15 Outubro 2021
É pouco provável que exista um historiador econômico no mundo mais atualizado do que Adam Tooze. Se em 2008 deixou os especialistas boquiabertos com seu monumental Crash, um livro no qual esmiuçava as causas e consequências da crise financeira, agora publica [na versão em espanhol] El apagón: cómo el coronavirus sacudió la economía mundial (Crítica), um dinâmico registro sobre o que aconteceu durante a pandemia, “a primeira crise integral da era do Antropoceno”.
Tooze narra com a precisão de um cirurgião o modo como estivemos tão próximos do colapso financeiro e afirma que, embora tenhamos conseguido escapar de uma debâcle graças a um punhado de economistas, bancos centrais e a resposta fiscal dos governos, pode ser que ainda não aprendemos a grande lição da crise. “Isso era apenas um ensaio”, afirma este professor da Universidade Columbia.
Nesta entrevista, Tooze, eleito um dos pensadores mais importantes do mundo pela revista Foreign Policy, em 2019, fala sobre por que o dogma da austeridade ficou definitivamente desacreditado, de seu pessimismo na luta contra as mudanças climáticas e do medo “infundado” da inflação.
A entrevista é de Carlos Barragán, publicada por El Confidencial, 10-10-2021. A tradução é do Cepat.
Quão perto estivemos do colapso econômico e financeiro, durante a crise da pandemia?
Muito perto. Não acredito que alguém gostaria de saber o que teria acontecido em março de 2020, se não houvesse uma intervenção de forma excepcional. É como se perguntasse a alguém: quão perto esteve da morte? Nesse caso, há consenso de que estivemos próximos da morte.
Uma prova é a monumental resposta dos bancos centrais: injeções de milhões de dólares por segundo, quase 8 bilhões por dia... Você só faz isso se está extremamente preocupado com o que está acontecendo no mercado financeiro. Quando falei com pessoas que estiveram na linha de frente, mostraram sintomas de estresse pós-traumático.
Sério?
Verdade, não conseguem parar de falar sobre isso. Têm flashbacks recorrentes. Se você está no negócio de fundos de investimento, onde administra grandes quantidades de dinheiro, onde a liquidez do mercado do Tesouro é uma preocupação constante, o que aconteceu em março de 2020 foi algo inédito em sua vida. Pior do que em 2008.
Escreve que se os bancos fossem os de 2008, a crise teria sido devastadora. Mas agora estavam melhor preparados.
Teria sido um massacre. Se a capitalização tivesse sido tão ruim como em 2008 e com o ritmo de contágio do covid, teríamos presenciado uma autêntica catástrofe. É claro, duas coisas mudaram: os bancos estavam muito mais capitalizados e a crise não podia sair do controle. As políticas fiscais efetivadas pelos governos, especialmente os Estados Unidos, foram implementadas de forma muito rápida. Houve muito poucos níveis de falências ou inadimplências.
No livro, explica que vivemos um ano muito contraditório, com governos e instituições tradicionalmente conservadoras dizendo a executivos progressistas que deveriam ser mais atrevidos com sua política fiscal. Mas agora muitos deles já estão pedindo um retorno à moderação. O que considera que vai acontecer? Voltaremos a uma trilha fiscalmente conservadora?
Estamos narrando os acontecimentos conforme os vivemos. Nesse momento, essa pergunta que você me fez segue vigente. Também na Europa. Na Alemanha, está se debatendo entre os verdes e os liberais para decidir o futuro programa econômico em Berlim, que terá consequências enormes no continente. Ainda não sabemos para onde irá. Até mesmo no FMI estão ocorrendo vários debates sobre o tema, segundo cada departamento. É muito polêmico.
Você se mostra muito crítico à “ingenuidade” conservadora de retornar a um passado econômico que não existe mais. O que devemos fazer para evitar uma nova crise? Ou melhor, o que devemos evitar para não cair nos mesmos erros do passado?
Em 2020, houve bem poucos conservadores. A verdadeira prova para saber se aprendemos algo observaremos em 2022 e 2023. O argumento atual dos conservadores é o mesmo de sempre: temos que defender a sustentabilidade e voltar à estabilidade. Temos que restaurar as velhas leis da economia. Mas a pergunta é: quais leis? Faz sentido voltar ao critério de Maastricht, onde 60% dos cidadãos europeus vivem em países que têm mais de 100% da dívida em relação ao PIB?
Voltar a essas regras fiscais conservadoras não nos reconduzirá aos prósperos anos 1990, mas a um lugar terrível onde ainda não estamos... mas podemos terminar aí. A visão conservadora não é mais conservadora porque nos levará a crises sem-fim e fará com que muitos movimentos políticos se radicalizem.
O que quer dizer?
Em um momento de crise, até mesmo os conservadores percebem que tudo precisa mudar para que tudo continue igual. Quando a crise passa, os conservadores se tornam mais ingênuos: quero que as coisas sejam como eram antes. É totalmente irrealista! Não é possível voltar ao passado, fazendo as mesmas coisas que antes.
De um ponto de vista econômico, temos que encontrar um novo equilíbrio. Esse equilíbrio será definido por novos parâmetros. E não funcionará impor novamente pela força os antigos parâmetros com o objetivo de conseguir o antigo equilíbrio.
Você diz que uma das principais lições da crise de 2020 é que a política fiscal é uma escolha política e não técnica.
Até agora nos diziam que só é possível alcançar a sustentabilidade da economia por meio de uma política objetiva, normativa e positivista. Ou seja, que a austeridade e as medidas conservadoras eram inevitáveis. Não tínhamos outra opção. Mas isso não é assim.
É válido que a austeridade seja a sua preferência, mas a evidência empírica não sustenta mais essa tese. Se decidirmos voltar à trilha da austeridade, não será pelo que nos diz o empírico, mas pela nossa posição política. A política é decisiva. Grande parte da crise da zona do euro é induzida pela política. Está em nossas próprias mãos nos dirigir a um novo desastre.
Tanto em seu livro ‘Crash’ como neste, dedica muitas páginas ao papel do ‘Federal Reserve’ dos Estados Unidos para nos salvar de uma crise ainda maior, tanto em 2008 como 2020. Inclusive, você o chama de Banco Central do mundo.
De 50% a 60% da economia mundial se movimenta em dólares. Muitas exportações de commodities têm os preços em dólares, muitos balanços por todo o mundo têm dívidas em dólares... porque é mais barato emprestar nessa moeda. Quem não está disposto a emprestar em dólares?
A Evergrande, por exemplo, tem muito financiamento com moeda estadunidense. Por isso, a última coisa que a Evergrande e todas as companhias semelhantes gostariam de ver seria um aumento das taxas de juros nos Estados Unidos. A Evergrande tem cerca de 20 bilhões de dívida em dólares.
De fato, um aumento das taxas de juros nos Estados Unidos tem um efeito imediato e devastador para o resto do mundo. Significa que a moeda que o mundo todo usa se torna mais cara. O modo como o Federal Reserve atua é decisivo para o resto.
Em março de 2020, por exemplo, o valor do dólar começou a subir provocando algumas repercussões muito negativas para a economia global. Isso só foi aliviado quando o Federal Reserve começou a injetar dólares no sistema e houve um efeito de expansão. E, graças a isso, no final do ano, um país como Peru conseguiu emprestar a uma taxa de juros aceitável, graças à ação do Fed.
Um dos efeitos negativos desse tipo de ação é a desigualdade, não é?
O Fed é muito poderoso, mas, ao mesmo tempo, têm efeitos secundários porque atua através das finanças. O dinheiro nunca é neutro. Quando entra no sistema, isso se dá em um lugar determinado. Depois, começa a se expandir, mas com menos força.
Quando falamos de política monetária, costumamos pensar em agregadores macroeconômicos, mas não pensamos: quem é o primeiro a receber a primeira injeção de dinheiro e a quem é repassado? Em nível macro, o objetivo de políticas como o QE (Quantitative Easing) é estimular a economia, baixar as taxas de juros e aumentar o investimento. E o ponto mais importante: evitar crises.
Quer dizer que mesmo com efeitos negativos, os efeitos positivos são muito maiores.
Evitar as crises econômicas é imperativo porque têm efeitos muito prejudiciais que duram anos e décadas. E, segundo, o QE estimula a atividade econômica. E isso beneficia o mundo todo. Quando o dinheiro chega ao mercado financeiro, o primeiro que faz é salvar os hedge funds de muitas perdas. Muitas.
De uma forma muito marginal, reduz o custo do empréstimo no Peru. E de uma forma muito, muito marginal, ajuda um pequeno autônomo a manter seu negócio durante a crise na Flórida.
Mas no primeiro dia em que o dinheiro entra no mercado financeiro, um milionário de um Hedge Fund enxuga o suor da testa porque foi o primeiro a se beneficiar. “Obrigado, Federal Reserve”. Qualquer gestor inteligente de um fundo entendeu o que tinha que fazer quando o Fed salvou a economia, em março de 2020.
Qual é a sua opinião a respeito das pessoas que criticam essas ações do Fed?
O fato de que elas tenham consequências prejudiciais, não significa que o mundo estaria melhor se não tivessem sido efetivadas. Muito pelo contrário. Se não tivessem sido feitas, teria ocorrido uma crise devastadora em todos os sentidos. A economia teria desmoronado.
Salvar a economia significa coisas muito diferentes para diferentes pessoas. Sabemos que este tipo de política monetária expansiva tem um efeito que beneficia mais os donos de ativos financeiros. Nos Estados Unidos, os 10% da sociedade mais rica detêm a imensa maioria do S&P 500. E o 1% muitíssimas ações do S&P 500. Houve pessoas que ganharam muito dinheiro durante a pandemia.
Outra ideia que você desenvolve no livro é que a pandemia acabou de uma vez por todas com algumas crenças neoclássicas sobre como a economia funciona. Refiro-me, sobretudo, a como entendemos a inflação e as taxas de juros.
Se você tem interesse pela economia, é impossível que não esteja se perguntando o que há por trás das forças atuais. Por que as taxas de juros caem? Por que a inflação não se recupera? Há muitos fatores a longo prazo. A incorporação de centenas de milhões de trabalhadores asiáticos nas cadeias de fornecimento globais, a partir dos anos 1990, conseguiu influenciar. Também o fato de, há muito tempo, não existir grandes planos de investimentos nos países ricos. Houve um desequilíbrio entre investimentos e poupanças em muitos países ricos.
E se você é keynesiano, nunca acreditou realmente que os neoclássicos tivessem uma boa explicação sobre as taxas de juros. Se você lê Keynes, observa que ele não diz isso. O investimento se move pelos animal spirits (“espíritos animais”, em referências às emoções) dos quais Keynes falava. E as taxas de juros se movimentam de acordo com os mercados de dinheiro. Os economistas nunca chegaram a um acordo sobre as taxas de juros.
Agora está se recuperando, mas muitos economistas insistem que é por razões conjunturais. Como você vê as manchetes e as declarações alarmistas sobre a inflação?
Nunca tivemos esses enormes gargalos nas cadeias de fornecimento que surgiram com a pandemia. Estamos navegando às cegas. Desde 2008, sabemos que você pode mudar completamente o balanço do sistema financeiro, pode adquirir bônus dos balanços dos bancos e injetar um montão de dinheiro. E seu impacto na inflação é zero. Mas isso não acontecia há anos e desta vez fizemos o mesmo.
Há um grande choque com temas específicos nos mercados de energia de petróleo e gás que tem a ver com investimentos complexos e temas políticos. Há uma demanda muito grande pela recuperação impulsionada pelo crescimento na Ásia e nos Estados Unidos.
Há muitos alarmistas, sobretudo na Alemanha, que falam em uma inflação devastadora. Não há evidência de que isso vai acontecer. São ajustes pelo reequilíbrio do mercado após um choque como o da pandemia. Não há nenhuma razão pela qual devamos temer a inflação.
Você se mostra muito pessimista com o esforço global, de um ponto de vista econômico, para frear as mudanças climáticas. Por quê?
Não há nenhuma razão para sermos otimistas. Nos Estados Unidos, no Reino Unido e na Europa a única coisa que se fala é que os preços da energia são muito altos. A pandemia demonstrou a inconsistência dos argumentos que nos proibiam formular uma resposta coerente contra as mudanças climáticas. Mas também contra a pandemia!
Oito mil pessoas no mundo estão morrendo por covid, por dia. Nos Estados Unidos, 2.000. E não temos um programa global coerente que vacine o resto do planeta. Não estamos considerando a possibilidade de que todas as novas infecções acabem em uma nova variante.
Se não podemos solucionar isso, que está bem na nossa cara, imagine os efeitos das mudanças climáticas que podem ocorrer daqui a 20 ou 30 anos. E isso nos ensina lições muito amargas sobre o nosso futuro e os limites de nossa capacidade de ter uma resposta coletiva.
Nesse caso, ao menos tínhamos uma bala de prata: a vacina! Imagine se alguém desenvolvesse uma tecnologia que acelerasse muitíssimo a descarbonização de nossa economia e que custasse alguns milhares de milhões. Não tenho certeza que todos concordariam em pagar! Não sou nada otimista. De fato, conforme o tempo passa, mais pessimista sou.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
“Voltar à austeridade nos levará ao desastre”. Entrevista com Adam Tooze - Instituto Humanitas Unisinos - IHU