06 Janeiro 2020
Como ideais socialistas podem abordar a desigualdade e a mudança climática.
O capitalismo está em crise. Recentemente, essa convicção estava confinada na esquerda. Hoje, no entanto, ganhou força para atravessar o espectro político nas economias avançadas. Economistas, políticos e pessoas comuns tem elevado a percepção de que o neoliberalismo – um credo construído na fé no livre mercado, desregulamentação e governos mínimos, e que dominou as sociedades pelos últimos 40 anos – chegou ao limite.
O artigo é de Miatta Fahnbulle, chefe executiva da New Economics Foundation, publicado por Foreign Affairs, edição Janeiro/Fevereiro de 2020. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Essa crise está em longa vigência, mas foi posta em foco após o colapso financeiro global de 2007–8 e a recessão global que se seguiu a ela. Nos países desenvolvidos da OCDE o crescimento econômico ao longo da última década deixou de beneficiar o bem-estar da maioria das pessoas. Ao final de 2017, o crescimento salarial nominal entre os membros da OCDE foi somente metade da década passada. Estima-se que mais de uma em três pessoas nos países da OCDE são economicamente vulneráveis, o que significa que não possuem os meios para manter um padrão de vida acima do nível da pobreza nos últimos três meses. Enquanto isso, nesses países, a desigualdade de renda cresceu mais que em qualquer outro tempo do século passado: os 10% mais ricos possuem mais que 50% de toda riqueza, e os 40% mais pobres possuem apenas 3%.
Defensores do neoliberalismo frequentemente apontam que apesar de décadas de estagnação e concentração de riqueza levarem ao aumento da desigualdade nos países desenvolvidos, ao mesmo tempo tem aumentado dramaticamente a prosperidade em escala global. Mais de bilhões de pessoas, eles argumentam, seriam tiradas da extrema pobreza com os avanços tecnológicos, investimentos e prosperidade que seria possível alcançar pela expansão dos livres mercados. No entanto, esse argumento falha em explicar o papel crítico que os governos desempenharam nessa mudança por meio da provisão de educação, assistência médica e emprego. Tais intervenções estatais têm sido tão decisivas quanto a mão invisível do mercado para elevar os padrões de vida. Essa defesa também ignora o fato de que, apesar de muitos ganhos em prosperidade, a concentração massiva de riqueza e a desigualdade impressionante continuam a moldar a economia global: menos de 1% da população mundial possui 46% da riqueza mundial e os 70% mais pobres possuem menos de 3%.
A desigualdade tem sido uma característica das sociedades capitalistas, e as pessoas chegam a tolerá-la desde que sintam que a qualidade de vida está melhorando, suas oportunidades estão expandidas, e as crianças têm expectativas de um futuro melhor. Quando isso parou de acontecer nas décadas recentes, cresceu uma percepção que o sistema é injusto e não funciona ao interesse da maioria das pessoas. Reprimindo frustações leva-se ao clamor pelas mudanças – incluindo uma nova receptividade dos ideais socialistas que estavam marginalizados ou mesmo eram considerados tabus. No Reino Unido, por exemplo, em uma recente enquete, 53% das pessoas disseram acreditar que a economia se tornou mais injusta durante a última década. 83% disseram que sentem que a economia funcionou bem para os ricos, mas somente 10% afirmaram que favoreceu as pessoas nascidas em famílias pobres. E ideias como a reestatizar propriedades públicas de utilidades essenciais que foram privatizadas nas últims décadas, como metrôs, serviços de eletricidade e companhia de água, ganharam tração, com mais de 75% das pessoas entrevistada apoiando essa medida. Enquanto isso, nos Estados Unidos, um pesquisa Gallup de 2018 descobriu entre os estadunidenses de 18 a 29 anos, que o socialismo tem uma aprovação maior que o capitalismo (51% contra 45%). “Isso representa um declínio de 12 pontos na visão positiva que ‘jovens adultos’ tinham [sobre o capitalismo] nos últimos dois anos”. Gallup apontou “e uma mudança acentuada desde 2010, quando 68% percebiam o sistema positivamente”.
Um mero revival da agenda social-democrata da era pós-guerra, porém, não seria suficiente. Por um motivo, aquele período teve ênfase na autoridade central e na propriedade estatal concorrendo contra uma ampla demanda nas economias desenvolvidas para mais controle coletivos dos recursos locais. Talvez, mais importante, é a necessidade de confrontar o desafio que os modelos socialdemocratas do pós-guerra não levaram em conta: a ameaça da mudança climática e catástrofe ambiental. Depois de tudo isso, o neoliberalismo simplesmente não está acabando com as pessoas: ele acaba com a Terra. Devido em grande parte aos massivos níveis de consumo e combustíveis fosseis que são requeridos por um modelo econômico que prioriza o crescimento acima de tudo, a mudança climática impede o futuro da existência humana. No último ano, a Painel Intergovernamental sobre a Mudança Climática (IPCC, sigla em inglês) concluiu que o mundo tem menos de uma década para cessar as emissões de carbono para a humanidade ter alguma chance de limitar o aumento da média da temperatura global a 1.5° C sobre os níveis pré-industriais – um ponto em que os danos aos sistemas humano e natural seriam devastadores e amplamente irreversíveis..
Assim como a crise econômica que tirou a qualidade de vida das pessoas, o declínio ambiental está enraizado na crise do capitalismo. E ambos os desafios podem ser direcionados para incentivar um modelo econômico alternativo, que dê respostas à fome por genuínas reformas, adaptando ideais socialistas à idade contemporânea. Um novo modelo econômico deve priorizar um meio ambiente próspero e saudável. Também deve entregar melhorias no bem-estar e garantir a todos os cidadãos uma qualidade de vida decente. Isso deve ser construído pelos negócios que planejam em longo prazo, procurar servir a propósitos sociais para além do aumento de lucros e valores de ações, e dar voz aos seus trabalhadores. O novo modelo empoderaria pessoas e daria um forte suporte à economia estabelecendo bem públicos comuns e infraestrutura essencial e incentivando a propriedade cooperativa e conjunta de empresas privadas administradas localmente. Esse chamado para um ativo, mas descentralizado Estado, deveria devolver o poder a nível local para as comunidades e habilitar as pessoas para agirem coletivamente para melhorarem suas vidas.
O Reino Unido serve como um interessante estudo caso de como a crise do capitalismo atua. Lá, assim como nos Estados Unidos, governos de centro-direita e centro-esquerda tem seguido há décadas a receita neoliberal de corte de impostos, redução dos benefícios sociais e desregulamentação – ainda mais entusiasticamente que a maioria de outros países europeus, nos quais existem forte tradição e instituições socialdemocratas. Como resultado, a crise neoliberal tem sido particularmente dolorosa no Reino Unido, onde as pessoas estão em média mais pobres hoje do que estavam em 2008 – considerando o ajuste da inflação. A dívida britânicas é maior do que era antes da crise financeira, visto que mais pessoas fazem apenas empréstimos para sobreviver, e 14,3 milhões de pessoas vivem na pobreza.
Para muitos britânicos, o referendo de 2016 sobre deixar a União Europeia serviu como uma saída para descontar a raiva com um sistema falido. O voto a favor do Brexit foi uma clara mensagem para as comunidades sob pressão que o status quo precisa mudar. Mais que três anos depois, essa inquietação continua a crescer, abrindo espaço para mudanças mais radicais na política doméstica – como se percebe pelas recentes ideias do Partido Trabalhista que já seria considerado muito arriscado, como a estatização dos serviços e o estabelecimento de uma companhia farmacêutica estatal.
Mas mesmo no Reino Unido, plataformas políticas não alcançaram as demandas públicas por mudanças significativas. O que é necessário nas economias desenvolvidas não é mexer em torno de asas, mas uma reforma em escala completa das relações entre Estado, economia e comunidades. O primeiro passo deveria ser um Green New Deal global: uma massiva mobilização de recursos para descarbonizar e ao mesmo tempo criar milhões de empregos e melhorar os padrões de vida. O objetivo deveria ser emissão zero de carbono em 10 a 15 anos, os quais requerem governos que façam mudanças significativas em investimentos em infraestruturas verdes, como parques eólicos onshore e offshore e campos de energia inteligente; em novas tecnologias como a captura de carbono e o armazenamento; e no treinamento de trabalhadores para desenvolver as habilidades que eles precisam para empregos que uma economia verde geraria, como instalação de isolamento, manutenção de sistemas de energia renovável e recondicionamento e reciclagem de bens usados.
Políticos também precisarão criar incentivos para companhias reduzirem seu uso de carbono substituindo subsídios de combustíveis fósseis com impostos que incentivem o uso de renováveis. Novas regulamentações, como padrões de construção zero-carbono ou quotas para o uso de energia fóssil, ajudaria a pressionar mercados que demoram a agir em resposta à crise climática. E os bancos centrais precisarão incentivar os mercados financeiros a desinvestir em combustíveis fósseis por meio de políticas mais rígidas de orientação ao crédito, incluindo limitar a quantidade de crédito que pode ser usada para apoiar o investimento em atividades intensivas em carbono e estabelecer cotas para a quantidade de financiamento que deve fluir para investimento de baixo carbono.
Para incrementar os salários, os governos deveriam usar todas as alavancas do Estado – taxas corporativas, regulamentação dos salários e subsídios – para incentivar ou forçar negócios para pagar de forma justa seus trabalhadores. Um compartilhamento justo dos ganhos para os trabalhadores deveria vir não somente na forma de altos salários, mas também com a redução do tempo de trabalho, mudando para uma média de quatro dias por semana, nos quais os governos poderiam adquirir incrementando feriados. Ao mesmo tempo, o poder dos trabalhadores de proteger seus interesses deve ser fortalecido exigindo que todas as empresas automaticamente reconhecessem sindicatos e fortalecessem os direitos dos trabalhadores para organizar, barganhar coletivamente e fazer greves. Os trabalhadores devem também ganhar maior participação nos lucros das organizações que os empregam. Os governos devem determinar aos fundos de propriedade dos funcionários que transfiram uma parte dos lucros da empresa, na forma de patrimônio líquido, para uma relação de confiança que pertence aos trabalhadores coletivamente. Através da confiança, os trabalhadores receberiam ações da empresa, como qualquer acionista. Essas ações dariam direito a voto, permitindo que os funcionários se tornassem os acionistas dominantes em todas as empresas ao longo do tempo, com o poder de moldar a direção dos negócios em que trabalham. No Reino Unido, um número crescente de empresas, incluindo a cadeia de lojas de departamentos John Lewis, o varejista de entretenimento doméstico Richer Sounds e a empresa de consultoria Mott MacDonald já estão colhendo os benefícios de colocar a propriedade nas mãos dos trabalhadores: maior produtividade, melhor retenção e engajamento dos trabalhadores e lucros mais fortes.
Um novo contrato social com cidadãos deveria se estender para além do lugar de trabalho, embora, com o último objetivo sendo o estabelecimento de um “estado de bem-estar” que proveria a todos as necessidades básicas para manter uma qualidade de vida decente. Essa requer um aumento no investimento nos serviços básicos do Estado de bem-estar social, que foram enfraquecidos pelos governos neoliberais, como a garantia universal ao acesso à saúde e educação de alta-qualidade. Mas a nova abordagem deveria ir além desses elementos familiares, oferecendo acesso universal a creches, transporte público e um mínimo de proteção de renda – isto é, um piso do qual a renda de ninguém pode baixar, independentemente de uma pessoa estar empregada. Essa expansão do estado de bem-estar deveria ser feita através de um programa de taxação que aumentaria a taxa sobre quem pode pagar mais, aumentando o imposto para quem tem melhores rendas, taxando a riqueza, assim como ganhos de capital.
As políticas de cima para baixo, no entanto, não serão suficientes para estimular o tipo de transformação que deve ocorrer nos países desenvolvidos, a fim de realmente sacudir a estagnação e o declínio neoliberal. Essas sociedades também devem se tornar mais democráticas, com poder e recursos distribuídos aos governos regionais e locais, mais próximos das pessoas nas comunidades que servem. Essa é uma maneira crítica pela qual essa nova agenda econômica seria diferente do socialismo mais tradicional, que tende a favorecer a autoridade centralizada e a propriedade do Estado. Por exemplo, em vez de confiar nos governos federais ou provinciais para o essencial do dia-a-dia, como energia, moradia a preços acessíveis e transporte público, os municípios devem estabelecer empresas pertencentes e responsáveis perante os residentes pela prestação desses serviços.
O País Basco, na Espanha, oferece um exemplo de como seria uma economia mais democrática. Lá, a Mondragon Corporation, criada em 1956 por graduados de uma faculdade técnica para fornecer emprego por meio de cooperativas de trabalhadores, cresceu e se tornou um dos dez maiores grupos de negócios e o quarto maior empregador da Espanha, com centenas de empresas e subsidiárias diferentes e mais de 75.000 trabalhadores. As cooperativas operam em uma variedade de setores, incluindo bancos, bens de consumo e engenharia. Elas são criadas não apenas para obter lucro, mas também para atingir um objetivo social ou ambiental específico. Elas pertencem e são administradas pelas pessoas que trabalham para elas e não por investidores externos, e suas estruturas de governança garantem que os membros tenham participação nas organizações e compartilhem a riqueza que geram.
Os fundos comunitários no Reino Unido são outro exemplo. A Granby Four Streets, em Liverpool, e a London Community Land Trust, no distrito de Mile End, fornecem moradias acessíveis às comunidades locais, comprando terras do setor privado e assumindo a propriedade da comunidade. A confiança constrói casas a preços acessíveis que vende ou aluga a residentes locais a taxas reduzidas. Um bloqueio de ativos impede que a terra seja revendida, o que garante que as casas permanecerão acessíveis.
Experiências que venham de baixo para cima, como essas, serão essencias para o sucesso de um novo modelo econômico. Para que essas experiências floresçam, figuras políticas influentes que se identificam com a tradição socialista – pessoas como Alexandria Ocasio-Cortez e Bernie Sanders nos Estados Unidos e Jeremy Corbyn no Reino Unido – devem usar suas plataformas para chamar a atenção para ativistas de nível local e organizações que estão trabalhando para criar uma economia mais democrática. Enquanto isso, será necessário um certo grau de paciência: levará tempo para que esse novo pensamento produza as mudanças em larga escala necessárias. Mas essa paciência também deve ter um limite: quando se trata de consertar os danos causados pelo neoliberalismo, o tempo está se esgotando.
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O colapso neoliberal. O mercado não é a resposta - Instituto Humanitas Unisinos - IHU