Para o professor e pesquisador de origem judaica, o genocídio em Gaza está sendo concretizado pela inação do Ocidente, que não se manifesta por meio de sanções contra os planos de Netanyahu
Após 592 dias de bombardeios do céu, da terra e do mar contra a população civil indefesa na Faixa de Gaza, com 53 mil mortes, sendo quase 20 mil crianças, com a destruição total das infraestruturas civis indispensáveis à vida, com a população sitiada no enclave reduzido a escombros, submetida à fome e a sede infligidas pelo Estado de Israel, que bloqueia a entrada de qualquer ajuda humanitária há mais de dois meses, agora o governo israelense se prepara para concretizar seu projeto: “avançar com a colonização, destruir completamente Gaza, expulsar o máximo de palestinos e confinar eles em uma pequena parcela de território, de forma a expulsá-los do país”, assevera o professor Bruno Huberman, na entrevista concedida por WhatsApp ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
O plano israelense de “resolução” do conflito Israel x Palestina se dá em meio a um ocidente que assiste em silêncio ao extermínio da população gazense. Para o doutor em relações internacionais, “o mundo está inerte. Ao ponto que o Financial Times, o principal jornal conservador do mundo, fez um editorial criticando o silêncio dos países ocidentais com relação ao genocídio em Gaza”. Segundo Huberman, esse “é o genocídio mais documentado e visto da história e, talvez, o que mais estamos deixando acontecer”.
A solução para deter Israel, segundo pontua o entrevistado, está na pressão internacional por meio da imposição de sanções e no fim do sionismo. “O que cabe a nós é pressionar nossos estados e outras entidades da sociedade civil internacional a cortarem relações com Israel, impor bloqueios e boicotes, é a única forma. O Estado brasileiro deveria romper completamente com o Estado de Israel, isso seria uma ação política que de alguma forma isolaria ainda mais Israel”, sinaliza. Para o pesquisador, a criação de "comunidades judaicas antissionistas, que de alguma forma contribui para a libertação para a Palestina (...) são projetos complementares: a liberação do judaísmo do sionismo e a libertação da Palestina do Estado de Israel".
Bruno Huberman ainda analisa o Projeto de Lei 472/2025, de autoria do ex-ministro Eduardo Pazuello, que visa incorporar ao ordenamento jurídico brasileiro a definição de antissemitismo da Aliança Internacional para a Memória do Holocausto (IHRA). Segundo adverte, trata-se de “um projeto de lei que busca criminalizar e censurar críticas a Israel”.
Bruno Huberman (Foto: Reprodução | X)
Bruno Huberman é judeu e professor do curso de Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP. Vice-líder do Grupo de Estudos sobre Conflitos Internacionais (GECI/PUC-SP) e pesquisador do Instituto Nacional de Estudos de Ciência e Tecnologia para o estudo dos Estados Unidos (INCT-Ineu). Doutor em Relações Internacionais pelo PPG San Tiago Dantas (Unesp, Unicamp, PUC-SP) com a tese A colonização neoliberal de Jerusalém após Oslo: desenvolvimento, pacificação e resistência em Palestina/Israel. Foi pesquisador visitante no departamento de Development Studies da School of Oriental and African Studies, da Universidade de Londres (2018-2019) com Bolsa do Programa PDSE/Capes. É mestre em Relações Internacionais também pelo PPGRI San Tiago Dantas e bacharel em Comunicação Social/Jornalismo pela PUC-SP.
Recentemente, Huberman lançou o livro Colonização neoliberal de Jerusalém (Educ, 2023) a partir de sua tese doutoral.
IHU – Do que se trata o Projeto de Lei 472/2025, que visa incorporar ao ordenamento jurídico brasileiro a definição de antissemitismo da Aliança Internacional para a Memória do Holocausto (IHRA)?
Bruno Huberman – Esse Projeto de Lei proposto por Eduardo Pazuello, ex-ministro, não é nenhuma novidade. No passado já tiveram outros PLs que defenderam que essa visão de antissemitismo fosse adotada pelo Estado brasileiro.
Trata-se de um PL que na prática busca adotar essa definição da Aliança Internacional para a Memória do Holocausto, que determina algumas formas de críticas a Israel, como a comparação com o nazismo ou dizer que Israel é uma entidade racista e assim por diante, como formas de antissemitismo. E, portanto, criminalmente imputáveis. Esse é o teor central dessa definição, que na realidade busca blindar o Estado de Israel de críticas e censurar os críticos, ou seja, aqueles que defendem a causa palestina.
IHU – Qual a diferença entre antissemitismo e antissionismo e como esses temas aparecem no contexto brasileiro? Há elementos sociais que justifiquem tal proposta?
Bruno Huberman – Antissemitismo é o ódio e o racismo aos judeus, que tem sua raiz na Europa, mas que se tornou um fenômeno global. Como fenômeno estrutural, existiu somente na Europa, na qual os judeus formam vítimas de exclusão e remoção sistemática, resultando no genocídio deles no começo do século XX. Isto é o que chamamos de Holocausto e que de alguma forma permanece nas relações sociais em alguns lugares do mundo onde vivem os judeus.
Antissionismo é uma rejeição à ideologia sionista, que é a ideologia por trás do processo de colonização judaica, sionista e israelense da Palestina, que supostamente seria uma ideologia que almejaria o nacionalismo judeu ou à autodeterminação judaica na Palestina, mas que na prática é um projeto colonial. Antissionismo é uma forma de anticolonialismo, enquanto antissemitismo é uma forma de racismo.
É importante dizer que há sobreposição entre ambos, que tem crescido nos últimos tempos em meio ao genocídio israelense em Gaza, no qual pessoas que são críticas a Israel vão recorrer a formas clássicas de antissemitismo, em que dizem como os sionistas mataram Cristo ou que os sionistas manipulam os meios de comunicação e assim por diante, para criticar Israel. Então, há sobreposições, isso deve ser levado em consideração pela sociedade brasileira, mas não vejo necessidade de criar um paradigma legal para tratar com esses casos bastante particulares.
Já temos um arcabouço jurídico sancionado pelo Estado brasileiro, que criminaliza o racismo e aplica punições importantes. Não haveria necessidade de excepcionalizar o racismo contra judeus, a partir de alguns casos específicos que permitem uma ampla interpretação por parte dos defensores, caso isso se torne lei, a partir do juiz, por exemplo, que levaria na prática a se tornar um instrumento de censura.
Por exemplo, a recente declaração do presidente Lula de que o Exército de Israel estaria matando mulheres e crianças em nome do combate ao terrorismo foi interpretada pela Confederação Israelita do Brasil (Conib) como antissemitismo porque recorreria a um antigo libelo antissemita de que judeus matam e comem criancinhas. Enquanto o Lula foi claramente crítico a ação de um Estado, de uma Força Armada em um território específico, no qual está comprovada por diversas instituições e organizações internacionais a desproporcionalidade do uso da força e o assassinato sistemático de não combatentes, o que imputa que alguns classifiquem como um crime de genocídio que está em curso. Então, não seria antissemitismo, mas a partir dessa definição da IHRA, a Conib entende como antissemitismo. Fica claro que é um projeto de lei que busca criminalizar e censurar críticas a Israel.
IHU – Como compreender as contradições desta proposta a partir de Eduardo Pazzuelo, ex-ministro de um governo cujo lema de campanha era (e é) “Deus, pátria e família”, anteriormente usado por Hitler?
Bruno Huberman – Essa contradição entre ser um projeto político de extrema-direita, que recorre a símbolos históricos da extrema-direita, o que envolve o nazifascismo, em particular o nazismo que matou os judeus, como no caso do Hitler, e ao mesmo tempo ser um projeto que apoia fortemente Israel e o sionismo, é uma contradição que observamos há alguns anos, particularmente desde a ascensão do Trump no poder em 2016. Figuras como Steve Bannon, que é um estrategista do Trump e um importante articulador dessa internacional fascista, o Viktor Orbán, presidente da Hungria, e outras figuras importantes do alt-right estadunidense, têm essa contradição entre ser sionista e antissemita.
Isso é algo que inclusive está na origem no sionismo em certo sentido. O lorde Arthur Balfour [ex-primeiro-ministro britânico], que deu importante apoio do Reino Unido ao empreendimento sionista na Palestina em 1917, era um notório antissemita, assim como outras lideranças inglesas que apoiaram material, econômica, política e militarmente a colonização sionista da Palestina durante o mandato britânico da Palestina [1]. E o próprio Winston Churchill, famoso líder inglês na Segunda Guerra Mundial.
Esse é um fenômeno histórico que volta hoje com a ascensão das extremas-direitas, que vão ver em Israel um modelo de estado étnico, que suprime as minorias vistas como ameaçadoras de uma forma brutal, o que serve de exemplo para lideranças de extrema-direita. Por isso que Bolsonaro, Trump, Orbán, Marine Le Pen e outros vão lavar o seu antissemitismo com o apoio ao Israel, isto é: como vou ser antissemita se apoio o Estado judeu? Ou seja, são antissemitas porque apoiam os judeus lá do outro lado do mundo matando os palestinos, que é um grupo social que eles consideram ainda inferiores aos judeus. Então, dentro dessa hierarquia racial global, os árabes muçulmanos estão abaixo dos judeus. Nesse caso, ser sionista e antissemita faz sentido, tem uma racionalidade.
IHU – Voltando à questão do conflito em Gaza, do que se trata o plano de Netanyahu para ocupar todo o território da Faixa de Gaza? É, de fato, um processo de colonização em pleno século XXI? Quais devem ser as consequências à população palestina?
Bruno Huberman – Tem saído cada vez mais declarações do Benjamin Netanyahu e do Bezalel Smotrich, que é um importante ministro, de avançar com a colonização, de destruir completamente Gaza, expulsar o máximo de palestinos e confinar eles em uma pequena parcela de território, de forma a expulsá-los do país. E também de avançar com a anexação da Cisjordânia, ou seja, de “resolver” a questão palestina. Vejo isso sendo levado adiante.
[O projeto de Israel] é anexar parcelas da Cisjordânia, de forma a aprofundar o apartheid e excluir os grandes centros urbanos palestinos, expulsar o máximo de palestinos de Gaza, anexar parcelas do território de Gaza e construir assentamentos nesses novos territórios anexados o máximo possível. Esse é o plano que vejo e que está sendo avançado de forma desimpedida até o momento.
IHU – Voltando à questão do holocausto que já tratamos em outra entrevista, mas que há grande resistência midiática em tratar do tema nestes termos. Por que é importante discutirmos e desconstruirmos a ideia de excepcionalidade do holocausto? Se não este termo, qual outra definição é capaz de classificar o que o exército israelense faz com a população gazense?
Bruno Huberman – A definição do IHRA parte dessa excepcionalização do Holocausto, no qual o que foi feito com os judeus não poderia ser comparado a nenhuma outra forma de genocídio. Isso está na definição do IHRA.
Por isso, aquela outra declaração do presidente Lula, na qual comparou o genocídio israelense em Gaza e as práticas nazistas contra judeus na Europa na Segunda Guerra, foi também considerada antissemita, enquanto não é antissemita. Pode-se comparar qualquer genocídio, inclusive isso está nos fundamentos dos estudos sobre genocídio: entender características comuns e singulares de cada genocídio. Por exemplo, no genocídio contra judeus foram usadas câmaras de gás, uma coisa que não vimos sendo utilizada em outros genocídios. O genocídio contra os povos indígenas no Brasil e nas Américas vai ter algumas particularidades.
O genocídio contra os palestinos tem as suas particularidades, como por exemplo, trancar toda a ajuda humanitária, impor a fome sistemática, explodir edifícios através de bombardeios de forma a promover a expulsão etc. Isto é, podemos chegar a algumas características particulares de genocídio dos palestinos em Gaza que não podem ser vistas em outros casos.
Mas é importante comparar os genocídios contra os povos indígenas nas Américas, contra os judeus, contra os palestinos, contra os armênios e assim por diante, de forma a entender esse fenômeno. De algum modo os judeus internacionalmente e o Estado de Israel internamente buscam excepcionalizar este fenômeno de forma a excepcionalizar a existência de Israel e manter impune as ações do Estado.
IHU – O que explica não só a resistência de Israel em encerrar o conflito, mas, sobretudo, a postura de inviabilizar a chegada de ajuda humanitária, incluindo alimentos e medicamentos, à população civil?
Bruno Huberman – Israel mantém o conflito e impede a chegada de ajuda humanitária – medicamentos, alimentos etc. – para promover o genocídio, para promover a expulsão, faz parte do plano. Assim como os nazistas fizeram contra os judeus na Segunda Guerra Mundial. Faz parte do plano destruir a resistência, desumanizar, incapacitar; é um instrumento de contrainsurgência. Dessa forma querem obrigar que os palestinos se desarmem, coisa que o Hamas não vai fazer, mas é uma forma. Tenta obrigarem os palestinos a fugirem, coisas que muitos não farão, mas é uma forma em que eles [Israel] almejam que isso seja feito. É parte do genocídio.
IHU – O que as entidades internacionais podem fazer em relação ao massacre às milhares de pessoas palestinas, sobretudo considerando que dois terços das vítimas, desde o começo do conflito, são mulheres e crianças? Olhando de fora, parece que assistimos inertes a um morticínio?
Bruno Huberman – O mundo está inerte. Ao ponto que o Financial Times, o principal jornal conservador do mundo, fez um editorial criticando o silêncio dos países ocidentais com relação ao genocídio em Gaza. Porque é o genocídio mais documentado e visto da história e, talvez, o que mais estamos deixando acontecer, o que menos se tem feito algo, talvez por conta dessas relações de força.
O que cabe a nós é pressionar nossos estados e outras entidades da sociedade civil internacional a cortarem relações com Israel, impor bloqueios e boicotes, é a única forma. O Estado brasileiro deveria romper completamente com o Estado israelense, isso seria uma ação política que de alguma forma isolaria ainda mais Israel. O Brasil é um país que tem uma posição moral importante no mundo e, nesse sentido, ajudaria e pressionaria estados mais relevantes a adotar ações mais duras.
IHU – Como a comunidade judaica no Brasil e no mundo tem vivido as contradições das atuais políticas de ocupação de Benjamin Netanyahu ao território palestino? Há uma crise de consciência no interior da comunidade judaica?
Bruno Huberman – De fato, há uma crise nas comunidades judaicas. Você remete a essa crise de consciência que foi debate a partir da declaração da professora Arlene Clemesha. É uma crise nas comunidades judaicas e um rompimento de parcela das comunidades, particularmente das juventudes judaicas, com a ideologia sionista, que tem provocado rupturas comunitárias, familiares, sociais e políticas importantes. E, consequentemente, levando a tensões que extrapolam as comunidades e adentram as sociedades nas quais elas estão inseridas, como as sociedades brasileira, estadunidense, inglesa etc. Isso é importante porque o papel que as diásporas, as comunidades judaicas ao redor do mundo desempenham na defesa do Estado Israel é muito relevante.
Esse PL do Pazuello está avançando provavelmente com o apoio das entidades sionistas aqui no Brasil, além das entidades representativas do Estado de Israel, como a embaixada. Nesse sentido, impede que o Brasil adote uma postura mais forte em solidariedade com a Palestina. Com essa coesão das sociedades judaicas rompidas, perde força essa posição judaica de defesa do Estado Israel, e prevalece a posição de defesa de direitos humanos, que significa romper com o Estado de Israel.
Ou seja, mudar o que significa essa posição judaica, romper com o nacionalismo, com o colonialismo e estamos vendo crises nas comunidades em torno disso. Há ainda uma permanência, uma reação muito grande, particularmente aqui no Brasil de defesa do sionismo e de Israel, mas eu vejo um movimento relevante de transformações e que possibilita a criação de comunidades judaicas antissionistas, que de alguma forma contribui para a libertação para a Palestina.
São projetos complementares: a libertação do judaísmo do sionismo e a libertação da Palestina do Estado de Israel.
IHU – De que maneira esse tipo de projeto e perseguição de críticos à postura violenta do Estado de Israel tem causado sofrimento não somente à população palestina de Gaza, mas, nas devidas proporções, também a brasileiros, inclusive brasileiros de famílias judias?
Bruno Huberman – Ao redor do mundo, particularmente Estados Unidos e Inglaterra, essa definição de antissemitismo da IHRA tem provocado perseguição a jornalistas, estudantes e professores. Particularmente no ambiente acadêmico é muito nefasta essa definição. Mesmo que não seja comprovado o antissemitismo, a pessoa acusada fica com a pecha de antissemita, o que provoca uma marginalização, um sofrimento psíquico.
Estudos em países como a Inglaterra, em que essas disputas já são mais antigas, provam que praticamente todas as acusações de antissemitismo a partir da definição da IHRA não são comprovadas como antissemitas na prática, a partir de investigações independentes em universidades, mas isso provoca censura e autocensura. Essa definição traz problemas que são bastante prejudiciais à liberdade de expressão, à liberdade educacional, à liberdade de cátedra aqui no Brasil. Minha própria universidade, a PUC-SP, adotou a definição da IHRA, o que tem provocado um temor muito grande, principalmente nos estudantes.
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[1] O Mandato Britânico da Palestina foi aprovado em junho de 1922 pela Liga das Nações após o fim da Primeira Guerra Mundial. O documento estabelecia a responsabilidade britânica sobre o território da então Palestina otomana e comandava o estabelecimento de um lar nacional para o povo judeu. O governo civil britânico na Palestina operou de 1920 a 1948.