Para avançar na gestão dos resíduos sólidos, os municípios brasileiros precisam investir em consórcios e tecnologias, diz o biólogo
A Política Nacional de Resíduos Sólidos - PNRS, instituída pela Lei nº 12.305 dez anos atrás, apesar de alguns avanços, ainda caminha a passos lentos e não conseguiu implementar um dos seus objetivos principais, o gerenciamento universal dos resíduos sólidos nos municípios brasileiros. “Alguns setores avançaram de forma muito lenta, como é o caso da eliminação de métodos de disposição dos resíduos no solo, causadores de grandes danos ambientais e de saúde pública, enquanto outros tiveram avanços importantes, como é o caso da logística reversa para alguns setores, como mostra o Sistema Nacional de Informações sobre a Gestão de Resíduos Sólidos - Sinir do Ministério do Meio Ambiente”, resume Ednilson Viana, doutor em Saneamento e professor da Universidade de São Paulo - USP. De acordo com ele, até 2017, somente “49,63% dos municípios possuíam plano de gestão de resíduos sólidos, estabelecidos como instrumentos da PNRS”.
Entre os principais gargalos do Brasil na gestão dos resíduos sólidos, o pesquisador menciona a coleta seletiva, que é realizada em apenas 34% dos municípios brasileiros, e a não erradicação dos lixões, que estava prevista para 2014, mas foi postergada para 2021. Para enfrentar esses desafios, Viana sugere que os municípios precisam superar o modelo de gestão de resíduos sólidos individualizado e optar por modelos de gestão de consórcio entre os municípios. “Como temos a grande maioria dos municípios de pequeno porte, com menos de 20.000 habitantes, aplicar os instrumentos da nossa PNRS se torna um fator limitante. Por outro lado, agrupar-se em consórcio gera diversos desafios e os políticos têm um efeito forte neste processo. Portugal tem sistemas constituídos por mais de 20 municípios, garantindo a implementação de sistemas de coleta seletiva mais eficientes e a adoção de tecnologias que permitem a destinação adequada da maioria dos recicláveis secos. O formato desse agrupamento é muito importante e precisa ser focado como um elemento muito, mas muito importante para a longevidade, ampliação e fortalecimento dos sistemas de gestão de resíduos sólidos no Brasil”, argumenta.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, Viana também reflete sobre a situação dos catadores, que dependem da coleta de materiais recicláveis para sobreviver. Neste período de pandemia, em que ainda há incertezas acerca de tempo de sobrevivência do vírus na massa de resíduos, alerta, o risco de os catadores contraírem o novo coronavírus é maior, especialmente nos municípios em que ainda existem lixões. “Os resíduos domiciliares, após contato com uma pessoa infectada, podem então carregar esse vírus (caso ele sobreviva) até o trabalhador que atua sobre a massa de resíduos sem proteção. Além disso, os resíduos domiciliares ainda contêm uma parcela de resíduos de serviço de saúde devido à inexistência de um sistema eficiente de coleta diferenciada para esse resíduo junto à população. Neste sentido, os lixões se tornam ainda mais perigosos”, afirma.
Ednilson Viana (Foto: nome do fotógrafo)
Ednilson Viana é graduado em Ciências Biológicas pela Universidade Estadual Paulista - Unesp, mestre em Ciências pelo Instituto de Química de São Carlos da USP e doutor em Saneamento pela Escola de Engenharia de São Carlos, da USP, onde também leciona.
IHU On-Line - Neste ano, comemoram-se os dez anos da instituição da Política Nacional de Resíduos Sólidos - PNRS no Brasil. Que diagnóstico é possível fazer?
Ednilson Viana – Alguns setores avançaram de forma muito lenta, como é o caso da eliminação de métodos de disposição dos resíduos no solo, causadores de grandes danos ambientais e de saúde pública, enquanto outros tiveram avanços importantes, como é o caso da logística reversa para alguns setores, como mostra o Sistema Nacional de Informações sobre a Gestão de Resíduos Sólidos - Sinir do Ministério do Meio Ambiente.
No caso dos acordos setoriais para a logística reversa, inicialmente a PNRS previa a elaboração e implementação de logística reversa para agrotóxicos (resíduos e embalagens); pilhas e baterias; pneus; óleos lubrificantes (resíduo e embalagem); lâmpadas fluorescentes (vapor de sódio, mercúrio, luz mista); e eletroeletrônicos. Algumas destas cadeias já tinham um sistema de logística reversa implantado, como é o caso dos pneus, embalagens de agrotóxicos, óleo lubrificante usado e pilhas e baterias. Outros foram sendo assinados ao longo desta década: eletroeletrônicos em 31/10/2019; lâmpadas fluorescentes em 27/11/2014; embalagens plásticas de óleo lubrificante em 19/12/2012; embalagens de aço em 21/12/2018; embalagens em geral em 25/11/2015. Somente os medicamentos encontram-se na fase final do processo. Após a assinatura, vem a implementação dos acordos e esta fase pode exigir um pouco mais de tempo, por isso os efeitos dos acordos não são imediatos, mas são um importante passo para uma gestão adequada dos resíduos sólidos.
Sobre a disposição de resíduos sólidos no solo, e aqui me refiro ao aterro sanitário, aterro controlado e lixão, os avanços foram pequenos, como mostra o quadro a seguir, que parte dos dados do Sistema de Informação em Saneamento - SNIS do Ministério das Cidades em 2010 e compara com o último, de 2018. Percebe-se pelo quadro que a evolução foi muito pequena mesmo: houve um acréscimo de aproximadamente 0,9% em relação à porcentagem de disposição adequada de 2010, em oito anos de PNRS, para 2018 (ainda não temos dados de 2019 e 2020).
Com relação aos lixões, a sua eliminação estava prevista para ocorrer em 2014, mas está sendo postergada para além de 2021.
Analisando o número de municípios com iniciativas de coleta seletiva, o Sinir mostra que, em 2020, apenas 34% dos municípios realizam coleta seletiva, sem tocar na "saúde" destes programas. Este é um outro lado a ser discutido, pois os programas podem apresentar baixa eficiência, considerando abrangência e índice de recuperação de materiais recicláveis, mas o número do Sinir não reflete isso.
Até 2017, que são os dados de posse do Sinir, apenas 49,63% dos municípios possuíam plano de gestão de resíduos sólidos, estabelecidos como instrumentos da PNRS. Nesse caso, não só a elaboração do plano é importante, mas também a sua implementação deveria ser uma prioridade. O número apresentado ainda é baixo em relação à quantidade de municípios brasileiros e precisa avançar neste sentido.
IHU On-Line - A PNRS trouxe algum avanço para o modo como o Brasil trata os seus resíduos sólidos?
Ednilson Viana – Sem dúvida trouxe. Citam-se a logística reversa, a responsabilidade do gerador de resíduos, os planos de gestão quando elaborados e implementados corretamente, a hierarquia de resíduos que é importante, dentre outros.
IHU On-Line - O senhor tem informações sobre qual é o percentual dos municípios que aderiram à PNRS integral ou parcialmente?
Ednilson Viana – Neste termo “adesão” não é possível dizer, porque são muitas frentes de análise na gestão dos resíduos sólidos quando se olha o fluxo destes. Com relação aos planos de gestão, por exemplo, é possível dizer que 49,63% dos municípios até 2017 elaboraram os seus planos de gestão de resíduos sólidos. Este número deveria ser muito maior e a implementação destes planos deveria acompanhar essa evolução.
IHU On-Line - Quais foram as diretrizes da PNRS mais difíceis de serem implementadas ao longo da última década?
Ednilson Viana – Várias. Em logística reversa foi trabalhoso a assinatura dos acordos setoriais e a sua implementação terá igual ou maior trabalho, mas a principal que vejo é que eliminar lixões está sendo muito difícil. Muitos países no mundo, especialmente na Europa, já estão abandonando aterros sanitários, enquanto nós estamos ainda lutando para eliminar lixão. A Alemanha, por exemplo tem uma política de aterro zero, assim como a Suécia, e estão conseguindo.
Outro ponto a analisar é que a nossa PNRS tem como base a responsabilidade compartilhada (fabricante, comerciante, importador, consumidor etc.), quando na Europa ela é estendida do produtor, ou seja, o fabricante ao colocar uma embalagem no mercado paga uma taxa, que é recolhida por um fundo e este fundo é que gere a gestão dos resíduos na sua cadeia e paga os custos dela. Isso garante, por exemplo, que alguns materiais recicláveis que têm baixo valor de mercado, como é o caso do vidro, possam retornar ao ciclo de consumo pela reciclagem e não ficam aterrados no solo nos métodos de disposição.
IHU On-Line - De outro lado, quais foram as diretrizes que tiveram ampla adesão?
Ednilson Viana – Eu diria que a logística reversa para alguns setores funcionou e está funcionando bem. O marco legal em resíduos sólidos no Brasil foi extremamente importante para guiar as ações corretivas para o presente e para o futuro. Inadequações existem neste marco, como foi dito para a responsabilidade compartilhada, mas é importante que os ajustes sejam feitos na sua revisão para que tenhamos um modelo adequado para o futuro. A experiência mostra que não basta apenas um marco legal adequado, é preciso entender os obstáculos regionais sem perder de vista metas e datas.
IHU On-Line - Quando a PNRS foi instituída, havia uma grande expectativa em torno da responsabilidade compartilhada. Foi possível avançar nesse aspecto ao longo da última década?
Ednilson Viana – Na minha opinião isso é uma consequência de algumas outras ações. Por exemplo, se a coleta seletiva não avança e não disponibiliza sistemas de coleta para a população ou a informação não chega até a população, o processo estará falho. Eu quero dizer que a responsabilidade compartilhada depende de algumas outras ações no processo e que os gestores públicos e os governantes precisam estar atentos. Há resíduos, como os de serviço de saúde e também os da construção civil (as autoconstruções), que não bastam apenas serem segregados nas residências se o caminhão de coleta de recicláveis passa ali. É preciso levar esses resíduos até um ecoponto ou a um local que recolha esses resíduos e que esteja próximo da população. Isso é muito importante, senão, vai ser difícil funcionar.
IHU On-Line - Em que consiste o Programa Nacional Lixão Zero, lançado pelo Ministério do Meio Ambiente? Em que pontos ele se aproxima e se distancia da PNRS?
Ednilson Viana – Este é um programa do Ministério do Meio Ambiente que busca eliminar os lixões existentes no país. Quando redigiram esse programa, creio que quiseram dizer que ele tratava dos métodos inadequados de disposição dos resíduos no solo, como os lixões e aterros controlados. Esse programa busca também apoiar os municípios para as soluções corretas de disposição, que seriam os aterros sanitários. Esse programa vai ao encontro da PNRS, a qual tem buscado a eliminação destes métodos inadequados no solo.
IHU On-Line - Recentemente o Ministério do Meio Ambiente mencionou a possibilidade de adotar a incineração de resíduos sólidos e estuda-se a possibilidade de construir uma usina em Mauá, no ABC Paulista, com a capacidade de queimar diariamente três mil toneladas de resíduos. Como o senhor vê essa proposta? Ela é viável para o Brasil? Sim, não, e por quais razões?
Ednilson Viana – A hierarquia estabelecida na PNRS prevê esse caminho. Quando se esgotam todas as possibilidades de desvio dos materiais recicláveis dos métodos de disposição no solo pela redução, reúso e reciclagem (valorização comum), é importante que se busque a valorização energética e por último se encaminha para o aterro sanitário. O que está acontecendo com os resíduos domiciliares é que, na sua grande maioria, apesar dos esforços, estão indo para o aterramento (62%) (aqui falo no adequado e também inclui o inadequado que é pior ainda). Ao invés de aterrar e desperdiçar matéria-prima, é melhor utilizar os processos térmicos com valorização de energia.
IHU On-Line - O que seria uma alternativa à incineração, mas também aos lixões?
Ednilson Viana – É só ter como base a hierarquia de resíduos que o mundo todo segue quando quer encontrar o caminho adequado. Antes da incineração, o caminho correto é investir pesado na coleta seletiva. A Alemanha está na política de resíduo zero para aterro sanitário, focando nos processos de reciclagem, que têm como instrumento a coleta seletiva, seja para os resíduos orgânicos, seja para os recicláveis secos. Uma visão criativa do gestor permite encontrar os caminhos corretos para não enviar nada para os métodos de disposição no solo e ainda gerar produtos de valor.
IHU On-Line - Alguns especialistas argumentam que a reciclagem é um processo fundamental na gestão dos resíduos sólidos. Alguns catadores, por sua vez, afirmam que a propaganda é bonita, mas o processo explora os trabalhadores. Como o senhor avalia a discussão teórica acerca da reciclagem e também a prática da reciclagem no país?
Ednilson Viana – Os catadores merecem a nossa atenção e respeito, especialmente para ir profundamente na questão que os envolve, que é uma questão social, de desemprego e falta de alternativa para muitos. Eu considero que pessoas não devem fazer o processo de segregação de recicláveis da forma como é feito em muitos lugares, sem condições adequadas, sem mecanização do processo, sem incentivo pelo seu trabalho. Eles precisam, ao mesmo tempo em que estão nestas atividades, ser qualificados, e não capacitados. Qualificação significa buscar a atividade mestre ou de gosto de cada pessoa. Eles precisam ter cursos que os tornem qualificados para desempenhar esta atividade, porque a atividade mestre de um indivíduo pode não ser a segregação de recicláveis e as pessoas precisam dessa oportunidade.
Como eu já disse na questão anterior, a reciclagem é fundamental para uma gestão saudável dos resíduos sólidos, mas a forma como ela deve ser realizada e por onde passa é que precisa ser discutida. Tanto catadores quanto processos tecnológicos, um não anula o outro. O importante é que eles coexistam no espaço da gestão sustentável dos resíduos sólidos.
IHU On-Line - Na entrevista que nos concedeu em 2015, o senhor disse que a melhora na gestão dos resíduos no país depende de um novo modelo que possa ir além dos consórcios que existem hoje. Cinco anos depois, esse ainda é o ponto fundamental que precisa ser aprimorado, na sua avaliação? Quais são os limites dos consórcios existentes?
Ednilson Viana – O Sinir mostra dados que indicam que o modelo de gestão dos resíduos sólidos em nosso país ainda é individualizado, pois em 2013, tínhamos 639 municípios integrantes de consórcio e esse número foi para 730 em 2017, com aumento muito pouco expressivo, embora positivo. Eu volto a frisar que o grande passo do Brasil para a gestão adequada dos seus resíduos sólidos passa pelo modelo de gestão que ele vai adotar ou seguir. Como temos a grande maioria dos municípios de pequeno porte, com menos de 20.000 habitantes, aplicar os instrumentos da nossa PNRS se torna um fator limitante.
Por outro lado, agrupar-se em consórcio gera diversos desafios e os políticos têm um efeito forte neste processo. Portugal tem sistemas constituídos por mais de 20 municípios, garantindo a implementação de sistemas de coleta seletiva mais eficientes e a adoção de tecnologias que permitem a destinação adequada da maioria dos recicláveis secos. O formato desse agrupamento é muito importante e precisa ser focado como um elemento muito, mas muito importante para a longevidade, ampliação e fortalecimento dos sistemas de gestão de resíduos sólidos no Brasil.
IHU On-Line - Como a não adesão da PNRS em vários municípios e a manutenção de lixões impactam as políticas sanitárias e de saneamento e agravam ainda mais a situação do país em meio à pandemia de covid-19 no país?
Ednilson Viana – O tempo de sobrevivência do vírus na massa de resíduos ainda não é conhecido no ambiente real. Fale-se em 72 horas de sobrevivência, com tempo mais reduzido para o papel. O fato é que mesmo não se conhecendo ao certo esse tempo, é preciso evitar ao máximo a exposição de pessoas ao vírus. Quando um município não segue as diretrizes da PNRS e ainda possui lixão, por exemplo, as pessoas que vivem da coleta de materiais recicláveis nesses lixões podem estar mais expostas. Isso porque os resíduos domiciliares, após contato com uma pessoa infectada, podem então carregar esse vírus (caso ele sobreviva) até o trabalhador que atua sobre a massa de resíduos sem proteção.
Além disso, os resíduos domiciliares ainda contêm uma parcela de resíduos de serviço de saúde devido à inexistência de um sistema eficiente de coleta diferenciada para esse resíduo junto à população. Neste sentido, os lixões se tornam ainda mais perigosos. Além disso, eles não têm cercamento, não têm controle de entrada de pessoas, não têm cobertura com terra na maioria dos casos, sem contar muitos outros itens de proteção do solo e da saúde das pessoas os quais não estão presentes na sua estrutura.
Tudo o que expõe as pessoas ao vírus pode então contribuir para o agravamento da situação em uma localidade, região e assim por diante. Como os rastros da contaminação são muito difusos, não é fácil detectar onde exatamente a pessoa se contaminou, mas é preciso dar segurança máxima à população, evitando-se estruturas como os lixões. Dados reais do tempo de sobrevivência desse vírus na massa de resíduos poderão delinear melhor a influência dele e sua contribuição com a situação local.