A nova política fiscal de Haddad busca frear o crescimento das áreas e entregá-las ao setor privado.
Os pisos constitucionais da saúde e da educação estão sob ameaça. O novo arcabouço fiscal, arquitetado pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad, pode destruir os orçamentos e, consequentemente, a capacidade de crescimento destas duas áreas vitais para a população brasileira. A justificativa para tal corte e política de austeridade fiscal beira a loucura: o crescimento estabelecido pela Constituição de 1988 é muito alto. “É preciso reduzir o crescimento da saúde e educação à mesma taxa que o teto de gastos comporta. Toda essa lógica é formatada para promover uma crise de gestão orçamentária. Essa é a minha tese. O arcabouço fiscal vai gerar uma crise orçamentária e os dados do Ministério da Fazenda indicam isso”, afirma o economista David Deccache.
Essa política orçamentária começou muito antes de Haddad. O governo de Michel Temer implementou o Teto de Gastos em 2016 e foi a bola de neve que culminou na avalanche vista hoje. “Em 2016, a burguesia passa a impor a constitucionalização da austeridade fiscal e ela faz isso com o Teto de Gastos do Michel Temer. Na prática, o Teto de Gastos congela os gastos públicos primários do Brasil, menos os pagamentos de juros e financeiros. Todo o resto ficaria congelado, ou seja, corrigido só pela inflação, por 20 anos, podendo ser revisto em 10, em 2026”, comenta.
O governo Lula, já na transição em 2023, tentou articular a manutenção do Teto de Gastos de Temer e manter os orçamentos da saúde e educação congelados pelo menos até 2026. “A saúde e a educação voltaram a crescer apesar do governo. [...] Foi o Senado que permitiu a possibilidade do governo federal, em seu primeiro ano, enviar uma proposta ao Congresso e, qualquer fosse a proposta, ela derrubaria o Teto de Gastos e descongelaria o piso da saúde e educação. [...] Eles enviam uma regra que é um novo teto de gastos com um pouco mais flexibilidade”, pontua.
Esse novo teto de gastos – o arcabouço – pode ser organizado em três principais pontos e permite, segundo Deccache, um crescimento de no máximo 2,5%. “Para vocês terem uma ideia do porquê eu estar falando do crescimento muito baixo, o Bolsonaro em 2019, antes da pandemia e furando o teto do Temer, cresceu 2,7%, o que é acima do limite deste novo arcabouço fiscal. Isso é padrão de crescimento de gastos do governo Bolsonaro”, alerta.
A seguir, publicamos a conferência de David Deccache, intitulada “O Brasil que (não) queremos. O novo arcabouço fiscal e o desmanche (da saúde e da educação) do país”, no formato de entrevista, proferida no Instituto Humanitas Unisinos – IHU, 05-09-2024. O vídeo da conferência pode ser visto aqui.
David Deccache (Foto: Reprodução | Faixa Livre)
David Deccache é doutor (UnB) e mestre (UFF) em Economia e assessor técnico na Câmara dos Deputados. É coautor do livro Teoria Monetária Moderna: a chave para uma economia a serviço das pessoas (Genérico: 2020).
IHU – O que significa a expressão “arcabouço fiscal”?
David Deccache – É um conjunto amplo de regras orçamentárias e fiscais que formam o tipo de Estado que teremos daqui para frente: os tipos de serviços públicos e como eles serão prestados. Teremos mais ou menos universidades públicas? Mais ou menos hospitais públicos? Mais ou menos gastos com tecnologia, ciência, cultura, proteção ambiental? É disso que se trata o arcabouço fiscal: o futuro do país e da nossa sociedade.
Estamos em um momento muito desafiador da nossa história, seja pelos desafios de combater um fascismo que ameaça a democracia, seja pelas crises climáticas ou a longa história de miséria e precarização da classe trabalhadora, que é esmagada por uma burguesia autoritária... esses desafios se tornam ainda mais difíceis quando temos um arcabouço fiscal.
IHU – A arquitetura do novo arcabouço fiscal começou com o Teto de Gastos no governo do Michel Temer?
David Deccache – Em 2015, há uma virada à austeridade no segundo mandato de Dilma Rousseff com cortes de gastos profundos. Isso gerou desemprego e uma insatisfação generalizada da classe trabalhadora em um momento em que havia certa pressão de setores golpistas da direita que se preparavam para dar o golpe em uma presidenta que não cometeu nenhum crime. Além disso, a Lava Jato destruía uma série de empreendimentos nacionais. E veio o golpe de 2016.
A austeridade de 2015 era conjuntural porque não estava na Constituição nem em uma legislação complementar. Poderia ser facilmente revertida. Por exemplo, Dilma poderia alterar a meta de resultado primário para tentar recuperar a popularidade. Em 2016, a burguesia passa a impor a constitucionalização da austeridade fiscal e ela faz isso com o Teto de Gastos do Michel Temer. Na prática, o Teto de Gastos congela os gastos públicos primários, menos os pagamentos de juros e financeiros. Todo o resto ficaria congelado, ou seja, corrigido só pela inflação, por 20 anos, podendo ser revisto em 10, em 2026.
O que significa congelar os gastos públicos por esse tempo? Significa que o Estado teria menos recursos por pessoa a cada ano. A população está crescendo e seu recurso está congelado, então seu gasto per capita com saúde e educação vai cair. Sua capacidade de expansão não existe, nem mesmo a capacidade de manutenção do que tínhamos. Isso tem um objetivo: se há uma regra constitucional de austeridade fiscal que impede o Estado em manter a prestação de serviços públicos para a população por duas décadas, é para iniciar um processo de privatização, espoliação e mercantilização generalizadas dos serviços públicos. Isso destrói a capacidade do Estado de promover os direitos sociais, serviços públicos universais e gratuitos de qualidade, e, ao mesmo tempo, estimula-se a mercantilização do que não deveria visar o lucro.
Isso foi imposto em 2016 e passou a funcionar em 2017. Nós chamávamos na época de a “PEC da Morte” e o apelido era correto. Falávamos que a austeridade mata, que ela é racista, machista, que ela causaria um genocídio ambiental pela falta de capacidade orçamentaria do Estado em evitar desastres completos como o que aconteceu no Rio Grande do Sul. Essas críticas foram feitas de forma muito dura pela esquerda na época.
O Teto de Gastos funciona só de 2017 a 2019 porque, em 2020, vem a pandemia e com ela o mundo entra em um processo de suspensão de regras fiscais porque o Estado precisaria agir para salvar o próprio modelo capitalista. Naquele momento, todas as amarras fiscais são liberadas e o Estado precisa atuar para garantir renda às famílias que viviam de trabalho formal, comprar vacinas, gastar com saúde... Então o Teto de Gastos é suspenso apesar do governo Bolsonaro. Há uma pressão social enorme e uma necessidade do próprio capital de sobrevivência.
Em 2022, Bolsonaro busca praticar um grande estelionato eleitoral ao conceder uma série de auxílios. Furou o Teto de Gastos do Temer, aprovou diversos precatórios e fez diversas pilantragens contábeis para conseguir um espaço fiscal com a intenção de dar auxílios, por exemplo, na véspera da eleição. Ele solta todas as regras fiscais e faz uma expansão fiscal muito forte em 2022. Foi um período longo em que o Teto de Gastos parou de funcionar.
Além disso, em 2022 acontece a consolidação do novo patamar das políticas de transferências diretas de renda no Brasil com o auxílio emergencial de R$ 600,00. Antes, era uma transferência de R$ 170,00 do Bolsa Família e agora passa para R$ 600,00. Isso muda completamente o patamar de gastos com transferência no Brasil em relação à pré-pandemia. Se esse patamar mudou e não era socialmente aceitável voltar ao que era antes, era óbvio que não daria para retomar o Teto de Gastos porque o novo auxílio não caberia dentro dele. Era preciso rever essa regra fiscal.
Qual foi o debate no fim de 2022 após o presidente Lula vencer a eleição? O Teto de Gastos não pode ser retomado, então vamos ter que formular uma nova regra de tocar a gestão orçamentária e fazer caber a nova política de transferência nos próximos anos. Nesse contexto surge a PEC de transição: ela seria uma forma de 2023 não ser um desastre completo com a volta do Teto de Gastos rigoroso e uma desaceleração brutal nos gastos primários do governo.
A PEC de transição precisaria garantir uma expansão fiscal em 2023 para acomodar os gastos necessários do novo governo. Uma proposta foi enviada ao Senado. Arquitetada pelo atual ministro da Fazenda, Fernando Haddad, a proposta tinha a ideia de que todos sabem: tirar os 170 bilhões do Bolsa Família do teto. Além disso, propuseram manter o Teto de Gastos do Temer até 2026 e tirar a política de transferência direta dele. Isso significa que a austeridade fiscal seria mantida para tudo, menos para a política de transferência de renda direta. A proposta inicial do governo de transição – não tem nada a ver com o Congresso – era a manutenção do Teto de Gastos.
Quando o Teto foi formatado em 2016 havia um problema para resolver. Uma despesa que cresce ano a ano dentro do teto gera uma crise orçamentária gigante. É como se tivesse um muro e um carro andando a uma velocidade de 50km/h em direção ao muro: ele vai bater. O Teto de Gastos é o muro e esse carro são os pisos constitucionais da saúde e da educação.
Segundo a Constituição, a saúde e a educação crescem com base no crescimento da receita corrente líquida, acima da inflação, e acima do limite do teto, portanto. O crescimento da saúde é de 15% da receita corrente líquida e o da educação de 18% da receita de impostos. Gradualmente, eles ocupariam todo espaço orçamentário. A solução do Temer e dos golpistas do momento foi suspender o piso da saúde e da educação até 2026 também. Se estamos congelando todo o orçamento, é preciso congelar o conjunto de despesas porque o teto não combina com pisos constitucionais para garantir o mínimo em áreas sociais fundamentais para a população. Então, o teto de gastos do Michel Temer foi feito para quebrar o piso da saúde e da educação.
Quando o vice-presidente Geraldo Alckmin entregou a minuta de manter o teto de gastos do Temer, ele também estava tentando manter o congelamento do piso constitucional da saúde e da educação. Portanto a PEC de transição na versão construída pelo ministro Fernando Haddad deixava esses pisos congelados até 2026, o teto de gastos mantido e as políticas de transferência de renda fora dele.
Sempre que falo sobre o governo ter uma estrutura orçamentária que oferece um risco sistemático estrutural aos pisos da saúde e educação, eles respondem que não: “fomos nós que voltamos com os pisos, como queremos atacar se a saúde e educação voltaram a crescer por causa nossa?” Isso é mentira. A saúde e a educação voltaram a crescer apesar do governo.
Por quê? O Senado não aceita a PEC. Então foi o Congresso que melhorou – e muito – ela. O Senado diz que vai ser da seguinte maneira: vocês terão o dinheiro de que precisam para 2023, só que no mesmo ano precisarão enviar uma nova proposta de regra fiscal. O executivo envia, até 31 de agosto, uma nova regra fiscal para ser discutida no Congresso e, quando ela for aprovada, os pisos da saúde e da educação voltarão ao normal e o Teto de Gastos do Temer cairá. Isso está documentado.
Foi o Senado que permitiu a possibilidade do governo federal, em seu primeiro ano, enviar uma proposta ao Congresso e, qualquer que fosse a proposta, ela derrubaria o Teto de Gastos e descongelaria o piso da saúde e educação. Porém o que foi feito nesta janela de oportunidade? Eles enviam uma regra que é um novo teto de gastos com um pouco mais de flexibilidade. Precisei contextualizar tudo antes para evitar a falácia de que “isso é o que dava para fazer com esse Congresso reacionário”. Isso é uma violação da história real que aconteceu, é errado e falso.
IHU – Como funciona o novo teto de gastos do governo Lula?
David Deccache – Eu o estruturei em três regras principais: são dois tetos e a meta primária. Esse é o novo tripé fiscal do Brasil. Há um primeiro teto que diz o seguinte: os gastos de um ano devem crescer a uma taxa que seja equivalente a 70% do crescimento das receitas. Vamos supor que as receitas cresçam 10% em determinado período. No período seguinte, as despesas vão poder crescer 7%.
Só que os economistas liberais perceberam uma coisa: quando o crescimento das receitas é de 1% está tudo bem o gasto público crescer 0,7%; mas, no caso de as receitas aumentarem 10%, um crescimento de 7% é muita coisa. Então essa regra não funciona sozinha, aí entra o segundo teto de gastos. Ele diz que, independentemente do crescimento das receitas, os gastos só podem crescer em uma taxa de 2,5%. Ou seja, se crescer 10%, dentro da primeira regra os gastos aumentariam em 7%; entra o segundo teto e diz que, independentemente do crescimento, a taxa só vai até 2,5%.
Por exemplo, o governo Lula em 2010, ano eleitoral após a crise de 2008-2009, cresce acima dos 10%. A média de crescimento dos gastos primários do governo foi 6/7% ao ano. Estamos falando de uma taxa de crescimento de gastos muito inferior à registrada no segundo governo Lula entre 2007 e 2010. Uma expansão fiscal muito fraca que não basta para impulsionar a reconstrução dos serviços públicos, atacados durante anos pelo governo golpista de Temer e o governo neoliberal de Bolsonaro e Paulo Guedes. Isso não é suficiente para uma reconstrução.
Para termos uma ideia do porquê eu estar falando do crescimento muito baixo: em 2019, antes da pandemia e furando o teto do Temer, o governo Bolsonaro cresceu 2,7%, o que é acima do limite deste novo arcabouço fiscal. Este é o padrão de crescimento de gastos do governo Bolsonaro. Mas há uma questão crucial: a saúde e a educação crescem juntas com as receitas segundo a Constituição Federal de 1988. Se a receita cresce 10%, saúde e educação crescem 10%. Enquanto isso, o conjunto do orçamento só pode crescer 2,5%. Ou seja, voltamos “ao mesmo” problema que Michel Temer teve quando elaborou o seu teto de gastos.
É como se tivesse um grande caminhão andando a 25km/h e fechando uma estrada; atrás tem dois carros (saúde e educação) andando a 100km/h. O que vai acontecer? Os carros vão bater no caminhão. Eles têm uma velocidade de crescimento muito maior do que o teto comporta. E eles vão atropelar as despesas que estão no caminho. Gradualmente, saúde e educação acabariam ocupando todo o espaço orçamentário do país.
Isso joga o país na seguinte lógica: saúde e educação precisam crescer porque isso é obrigatório segundo a Constituição; só que, para elas crescerem, será preciso cortar dinheiro da Ciência e Tecnologia, Meio Ambiente, Cultura, Moradia, Transição Energética, Assistência Social... É como se a saúde e educação fossem as vilãs do orçamento e estivessem prejudicando e gerando cortes brutais em outras despesas enquanto crescem em velocidade.
Há uma insustentabilidade matemática neste novo arcabouço porque é impossível manter essa estrutura até 2028. Em 2028, já não haverá nenhum espaço para as despesas discricionárias: custos com água, luz, construções de prédios, reformas em universidades, hospitais; não haverá dinheiro para investimento público nem para o custeio.
Isso foi criado propositalmente no arcabouço fiscal. Por que faço essa afirmação? Foi criado para forçar um ajuste fiscal no Brasil feito por cima dos pisos constitucionais da saúde e da educação. A lógica matemática mostra essa incompatibilidade e isso é reconhecido pelo Ministério da Fazenda.
É preciso reduzir o crescimento da saúde e da educação à mesma taxa que o teto de gastos comporta. Toda essa lógica é formatada para promover uma crise de gestão orçamentária. Eis a minha tese. O arcabouço fiscal vai gerar uma crise orçamentária e os dados do Ministério da Fazenda indicam isso. Nós temos requerimentos de informação com o Ministério da Fazenda reconhecendo o que estou falando. Essa crise e a falta de espaço no orçamento para as despesas discricionárias implica uma inviabilidade política total. A solução vendida vai ser a redução sistemática e o fim dos pisos constitucionais como são hoje.
A primeira proposta de redução dos pisos de saúde e educação aparece em abril de 2023. Rogério Ceron, secretário do Tesouro, anuncia que o governo já estava preparando uma PEC para revogar o piso da saúde e da educação conforme a constituição determina e criar uma outra regra. Isso está nas páginas oficiais do governo federal.
Não é fácil mexer nesses pisos no Brasil. Isto tem um impacto político muito negativo e até agora eles não conseguiram avançar nesse ataque estrutural. A mesma lógica também se aplica à parte da Previdência Social atrelada ao salário mínimo porque há uma valorização do salário mínimo acima do que o teto permite. O Benefício de Prestação Continuada (BPC), concedido para pessoas idosas e com deficiência que estejam em situação de extrema pobreza, também. Estamos falando, em sua maioria, de mulheres negras idosas que precisaram recorrer a esse benefício porque durante a vida laboral foram exploradas em jornadas duplas, trabalhavam na informalidade como empregadas domésticas e não tinham tempo de contribuição com carteira assinada.
Abro aqui um parêntese importante sobre o BPC. A ministra do Planejamento, Simone Tebet, defendeu abertamente um ataque cruel ao BPC. A esquerda se calou diante disso e por sorte a ideia não avançou. Sua proposta era que o benefício não estivesse mais atrelado ao salário mínimo. Depois de um tempo o BPC colocaria essas pessoas em uma situação de vulnerabilidade por não garantir nem ao menos um salário mínimo. É uma barbaridade.
Uma das propostas é que os pisos cresçam junto com o novo teto de gastos, ou seja, um crescimento menor do que é hoje. Outras regras dizem que o valor vai crescer junto com o crescimento demográfico da população, do PIB per capita. São várias formulações que vão impactar negativamente, ano a ano, em um orçamento menor para a saúde e educação do que seria na vigência do atual modelo de piso constitucional.
Eu e um colega fizemos uma simulação especificamente para o piso da saúde: pegamos a regra de que o crescimento seria junto com o teto de gastos; se essa regra estivesse valendo desde 2003, início do primeiro governo Lula, até 2022, a saúde teria perdido 700 bilhões de reais nesse tempo. Isso significa uma perda anual de 35 bilhões. É uma deterioração brutal e sistemática dos gastos em saúde e educação no Brasil caso a opção seja a manutenção do novo teto de gastos.
Existem duas opções: a primeira, desejada pelo governo, é atacar o piso da saúde e educação e reduzir os gastos; a segunda, sensata, seria revogar o novo arcabouço fiscal. Se os direitos estabelecidos na Constituição são incompatíveis com uma regra fiscal, esta regra deve ser eliminada. Inclusive ela é inconstitucional por não permitir a manutenção dos gastos mínimos com saúde e educação conforme a Constituição prevê.
O teto de gastos da austeridade fiscal tem seu caráter estrutural de médio e longo prazos. Já as metas primárias podem intensificar esse ajuste ano a ano. Vamos supor que o governo tenha espaço para crescer 2,5%. Se a meta primária for muito dura, caso tenha alguma frustração de receitas em relação ao que se planejava, nem esses 2,5% do teto vão ser alcançados. A meta de primário zero intensifica a lógica estrutural do teto de gastos. Muitos colocam o déficit zero como central e ele é muito importante de combater, mas o que é estrutural e ameaçador é a lógica do novo teto de gastos.
IHU – Por que cortar gastos justamente no orçamento da saúde e da educação, dois serviços importantes para a população?
David Deccache – Isso tudo está em “Uma Ponte para o Futuro”. Quando Michel Temer estava planejando o golpe, seu partido, o MDB, formulou, em 2015, um documento que era um projeto estrutural para o Brasil com bases neoliberais e no projeto das nossas classes dominantes. Elas são subordinadas ao imperialismo, são espoliadas, têm raízes escravocratas... Qual é este projeto? Destruir a saúde, a educação pública, os serviços públicos e oferecê-los via setor privado.
É preciso deteriorar tanto a saúde pública para que elas precisem de planos de saúde. Se eu tenho uma saúde pública muito boa, as pessoas ficam na dúvida entre fazer um plano ou ir ao hospital público. Então é preciso deteriorar o SUS e isso foi anunciado pelo secretário do Tesouro. Esse ataque vai começar, provavelmente, depois das eleições municipais. E há um silêncio absurdo e inacreditável da maior parte da esquerda.
Há uma lógica de disputa pelas forças de acumulação entre o público e o privado. Na educação, é a mesma lógica. Se o orçamento da educação cresce ano a ano de forma robusta, isto permite que novas universidades sejam construídas, que haja uma valorização da carreira docente, mais alunos com acesso à educação superior de qualidade. E o que isto significa para o grupo Cogna Educação, que busca colocar um polo de ensino a distância em cada bairrozinho do país com um professor sendo tutor de 10 mil alunos?
Significa uma expansão muito forte das universidades públicas no Brasil. Significa não ter mercado e que ninguém vai procurar as universidades desses grandes conglomerados educacionais. Então, frear estes gastos com educação pública é para que esses conglomerados de educação privada possam mercantilizar esse espaço que deveria ser um direito fundamental e acessível a todos.
Há também um óbvio conflito distributivo. Nenhum economista na rede Globo vai falar o seguinte: “precisamos cortar gastos com as universidades porque o grupo que eu represento, Cogna, tem um projeto de expansão forte das universidades privadas no Brasil até 2030 e se vocês expandirem as universidades públicas vão anular meus planos”. Eles precisam falar de responsabilidade fiscal, de austeridade e todo aquele papo. Isso tudo está em “Uma Ponte para o Futuro”, resumido em ideia: desindexação do orçamento. Não permitir mais que parcelas do orçamento tenham garantias mínimas constitucionais para o quanto o Estado precisa colocar de dinheiro ali.
Quando se atacam os pisos da saúde e da educação, ataca-se o mínimo que se deve gastar nestes setores. O mínimo do mínimo porque, na realidade, deveríamos gastar bem acima desses pisos. Nosso debate seria como subir esses pisos fortemente para as duas que foram roubadas e deterioradas durante o período de austeridade fiscal. Mas a lógica toda é de um processo de financeirização de ambos.
Os orçamentos da saúde e educação crescem apesar do governo porque está garantido na Constituição, por isso eles pretendem fazer uma PEC para que isso não seja mais garantido e possam cortar. Ao mesmo tempo, estimulam a parceria público/privada em saúde e em educação, com incentivos fiscais – vergonhosos – para os financiadores destas parcerias nas áreas de saúde, educação e segurança pública. Por exemplo, no Rio Grande do Sul, recentemente o governador Eduardo Leite privatizou um presídio em Erechim.
Há um decreto de 2023, do governo Lula, que empresas como essa geram rendimentos isentos do imposto de renda. A empresa, para construir o presídio, precisa de crédito no mercado e ela emite um título para arrumar um financiador. Um super-rico fala para o bilionário: olha, preciso de dinheiro para privatizar um presídio. Quer ser meu sócio? Ele aceita e a empresa paga juros em cima do investimento. A empresa pega o dinheiro e constrói o presídio, escola ou hospital privado, presta serviço para o município, gera lucro e dá uma parcela para o seu investidor. Ele vai receber uma renda por ter investido na privatização e essa renda deveria ser taxada no imposto de renda como qualquer outra, o que ocorria até 2023. O decreto diz que essa renda gerada por um super-rico é isenta de imposto de renda no Brasil.
Na esquerda, o que é mais falado é a imoralidade da isenção para lucros e dividendos distribuídos aos acionistas. Isso acontece quando a pessoa é sócia de uma empresa – por exemplo, é herdeiro da empresa do pai –, nunca trabalhou na vida e recebe uma renda como se fosse um salário e ela não é taxada. Só o Brasil e a Estônia que não taxam isso. Todo trabalhador paga imposto, mas essa pessoa não. Isso é uma loucura.
E agora a mesma coisa acontece com quem privatiza a saúde e a educação. Nós renunciamos a recursos públicos dando isenção fiscal justamente para esses setores em que se está planejando um amplo programa de austeridade fiscal. Ampliamos os gastos de estímulo ao setor privado justamente das áreas onde cortamos gastos públicos. Fica nítida uma tentativa de mercantilização dos serviços públicos. Transformar o que deveria ser direito social, amplo, gratuito e de qualidade em mercadoria onde os mais pobres têm acesso ao serviço mais precário possível – e onde quem pode pagar, paga.
IHU – Por que o governo Lula III entrou nessa lógica que vem sendo construída desde o golpe de 2016?
David Deccache – Minha hipótese é que é uma questão de governabilidade via apoio das classes dominantes. Uma estratégia do governo Dilma em 2015, após a ameaça de 2014, foi entregar o Ministério da Fazenda a Joaquim Levy, praticamente nomeado pelo presidente do Bradesco. Ao entregar a economia ao Bradesco e ao setor representativo das classes dominantes, a posição era de que, por isso, não tem por que eles darem um golpe. Essa era a hipótese. Seria uma forma de enfrentar a direita golpista.
Conforme a popularidade do governo foi se deteriorando, as classes dominantes perceberam que não precisavam mais do apoio do PT e arquitetaram o governo com Temer. Então, “tchau PT porque eu preciso de mais do que eles podiam dar para fazer a reforma trabalhista e a reforma da previdência em 2019”. Foi uma escolha que deu errado em 2015 e que gerou essa traição, que também veio por parte do governo eleito com a classe trabalhadora para agradar o mercado. A traição foi paga com traição.
Até agora o arcabouço fiscal não fez efeito. Ele começou a funcionar a partir deste ano. Em 2023, ainda não havia arcabouço e houve uma expansão fiscal muito forte. Em 2024, uma série de medidas, como a liberação dos precatórios e um efeito de arrastamento dos gastos finais de 2023, faz com que a taxa de crescimento estivesse na casa dos 10,5%. Até julho deste ano, essa taxa estava bem acima do limite do novo arcabouço fiscal.
O ministro Haddad está tentando reduzir esse crescimento para chegar perto dos 2,5% e ainda não conseguiu porque as reformas que ele pretende fazer não avançam. Mas há essa busca pela redução. Dentre as propostas podemos observar algumas: inventaram um pente fino no BPC, uma mentira que é justificada como “combate a fraudes”. A verdade é que eles vão cortar, mais ou menos, 698 mil benefícios para pessoas idosas e com deficiência. Se o objetivo fosse combater fraudes, eles usariam o dinheiro desses supostos infratores para melhorar a elegibilidade do BPC para incorporar outras 700 mil pessoas que precisam. Isso é o que o Paulo Guedes tentava fazer toda hora. Fingir pente fino para pegar as pessoas vulneráveis e fazê-las perder o benefício.
Na Argentina, essa semana, Javier Milei anunciou exatamente a mesma coisa. Passar um pente fino na Previdência e as pessoas foram para a rua. A Tebet não conseguiu reduzir o valor do benefício, mas farão esse pente fino. Nós temos uma situação que vai se deteriorar gradualmente, ano a ano.
E a alta no PIB? O crescimento do PIB dos últimos dois anos está no mesmo patamar do crescimento do governo Bolsonaro nos últimos dois anos de mandato. Em 2021, o aumento foi de 4,8%. Em 2022, foi 3%. Em 2023, no primeiro ano de Lula, foi 2,9%. E agora vai crescer 2,8/2,7%. Ou seja, veremos uma desaceleração. Esse crescimento é por conta de uma expansão fiscal muito forte pós-pandemia, que é justamente o que o arcabouço fiscal visa reverter.
Eu sugiro que as pessoas comecem a acompanhar os economistas não só de esquerda, mas o que esses secretários do ministro Haddad falam na grande imprensa. Ali conseguimos entender a essência desse projeto conduzido pelas classes dominantes em uma tentativa de governabilidade. Parece que ninguém quer ver isso porque precisamos sustentar esse governo por ele estar sendo cercado – e de fato está – pelo fascismo. Mas fascismo se vence combatendo a austeridade fiscal, e não entregando o país para as classes dominantes. Tanto que o fascismo no mundo inteiro ganha força por conta dessa esquerda que pratica um neoliberalismo de forma “progressista”: com austeridade fiscal na economia e tentando garantir os direitos humanos. Isso é impossível de um ponto de vista fiscal. Então ele é progressista só na aparência.