As duas faces perversas da informalidade: sobretrabalho e intermitência

Foto: Marcelo Camargo | Agência Brasil

Mais Lidos

  • Esquizofrenia criativa: o clericalismo perigoso. Artigo de Marcos Aurélio Trindade

    LER MAIS
  • O primeiro turno das eleições presidenciais resolveu a disputa interna da direita em favor de José Antonio Kast, que, com o apoio das facções radical e moderada (Johannes Kaiser e Evelyn Matthei), inicia com vantagem a corrida para La Moneda, onde enfrentará a candidata de esquerda, Jeannete Jara.

    Significados da curva à direita chilena. Entrevista com Tomás Leighton

    LER MAIS
  • Alessandra Korap (1985), mais conhecida como Alessandra Munduruku, a mais influente ativista indígena do Brasil, reclama da falta de disposição do presidente brasileiro Lula da Silva em ouvir.

    “O avanço do capitalismo está nos matando”. Entrevista com Alessandra Munduruku, liderança indígena por trás dos protestos na COP30

    LER MAIS

Revista ihu on-line

O veneno automático e infinito do ódio e suas atualizações no século XXI

Edição: 557

Leia mais

Um caleidoscópio chamado Rio Grande do Sul

Edição: 556

Leia mais

Entre códigos e consciência: desafios da IA

Edição: 555

Leia mais

29 Outubro 2020

"A informalidade assume-se como dupla perversidade: uns trabalham muito e outros trabalham pouco e ambos, sem qualquer proteção de direitos", escreve Cesar Sanson, professor da área da Sociologia do Trabalho no Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN.

 

Eis o artigo.

 

Faz poucos dias, em um Uber, perguntei ao jovem motorista, na casa dos 25 anos, em que trabalhava anteriormente; disse-me que era frentista e saiu do emprego, porque era explorado por seu patrão, que lhe exigia trabalhar duplamente, na bomba e na loja de conveniência e, ainda, era rude e grosseiro. Saiu de sua cidade do interior e veio para Natal (RN); alugou uma quitinete, um carro e passou a trabalhar em jornadas diárias de 12 horas, chegando ao pico de 14 horas e até 16 horas.

Quando lhe questionei sobre o limite da jornada diária de, no máximo, 12 horas, permitida pelo Uber (há um mecanismo em que o motorista não pode ultrapassar essa jornada e é colocado em off no aplicativo), afirmou que passava, então, a trabalhar em outros aplicativos, como o 99. A sua vida se resume a isso, trabalhar o dia inteiro e dormir para reiniciar mais uma jornada de trabalho. O seu sonho é comprar um carro próprio para aumentar os seus ganhos, já que aproximadamente 50% do que ganha é destinado ao aluguel do carro.

Isso tem um nome, chama-se sobretrabalho. A condição em que o trabalhador é submetido a longas e extenuantes jornadas de trabalho em determinada atividade ou em mais de uma.

Lembrei então do longo e minucioso relato de Marx descrito no capítulo 8 do volume I d’O Capital sobre a jornada de trabalho. Mesmo com o seu rigor de descrição e atendo-se a fontes públicas, relatórios, documentos governamentais e publicações na imprensa, não se pode deixar de perceber a indignação de Marx pelo abjeto e desmedido despudor na exploração do sobretrabalho. Relatos colhidos pelo autor contêm descrições que mostram a mesquinhez do furto de minutos que eram destinados ao descanso de trabalhadores, fraudes como o não pagamento acordado pela jornada de trabalho praticada e, o mais inquietante, descrições aterradoras sobre situações a que eram submetidas crianças a partir dos nove anos, às vezes menos, em jornadas de trabalho que se iniciavam às 6h da manhã e se prolongavam até as 20h, 21h da noite, com pequenas pausas para o café e o almoço.

Ainda mais, havia jornadas que se estendiam noite adentro, mesmo para as crianças, e estratégias de revezamento no trabalho que flagelavam os trabalhadores. Relatos e testemunhos dão conta da crueldade e da impavidez dos patrões, mesmo diante das condições de morbidade e pauperismo dos trabalhadores. Acerca disso, afirma Marx:

A produção capitalista, que é essencialmente produção de mais-valor, sucção de mais-trabalho, produz, com o prolongamento da jornada de trabalho, não apenas a debilitação da força humana de trabalho, que se vê roubada de suas condições normais, morais e físicas, de desenvolvimento e atuação. Ela produz o esgotamento e a morte prematuros da própria força de trabalho. Ela prolonga o tempo de produção do trabalhador durante certo período mediante o encurtamento de seu tempo de vida” [1].

Como se vê, o sobretrabalho é constitutivo ao nascimento do capitalismo. Em sua forma contemporânea, porém, assume uma perversidade ainda maior. Já não é o empregador, o patrão, que impõe ao trabalhador jornadas extenuantes. É ele mesmo que assume para si essa condição e submete-se a esse flagelo. É evidente que, no caso do motorista do Uber, a necessidade de trabalhar muito está condicionada pela necessidade de aumentar a sua renda para tentar melhorar a sua vida. Por detrás dessa obsessão em trabalhar o tempo todo está subjacente a crença de que o esforço será recompensado. Trata-se da narrativa do discurso do empreendedorismo, que se assenta no fato de que é o esforço individual que empurra as pessoas para o sucesso.

Registre-se que esse trabalhador é informal. A informalidade é heterogênea, mas, o que a define, em contraposição à formalidade, é a completa ausência da proteção regular de direitos.

Há, também, outra face da informalidade, oposta à anterior: a da intermitência. Aqueles que querem trabalhar regularmente, mas não conseguem, porque não encontram trabalho, submetem-se ao trabalho intermitente. É o caso, por exemplo, da diarista que, ocasionalmente, vem à minha casa. Ela gostaria de ter mais diárias, mas não consegue e sofre com isso, porque a ausência de trabalho significa queda no rendimento para sustentar a família; o marido, também na informalidade, não tem uma atividade regular. Chegou ao extremo de mandar os filhos para a casa da mãe, no interior do estado, para que não passem fome.

A informalidade tem essa dupla perversidade: uns trabalham muito e outros trabalham pouco e ambos, sem qualquer proteção de direitos. Essa condição, a do trabalho informal, é de uma magnitude espantosa no Brasil, anda sempre na faixa dos 40% da população economicamente ativa. A última Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios – Pnad Covid-19, de setembro de 2020, apontou para uma informalidade na casa de 35%. O decréscimo da informalidade, no caso, deve-se a um aumento do desemprego provocado pela Covid-19. Registre-se que a informalidade nos estados do Nordeste e Norte são superiores à taxa nacional.

Acompanha a informalidade os baixos rendimentos. Por isso mesmo, quem consegue um trabalho regular, trabalha muito, como visto numa recente pesquisa sobre trabalhadores do turismo no litoral norte-riograndense – os trabalhadores de sol e mar, como camelôs, barraqueiros, balseiros, bugueiros – realizada por mim e mais duas pesquisadoras da UFRN. Nessa pesquisa, mais da metade dos trabalhadores informais (53,5%) trabalhavam entre 06 e 07 dias por semana em jornadas diárias de sete a nove horas.

A pandemia da Covid-19 agravou ainda mais essa situação. Aqueles que precisavam trabalhar muito (sobretrabalho) para auferir uma renda razoável, de repente se viram trabalhando bem menos e aqueles que trabalhavam irregularmente (intermitentes) ficaram, praticamente, sem trabalho. Não fosse o Auxílio Emergencial, os trabalhadores informais estariam numa condição ainda mais dramática. Triste país que maltrata os seus trabalhadores.

Nota:

MARX, Karl. O Capital (2017). Boitempo, vol. I, p. 338.

Leia mais