Para o economista e pesquisador, apesar das falas de Lula contra Campos Neto, não há divergências entre o projeto macroeconômico do Executivo e projeto monetário do Banco Central
Expressões como “teto de gastos”, “austeridade fiscal” e, o mais recente, “arcabouço fiscal” há anos passaram a fazer parte do repertório de milhões de brasileiros. Em que pese os temas sejam discutidos política e ideologicamente, há pouca compreensão sobre o que na verdade esses termos significam e quais são suas diferenças entre si. Na prática, apesar de suas nuanças, todas elas se referem a eufemismos que, no fundo, resultam na redução de direitos sociais.
Com relação ao arcabouço fiscal, projeto encaminhado pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad, três setores essenciais são diretamente afetados: Saúde, Educação e Seguridade Social. “A primeira consequência é uma forte limitação orçamentária para o Estado manter e ampliar os serviços públicos, então há uma tendência de deterioração desses serviços”, explica David Deccache em entrevista por telefone ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU. “Intencionalmente foi criada uma lógica fiscal para impor uma deterioração de recursos para essas três áreas”, complementa.
No fundo, o que está em jogo é uma radicalização da financeirização da política. “É importante analisar (…) que o aspecto de financeirização está imposto: primeiro, a austeridade fiscal destrói o público, depois há o incentivo para a privatização desse serviço via parceria público-privada, que é a forma predominante em que se privatizam serviços públicos”, alerta Deccache.
“Há uma lógica de desestatização e financeirização dos serviços públicos no Brasil que está atrelada a uma lógica de acumulação cada vez mais agressiva de um capitalismo em crise, de um neoliberalismo em sua crise cada vez mais profunda. Não é algo desse governo em específico, mas é a continuidade de um processo cada vez mais espoliativo e mais agressivo de um capitalismo que tenta se reconstruir das próprias crises que ele gera”, explica o entrevistado.
Apesar das semelhanças, do ponto de vista fiscal, do governo Lula III com seus antecessores, Temer e Bolsonaro, há diferenças e avanços importantes na atual gestão. “Nós saímos de uma política de transferência direta de renda de R$ 170,00 por família para mais de R$ 600,00 por família; saímos de algo que equivalia a 0,5% do PIB para algo em torno de 1,5% do PIB. Também houve a aprovação do Piso da Enfermagem e a elevação do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação – Fundeb, o que elevou o patamar de gastos”, sopesa o economista.
Em breve publicaremos a segunda parte da entrevista com David Deccache.
David Deccache (Foto: Reprodução | Faixa Livre)
David Deccache é doutor (UnB) e mestre (UFF) em Economia e assessor técnico na Câmara dos Deputados. É coautor do livro Teoria Monetária Moderna: a chave para uma economia a serviço das pessoas (Genérico: 2020).
IHU – Pode traçar um panorama da política econômica do atual governo Lula? Como ela funciona e a que está orientada?
David Deccache – A política econômica do governo Lula está centrada na estrutura do novo arcabouço fiscal, que organiza toda a política econômica do governo. Este arcabouço começou a funcionar em 2024. Em 2023, ainda não estávamos dentro do novo regime fiscal. Logo, as consequências estruturais desse projeto econômico, inclusive desejadas quando o arcabouço foi construído e aprovado, passarão a ser percebidas no decorrer deste ano e nos próximos. A primeira consequência é uma forte limitação orçamentária para o Estado manter e ampliar os serviços públicos, então há uma tendência de deterioração desses serviços.
Uma segunda questão importante, agora sendo mais específico, é em relação a áreas fundamentais para gastos sociais: Saúde, Educação, Previdência Social e Seguridade Social. O novo arcabouço fiscal, em sua construção, visava instruir os pisos constitucionais para essas áreas. Isso é uma conclusão necessariamente matemática: quando o novo arcabouço fiscal é construído, cria-se uma incompatibilidade entre o novo teto de gastos que ele impõe e os pisos, seja o piso da saúde, que equivale a 15% das receitas correntes líquidas, seja o piso da educação – 18% das receitas impostas –, seja o atrelamento do salário mínimo aos benefícios previdenciários e ao Benefício de Prestação Continuada – BPC como piso. Isso é uma conclusão matemática porque a taxa de crescimento do teto de gastos é muito inferior à taxa de crescimento desses pisos, logo há uma incompatibilidade matemática entre essas taxas e, em algum momento, o orçamento não será mais possível ser administrado, porque esses pisos ocupariam praticamente todo o orçamento e não haveria mais despesas para as outras áreas.
Intencionalmente foi criada uma lógica fiscal para impor uma deterioração de recursos para essas três áreas. A desindexação é um pilar que vemos muito claramente no projeto econômico estabelecido pela “Ponte para Futuro” do MDB, em 2015. Por outro lado, além dessa deterioração, o que é um pilar do projeto neoliberal, que também está manifesta no documento Ponte para o Futuro, é a mercantilização e a financeirização dos serviços públicos. O governo Lula também avança nesse ponto.
Não basta só deteriorar, ou seja, reduzir o Estado no seu papel de prestador de serviços sociais; eles necessitam dar muito poder de um Estado muito grande para desestatizar e avançar na financeirização. Isso é realizado através da centralidade do Programa de Parceria de Investimentos – PPI, criado na época do governo Michel Temer, que visava estruturar e estimular junto aos governos estaduais e municipais parcerias públicos-privadas de todos os tipos. Aliás, o governo Lula cria uma série de isenções tributárias, alguns que não existiam nem no governo Temer e nem no Bolsonaro, para estimular e facilitar a privatização da Educação, da Saúde, de presídios socioeducativos, meio ambiente, do saneamento básico dos estados e municípios no âmbito do PPI.
Isso ocorre via instrumentos como as Debêntures Incentivadas e as Debêntures de Infraestrutura, em que as empresas que desestatizem essas áreas fundamentais – saúde, educação, meio ambiente, saneamento, sistema prisional – conseguem se financiar com mais facilidade. Por exemplo, no caso Debêntures Incentivadas, elas conseguem emitir debêntures e obter recursos no mercado e quando elas vão pagar a remuneração para o financiador que entrou com ela como parceiro nessa privatização, essa renda é isenta de imposto de renda. Ou seja, quem financia essas empresas, quando recebe a renda gerada pelo financiamento, é considerado pelo governo federal, por ser da mais alta relevância social, com isento de pagar imposto de renda. É a mesma lógica dos juros e dividendos no Brasil. Isto cria uma lógica em que há uma enorme facilidade para o avanço das parcerias público-privadas – PPPs.
Por outro lado, foram criadas as Debêntures de Infraestrutura. Eu poderia citar vários exemplos. Quando a empresa emite a debênture, ela precisará pagar juro ao financiador. Esse juro pago pode ter parte significativa do imposto de renda. Portanto, o Estado paga uma parte que a empresa deveria pagar para o financiador renunciando ao imposto de renda da empresa também. São vários mecanismos de incentivos tributários para tornar as PPPs interessantes num contexto em que os serviços públicos estão sendo destruídos. Então o Estado tira o serviço público e dá para a iniciativa privada privatizar.
Além disso, é importante analisar – poucos estão percebendo –, que o aspecto de financeirização está imposto: primeiro, a austeridade fiscal destrói o público, depois há o incentivo para a privatização desse serviço via parceria público-privada, que é a forma predominante em que se privatizam serviços públicos.
Tem austeridade, privatização e depois o governo permite que papéis no mercado financeiro circulem atrelados a essa desestatização. Então há uma predominância da especulação financeira no que antes era público. Um exemplo disso são as privatizações dos presídios. Quando elas ocorrem, as empresas vão emitir papéis, a rentabilidade desses papéis está atrelada ao sucesso da lógica financeira desse processo de privatização dos presídios, que depende do aumento da população carcerária para fazer mais sucesso e, a valorização desses papéis, por consequência, também. Portanto, cria-se uma coalizão de interesses entre privatização e mercado financeiro, que por consequência cria um vínculo com setores poderosos que vão fortalecer o punitivismo, porque a mercantilização do encarceramento em massa dos jovens negros virou lucro e especulação: quanto mais eficiente o Estado empreender, mais lucros serão gerados.
Há uma lógica de austeridade fiscal imposta pelo arcabouço fiscal, e o Estado criando mercados pela secretaria do PPI. Mais um detalhe dessa secretaria: o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social – BNDES é o banco que estrutura os editais e financia diretamente as parcerias públicos-privadas ou busca financiamento para essas parcerias. O BNDES é central para o processo de desestatização. Isso vem acontecendo desde o governo Temer, mas é no governo Lula que ganha mais ênfase o que eles chamam de infraestrutura social – saúde, educação e sistema prisional. Tanto é que o decreto inserindo essas áreas nas Debêntures Incentivadas e nas novas Debêntures de Infraestrutura é de 2023. Nem nos governos Temer e Bolsonaro essas áreas tinham direito a esses benefícios; eram áreas mais de infraestruturas de fato, como portos e aeroportos.
Por fim, ainda nesse modelo, há as Garantias Soberanas do Tesouro, porque o capitalismo espoliativo não gosta de riscos. Por exemplo, o Eduardo Leite privatizou recentemente um presídio em Erechim. Há uma crise fiscal no Rio Grande do Sul mesmo antes da tragédia. O BNDES deu apoio para a construção do edital e para a obtenção do financiamento. As empresas podem captar recursos no mercado via debêntures para facilitar a obtenção de crédito ou junto a este banco. Mesmo assim, elas correm o risco de o governo gaúcho não ter condições de pagá-las em determinado mês pelo encarceramento, o que gera um risco e desincentiva as empresas a entrar nos negócios e nesse jogo de desestatização. No caso de não pagamento do governo estadual, o governo federal faz o pagamento por meio das Garantias Soberanas do Tesouro e o estado fica com dívida com o governo federal, eliminando o risco da operação. Veja: é um Estado muito forte e robusto para desestatizar e um Estado cada vez menor para a prestação de serviços públicos.
Há uma lógica de desestatização e financeirização dos serviços públicos no Brasil que está atrelada a uma lógica de acumulação cada vez mais agressiva de um capitalismo em crise, de um neoliberalismo em sua crise cada vez mais profunda. Não é algo desse governo em específico, mas é a continuidade de um processo cada vez mais espoliativo e mais agressivo de um capitalismo que tenta se reconstruir das próprias crises que ele gera.
IHU – No frigir dos ovos, que diferenças há entre o teto de gastos, aprovado pelo governo Temer, e o arcabouço fiscal de Haddad?
David Deccache – Há diferenças, mas os fundamentos são os mesmos. O governo Lula tentou manter o teto do Temer até 2026 na PEC da Transição e o congelamento dos pisos da Saúde e da Educação – isso é importante não ser apagado da história econômica brasileira. Durante o governo de transição, inclusive a burguesia já sabia, que o teto do Temer havia se tornado inviável. Porque as políticas de transferência direta de renda, naquela época o Auxílio Emergencial, tinham mudado de patamar por conta da pandemia e da tentativa de estelionato eleitoral do Bolsonaro, que ampliou o auxílio para logo depois reduzir, caso fosse eleito.
Nós saímos de uma política de transferência direta de renda de R$ 170,00 por família para mais de R$ 600,00 por família; saímos de algo que equivalia a 0,5% do PIB para algo em torno de 1,5% do PIB. Também houve a aprovação do Piso da Enfermagem e a elevação do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação – Fundeb, o que elevou o patamar de gastos. Essas despesas não eram mais comportadas pelo velho teto de gastos, isso tudo decorrente da pandemia e de algumas aprovações que tivemos de algumas matérias durante esse tempo por pressão popular. Então o teto de gastos não poderia voltar – isso era um dado.
A opção do governo de transição naquele momento foi manter o teto de gastos do Temer e os pisos da saúde e da educação congelados, porém com a retirada da política de transferência direta de renda desse teto, no caso o novo Bolsa Família. Eles pediram um espaço em torno de R$ 170 bilhões para essa política, que ficaria fora dessa lógica de austeridade fiscal. Portanto, há austeridade fiscal para o conjunto de despesas, porém sem ter austeridade fiscal direita para a transferência direta de renda. Isto é um neoliberalismo explícito. Políticas fortes de transferência de renda focalizadas e a austeridade fiscal para todo o resto em nada entram em contradição com o que o Milton Friedman defendia.
Essa minuta de PEC, que foi formalmente apresentada e é pública, foi rejeitada e encenada. foi construído algo “melhor” no Congresso. À época, eu e alguns colegas economistas escrevemos uma crítica dura a essa tentativa do governo porque, em nossa opinião, eles estavam perdendo uma janela de oportunidades: avançar na revogação do teto e na retomada dos pisos constitucionais e na construção de uma nova lógica fiscal, que desse protagonismo ao Estado no seu papel de provedor dos serviços públicos e de motor dos investimentos na economia. Essa opção não foi a do governo, mas no Senado houve um debate onde chegaram à conclusão de que o teto de gastos deveria ser derrubado.
No Senado eles permitem o “furo” que o governo queria para 2023 e também nesse ano o governo federal deveria enviar um Projeto de Lei Complementar – PLC para o Congresso com uma nova regra fiscal. Esse PLC, ao ser aprovado, revogaria o antigo teto de gastos e retomaria os pisos da Saúde e da Educação. Mais do que isso: o Senado coloca esse projeto de iniciativa exclusiva do Poder Executivo, ou seja, ninguém mais poderia construir essa lei, não deixando brechas para o Congresso construir algo e votar. Nesse ponto vemos quais são as limitações dadas pela correlação de forças no Congresso Nacional e pelo projeto estrutural que o governo federal se comprometeu em realizar a gestão. Claro que isso não foi um surto de altruísmo do Senado, essa mudança de lógica fiscal.
Em minha opinião, isso decorre de uma disputa entre alguns políticos do Senado e a Câmara dos Deputados. Por exemplo, Renan Calheiros disputa Alagoas com o Arthur Lira e ele percebe, claramente, que a lógica do teto de gastos antigo favorecia demasiadamente o Lira. Porque precisava ser furado com frequência via Proposta de Emenda Constitucional – PEC, que exige um quórum muito elevado e dava muito poder ao Lira frente aos governos, o que gerava emenda de orçamento secreto dentro da Câmara, logo ampliava o poder do Lira e facilitava a disputa dele contra o Renan em Alagoas. Dentro dessa lógica política, que não tem a ver com o bem-estar social, havia essa janela de oportunidades.
O governo ganhou a possibilidade de criar uma lógica de política fiscal em que a austeridade fiscal e a financeirização não fossem predominantes e não comandassem toda a lógica de gestão do orçamento público. Mas não, o que o governo fez foi enviar um novo teto de gastos – o novo Arcabouço Fiscal.
A lógica do arcabouço é a mesma do antigo teto: inviabilizar a manutenção dos pisos constitucionais, da Previdência e do BPC. Quando o Temer fez o teto de gastos dele, ele sabia que para manter o teto precisava quebrar os pisos da Saúde e da Educação – na verdade ele suspendeu – e para isso precisava de uma Lei Complementar, que é onde se criam e se estabelecem regras fiscais no Brasil, e depois criar uma PEC alterando os pisos. Havia outra possibilidade: ele fazer uma PEC já mexendo nos pisos e criando as regras.
O ministro Haddad precisou lidar com a mesma contradição do Temer, já que o objetivo dele era exatamente o mesmo: quebrar pisos, desindexar o orçamento. É uma pauta da escola de economia do Instituto de Ensino e Pesquisa – Insper, de onde o Haddad vem. A opção do Haddad foi fazer em duas etapas, primeiro enviando um PLC estabelecendo o novo teto de gastos e, depois, uma série de medidas de emenda constitucional quebrando os pisos e desindexando o orçamento da Previdência Social.
A lógica estrutural é a mesma. A diferença é que no novo teto de gastos pode haver o crescimento de até 2,5%, em termos reais, acima da inflação e o no teto do Temer não havia esse crescimento. Mesmo esse argumento é frágil porque o teto do Temer era frequentemente furado. Quando observamos os dados reais, o crescimento das despesas primárias era acima até de 2,5% em vários anos, mesmo antes da pandemia. No primeiro ano do governo Bolsonaro, teve um crescimento 2,7% acima da inflação. Então esse 2,5%, que é o máximo, que é o melhor dos mundos, está duas ou três vezes abaixo do que os governos Lula I e II faziam em termos de taxa de crescimento de gastos, que é o que dá a direção do tamanho dos gastos sociais de investimentos públicos. Está em linha com o que se observava na prática nos governos anteriores de Temer e Bolsonaro: não há uma mudança na trajetória de crescimento desses gastos.
Necessariamente, nessa lógica do arcabouço fiscal, quando olhamos para as projeções, inclusive oficiais do governo, há uma redução dos gastos primários do Estado. Retirando os gastos financeiros com dívida pública e afins, em relação ao PIB, tendemos a ter um Estado cada vez menor em relação à economia. Ou seja, a relação entre os gastos primários e o PIB piora ao longo do tempo, vai caindo. Há um Estado cada vez menor em relação a uma população que cresce. Isto necessariamente implica na mercantilização dos serviços públicos, há cada vez menos dinheiro em relação a uma população que cresce, e um espaço cada vez maior para o setor privado atuar. É uma lógica de espoliação dos serviços públicos.
Quando o novo arcabouço fiscal foi apresentado, havia uma mentira matemática. Havia duas formas de tornar o arcabouço sustentável: uma era tributando os mais ricos e muitos economistas progressistas alegavam que o arcabouço fiscal induzia à tributação dos mais ricos. A outra seria pelo corte de gastos sociais e de investimentos públicos. Esse debate [real] nunca foi colocado, mas foi “colocado” para legitimar os cortes de gastos sociais após falarem que não conseguiram aumentar a tributação sobre os mais ricos no Congresso. No entanto, essa é uma narrativa mentirosa porque o novo arcabouço fiscal independe do crescimento de receitas para funcionar – esse é um dado matemático. Ele não depende de receitas para ser sustentável, mas depende necessariamente de quebras dos pisos da Saúde e da Educação, da Previdência e da Seguridade Social para se tornar sustentável. Mas é uma lógica de ajuste fiscal exclusivamente em cima de gastos sociais e todo o resto é teatro.
Há dois tetos principais no novo arcabouço fiscal. Primeiro, há um teto que fala que as despesas do próximo ano só podem crescer a uma taxa de 70% do que as receitam cresceram. Porém a Saúde e a Educação crescem numa taxa próxima de 100% do que as receitas cresceram. É como se esse primeiro teto fosse um grande caminhão correndo a 70 km por hora e fechando uma estrada, atrás nós temos o carro da Saúde, da Educação, da Previdência e do BPC, ambos a 100 km por hora. Em determinado momento esses carros vão bater no caminhão; enquanto eles não batem, vão atropelando as despesas que não têm proteção constitucional, que não são despesas obrigatórias.
Ou seja, há uma crise orçamentária dada, que independe do crescimento das receitas. A incompatibilidade pelo lado dos gastos é mantida independentemente do crescimento das receitas. A insustentabilidade fiscal no Brasil é do lado dos gastos e é autoimposta pelo novo arcabouço fiscal. Esse é outro elemento que fugiu do debate público por conta de um teatro.
Há um segundo teto ainda. Porque se as receitas crescem 10% no primeiro teto, os gastos podem crescer 7%. Porém, para isso não acontecer, porque mesmo assim achavam que iriam crescer muito os gastos, eles colocaram no teto de 2,5%. Isto é, mesmo se o Lira virar “socialista” e aumentar muito as receitas, os gastos ficam limitados a 2,5%. É pior do que o meu primeiro exemplo. Quando levamos em consideração o segundo teto, é um caminhão andando a 25 km por hora e os outros carros andando a 100 km por hora. E, se dobrar as receitas, carros vão andar a 200 km por hora, mas o teto que é o grande caminhão vai continuar a 25 km por hora, que é o limite máximo dele. Portanto, aumentará uma crise orçamentária.
Na prática isso se revela em 2023: todas as vezes que as receitas aumentam a mais do que o estimado, Saúde e Educação têm que aumentar a receita corrente líquida. No entanto, isso aumentando e o teto parado, tem que fazer contingenciamento em outras áreas para repassar os valores para a Saúde e a Educação. Isso levou, por exemplo, o governo a buscar junto ao Tribunal de Contas da União – TCU a quebra dos pisos da Saúde em 2023, com a argumentação muito questionável de que os pisos só voltariam em 2024, sendo que, em minha avaliação e de vários juristas, os pisos deveriam voltar imediatamente após a aprovação do novo arcabouço fiscal. Assim, eles tiram alguns bilhões da Saúde em 2023 porque as receitas cresceram e não porque as receitas caíram.
É importante colocar isso, porque há muitos que dizem que há a possibilidade de tornar o arcabouço fiscal sustentável, revendo, por exemplo, as desonerações fiscais, como o presidente Lula fala. Isso é impossível. É óbvio que temos que rever as desonerações fiscais, mas isso nada muda a incompatibilidade matemática dos pisos com o teto. Essa é uma conclusão que todos os economistas sérios já tiraram, inclusive os do mercado financeiro e os da esquerda que têm compromisso com a verdade. É teatro.
Outro teatro é a taxa de juros. Se a taxa de juros reduzir, é possível diminuir os gastos financeiros, e os gastos públicos sociais poderiam ser aumentados. Isso é terraplanismo porque em nada muda o congelamento de gastos sociais se diminuir a taxa de juros mas o arcabouço fiscal é blindado a todas essas possibilidades progressistas, ele só funciona, portanto, com ataque aos gastos sociais.
O novo arcabouço fiscal impõe uma lógica neoliberal espoliativa em que os serviços públicos se tornam insustentáveis e subordinados à lógica de austeridade fiscal e de mercantilização e financeirização.
IHU – Em que sentido o discurso da “austeridade” é uma armadilha que acaba afetando negativamente os mais empobrecidos?
David Deccache – O discurso de austeridade fiscal é o senso comum que as classes dominantes tentam estabelecer para alcançar um consenso e uma aceitabilidade social para avançar com ataques contra a classe trabalhadora. Esse discurso tem forte aderência na classe trabalhadora porque ele diz que, tal qual uma família ou tal qual uma padaria, não se deve gastar mais do que se arrecada.
Então eles colocam a austeridade fiscal e a destruição dos gastos públicos como responsabilidades fiscais, sendo que, para o governo gastar na própria moeda que ele emite, as restrições são completamente diferentes das restrições de uma família ou de uma padaria, que são usuários da moeda emitida. É totalmente diferente pensar no emissor soberano e monopolista de uma moeda e pensar nos usuários dessa moeda. Quem emite a própria moeda na qual emite seus gastos não possui restrições fiscais tal qual uma família ou empresa. Porque há déficits fiscais, inclusive muito profundos, tal qual foi na pandemia, sem ir à falência porque a dívida pública está atrelada à moeda que só você pode emitir. O que significa que um Estado monetariamente soberano não quebra na própria moeda que emite. Essa conclusão, por exemplo, é exposta em entrevista recente pelo economista André Lara Rezende, que foi o formulador do Plano Real.
Um governo, usando o economista burguês que é John Maynard Keynes, deve estipular sua política fiscal entre déficits e superávits, de modo a equilibrar a economia próximo ao pleno emprego das suas forças produtivas, para não haver excesso de gastos para além das possibilidades técnicas e materiais do que geraria inflação, mas também para não haver gastos em que os recursos produtivos ficassem ociosos, o que implica em desperdício da capacidade material de fazer coisas socialmente úteis. A austeridade fiscal vem para atuar e blindar essas possibilidades e se estabelece neste senso comum de que o Estado deve se comportar tal qual a dona Lindu ensinou ao presidente Lula: não gastar mais do que arrecada. Só que a dona Lindu não emite seus gastos na própria moeda, não determina sua própria taxa de juros à qual sua dívida está atrelada.
São situações totalmente distintas e não há nenhuma comparação entre a macroeconomia e as finanças domésticas, como os economistas tentam fazer para convencer a classe trabalhadora a defender políticas que vão contra os próprios interesses da classe trabalhadora. A austeridade fiscal age buscando criar consensos por meio dos seus aparelhos ideológicos, Estado e imprensa, o que é totalmente contraproducente para os trabalhadores. Quando há aceitabilidade social a estas políticas, perdem-se direitos, aumenta-se a exploração. Portanto, a austeridade fiscal busca uma aceitabilidade social para cumprir com seus objetivos.
Primeiro, tirar uma taxa de desemprego disciplinadora para a classe trabalhadora, porque o desemprego no capitalismo exerce um efeito disciplinador. Ou seja, as pessoas ficam receosas de perder o emprego e, portanto, aceitam todo e qualquer tipo de violação de direitos, o esmagamento de salários, elas têm mais dificuldade de se organizarem socialmente porque sabem que têm uma fila de outros trabalhadores, que se forem mandadas embora, vão querer a vaga delas. Essa é a contradição do capitalismo em tempos de neoliberalismo. A pessoa tem que vender sua força de trabalho para ser megaexplorada e ter sua vida destruída para poder sobreviver, ou ficará desempregada e não poderá sobreviver. A austeridade fiscal cumpre esse papel de manter um exército industrial de reserva que desequilibra a correlação de forças no caso entre capital e trabalho para o lado do capital.
O segundo efeito desta política de austeridade fiscal é o efeito de impedir que o Estado seja provedor de bens e serviços públicos para que o setor privado atue nessa provisão de bens e serviços públicos. Para atacar esferas de acumulação que estão sob o controle da sociedade, de uso comum, e expandir esferas de acumulação para o setor privado, inclusive atrelando isso à financeirização. Por isso que eu falei lá no começo da entrevista que o novo arcabouço fiscal é um pilar dessa lógica neoliberal, porque faz com que seja autoimposta. É óbvio que tudo isso gera grande resistência da classe trabalhadora. No entanto, com os aparelhos ideológicos funcionando na lógica de que isso é necessário para equilibrar as contas, de que todos esses retrocessos são fundamentais para equilibrar as contas em prol da responsabilidade social, acaba que uma parcela da militância e da classe trabalhadora começa a agir contra seus próprios interesses. Todas essas falácias precisam ser denunciadas.
IHU – Na sua avaliação, até que ponto a equipe econômica do governo federal – principalmente Haddad e Tebet – está alinhada ao Banco Central, especialmente Campos Neto? Em que convergem e no que divergem as políticas fiscais (governo) e monetárias (BC)?
David Deccache – Há um alinhamento total nos fundamentos teóricos. Isso não é uma hipótese, mas um fato, porque eles partem do mesmo arcabouço teórico, que é a nova síntese neoclássica. Em termos muito simples: a política fiscal deve ser muito dura e neutra. Então faz-se uma política fiscal que fica na mão do Haddad e da Tebet, para que a partir disso o Campos Neto possa reduzir as taxas de juros. Essa é a lógica da estrutura econômica que “harmoniza” as políticas fiscal e monetária no novo consenso macroeconômico ou na nova síntese neoclássica.
Uma versão mais radicalizada disso é a hipótese da contração fiscal expansionista do Joaquim Levy em 2015, que o Haddad repete nas suas falas sem citar que teoria está usando. Ele diz que vai reduzir investimentos públicos e gastos sociais, o que teria um efeito contracionista. Mas esse efeito contracionista não vai se manifestar, pois quando fizer isso vai ganhar confiança do mercado e do Banco Central, que vai reduzir taxa de juros. Então, quando a redução da taxa de juros ocorrer, haverá um aumento dos investimentos privados que vai mais do que compensar a queda dos investimentos públicos. O efeito líquido desta contração fiscal será expansionista. O pai da sua tese é um economista italiano chamado [Alberto] Alesina, mas essa tese já foi desmoralizada e, hoje, é questionada inclusive pelo próprio Fundo Monetário Internacional – FMI.
Há uma harmonia de fundamentos, por isso que o Haddad fala que está conseguindo fazer uma política fiscal apertada, para pressionar o Banco Central a reduzir taxa de juros. No caso contrário, para conseguir fazer uma política expansionista, precisa aumentar a taxa de juros. O que há é um teatro funcional quando o governo federal discute desvinculação do BPC, que é um benefício para pessoas com deficiência e necessariamente também em situação de extrema pobreza, e para pessoas idosas em situação de extrema pobreza, a Tebet faz uma proposta em que essas pessoas não ganhariam mais um salário mínimo e sim um valor menor do que esse. Ela fez essa proposta publicamente.
A esquerda não discute isso porque tem que olhar o Campos Neto, é óbvio que ele é um agente do capitalismo, do neoliberalismo, atrelado totalmente aos interesses do sistema financeiro. No entanto, quando esse teatro é armado, Tebet e Haddad acabam sendo blindados nos seus destaques e no qual o governo tem total controle.
A autonomia do Banco Central – e nisso reforço o alinhamento do Haddad com o Campos Neto – foi defendida pelo Haddad em 2018 e ele defende até hoje. Haddad é um defensor forte da autonomia do Campos Neto. O governo teoricamente não poderia fazer nada. O governo defende que ele não pode agir, ao mesmo tempo que o Campos Neto pode fazer o que quiser e fala que ele não deveria fazer o que quisesse. Isto revela um teatro.
Quando o governo estudou o cogitou enviar uma proposta de lei para reverter a autonomia do Banco Central? Quando que o Conselho Monetário Nacional (formado por Tebet, Haddad e Campos Neto) cogitou encaminhar uma exoneração do presidente do Banco Central? O presidente da República poderia encaminhar, teria que alinhar com o Senado tem uma ampla articulação para isso acontecer, mas em que momento ela foi desenhada ou cogitada?
O Conselho Monetário Nacional, que está na mão do governo federal, dentro dessa lógica de novo consenso macroeconômico, é quem define a meta de inflação a ser cumprida. Se a meta de inflação é muito conservadora, a política monetária do Banco Central também se torna muito conservadora e exige taxa de juros muito mais altas. Uma forma de forçar o Campos Neto a reduzir a taxa de juros, dentro do modelo que ele usa, é permitir uma meta de inflação um pouco mais alta – as taxas de inflação no mundo também estão um pouco mais altas. A meta poderia ser ampliada, por exemplo, para 4,5%, como sempre foi, isso forçaria automaticamente uma queda mais forte nas taxas de juros.
Há uma harmonia entre eles, talvez, um teatro misturado com um desacordo de variáveis. O Campos Neto tem sido funcional para o governo porque, por exemplo, na época em foi aprovado o novo arcabouço fiscal, ninguém debateu o impacto que teria nos pisos da saúde, da educação, que era líquido e certo. Porque no mesmo momento, na mesma semana, o governo criou uma ofensiva contra o Campos Neto. Todo mundo se direcionou para o ataque ao Campos Neto e ninguém olhou para o arcabouço fiscal aprovado. Esse foi um teatro funcional e não se discutiu de forma democrática na sociedade. O Campos Neto sempre reforçou seu apoio à política de austeridade fiscal do Fernando Haddad, ele só acha que não está funcionando. E não está funcionando plenamente porque o Haddad ainda não quebrou os pisos, que é a pressão que o mercado financeiro tem feito em cima dele, constantemente.