da sociedade norte-americana, como a agenda DEI (diversidade, equidade e inclusão)”, complementa o entrevistado.
Neste contexto, o futuro dos EUA está em aberto. Prognósticos são sempre demasiadamente arriscados, porque a conjuntura é radicalmente dinâmica, mas, como alerta Limoncic, “é possível que os Estados Unidos estejam à beira de uma crise constitucional profunda”.
Flávio Limoncic (Foto: Numem | Unirio)
Flávio Limoncic é professor do Departamento de História, do Mestrado Profissional em História e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. Mestre (1997) e Doutor (2003) em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, com bolsa-sanduiche (1999-2000) na Universidade de Maryland. Pós-Doutorado (2011-2012) na Universidade de Michigan. Membro do Grupo de Pesquisa do CNPq Rede de Estudos de História dos Estados Unidos. Principal área de interesse: história dos Estados Unidos no século XX.
IHU – Por que ocorreu a unificação dos Estados Unidos e como isso impactou na construção de sua Constituição?
Flávio Limoncic – A forma como os Estados Unidos construíram sua independência, ou seja, a união entre treze ex-colônias britânicas com relações tênues entre si, teve grande impacto no compromisso político que resultou na Constituição de 1787. Os homens reunidos na Convenção Constitucional da Filadélfia criaram um governo central forte o bastante para garantir segurança e coesão ao novo país e suficientemente fraco para evitar o risco da excessiva concentração de poder e ameaçar os interesses localizados nos estados, como a escravidão. O resultado foi uma República dotada de um sistema de freios e contrapesos baseado no federalismo, na representação política dos governados e na divisão de poderes entre Executivo, Legislativo e Judiciário.
IHU – Há dois aspectos da Constituição dos EUA que os entusiastas do país da América do Norte sempre pontuam: o primeiro artigo que versa sobre a liberdade de expressão e o fato da Carta Magna ter sido emendada apenas 27 vezes em quase 250 anos. É possível admitir que essas são características marcantes? O que explica a permanência delas?
Flávio Limoncic – De fato, se comparada às diversas Constituições brasileiras, a norte-americana é longeva e foi pouco emendada. Ao menos em parte, a razão de tamanha estabilidade reside nas ambiguidades do texto constitucional. Várias de suas cláusulas admitem leituras muito diferentes, o que permitiu, ao longo da história, que os mesmos trechos resultassem em decisões até opostas. Em 1896, por exemplo, a Suprema Corte admitiu a constitucionalidade da segregação racial nos estados do Sul com base na 14ª Emenda. Em 1954, a Suprema Corte, evidentemente ocupada por outros juízes, determinou a inconstitucionalidade da segregação racial com base na mesma 14ª Emenda.
IHU – Como o Estado Administrativo foi construído nos EUA e quais suas características?
Flávio Limoncic – O Estado Administrativo começou a ser construído pelo Congresso dos Estados Unidos no início do século XX, na chamada Era Progressista. Havia então a percepção de que o Estado limitado construído no século XIX era incapaz de lidar com a economia urbano-industrial e oligopolizada surgida no pós-Guerra Civil (1861-1865). O Congresso passou, então, a criar as agências administrativas – coração do Estado Administrativo – para regular diversos setores da economia. Hoje, são centenas as agências administrativas que regulam desde a disposição de resíduos tóxicos a relações de trabalho.
IHU – Hoje, o que vemos é a tentativa de Donald Trump de derrubar esse Estado Administrativo em favor do que ele chama de “deep state” (Estado profundo)?
Flávio Limoncic – Trump não quer derrubar o Estado Administrativo em favor do deep state. Pelo contrário, ele acusa o Estado Administrativo de ser, ele próprio, parte de um deep state (Estado profundo). Segundo Trump, o Estado profundo é formado por burocratas não eleitos que impõem ao conjunto da sociedade uma série de normas e regulamentos que constrangem o funcionamento das empresas e promovem agendas políticas dissociadas da vontade da sociedade norte-americana, como a agenda DEI (diversidade, equidade e inclusão).
IHU – No entanto, Trump não é o primeiro a se insurgir contra esses mecanismos de Estado. Na década de 1970, Ronald Reagan também fez algo parecido. O que há de semelhanças e diferenças entre esses dois momentos históricos?
Flávio Limoncic – Ronald Reagan, presidente entre 1981 e 1989, inaugurou o chamado Executivo Unitário, ou seja, a projeção do Poder Executivo sobre o Estado Administrativo, que em sua origem é uma criação do Poder Legislativo. A diferença entre Reagan e Trump é que Trump está alterando a estrutura e o orçamento correntes do Estado Administrativo, ambos aprovados pelo Congresso via Ordens Executivas.
IHU – Como teorias da conspiração e o apoio das Big Techs, especialmente as que detêm serviços de redes sociais, galvanizaram a atual ascensão de Trump?
Flávio Limoncic – Momentos de rápidas mudanças sociais, como o que ora vivemos, são propícios à disseminação de teorias da conspiração. Teorias conspiratórias funcionam para explicar tais mudanças, resultado de dinâmicas sociais extremamente complexas, de formas bastante simples, geralmente monocausais, e com responsáveis claramente identificáveis.
Assim, diversos setores da sociedade que se sentem ameaçados diante de novas formas de produção – que tornam obsoletas diversas profissões –, novas configurações familiares, mudanças nas relações de gênero etc., acabam vendo nas teorias conspiracionistas as respostas simples para suas angústias. Tal fenômeno tem sido exacerbado pelas redes sociais.
IHU – O que a frase “Aquele que salva seu país não viola nenhuma lei” proferida por Trump fala sobre seu ideal de governo?
Flávio Limoncic – Tal frase sugere que Trump, ao se apresentar como intérprete das leis, desafia a separação de poderes, um dos elementos centrais do sistema de freios e contrapesos da Constituição.
IHU – Sem propor um exercício de futurologia, mas considerando a erosão dos sistemas de freios e contrapesos promovido pelo governo Trump, o que se pode esperar do futuro dos EUA não só internamente, mas também do ponto de vista da geopolítica global?
Flávio Limoncic – Difícil dizer, mas é possível que os Estados Unidos estejam à beira de uma crise constitucional profunda.