Por: Patricia Fachin e Ricardo Machado | 08 Outubro 2018
Desde 1989, isto é, desde o princípio da Nova República o Brasil nunca foi capaz de virar, no segundo turno, uma eleição presidencial. O resultado da votação de domingo, 07-10-2018, coloca os brasileiros diante da escolha entre Jair Bolsonaro, PSL – com 46% dos votos –, e Fernando Haddad, PT – com 29,3% dos votos. O cenário traz à tona a polarização que tem marcado a política brasileira nos últimos anos. Para avaliar os impactos e os significados desta eleição, a IHU On-Line ouviu uma série de especialistas para analisar o primeiro turno de 2018.
O resultado das eleições presidenciais deste ano confirmaram “a preferência do eleitorado pela candidatura Bolsonaro, o que diz muito sobre a mente da sociedade brasileira”, diz Roberto Romano. Segundo ele, a eleição indica que “no mesmo passo em que o Estado nacional não se democratiza, os dirigentes políticos aumentam seus privilégios e legislam em causa própria, a massa sem condições de partilhar do cotidiano administrativo, não ouvida e escorchada com impostos sem retorno, busca um salvador encarnado em indivíduo autoritário que promete tudo mudar. Foi assim com Jânio Quadros, com a ditadura de 1964, Fernando Collor e, em boa parte, com Luis Inácio da Silva”.
Para Clemente Ganz Lúcio, do Dieese, para quem a eleição no segundo turno será um grande desafio diante da “larga vantagem” do candidato do PSL, cabe “iniciar uma etapa fundamental de rearticulação de um campo democrático para um novo arranjo político”. “A esquerda tem demonstrado enorme dificuldade de fazê-lo, o que pode configurar sua derrota! Poderá superar e dar um salto de qualidade. (…) Mas, para isso, será preciso humildade para um diálogo entre iguais e determinação para a luta política conjunta. Serão três semanas de fortes emoções, de um jogo duríssimo”, pondera.
Ivo Lesbaupin, também entrevistado por e-mail, menciona que o resultado do primeiro turno foi marcado por um “antipetismo” que tem sido “difundido a nível nacional no correr dos últimos anos” e pela “candidatura de um político que se apresenta como um candidato antissistema, diferente de ‘tudo o que está aí’, que afirma que vai acabar com a corrupção e com a violência. Com medidas simples: armas para toda a população, facilitação do uso da violência pela polícia”.
Na análise de Rudá Ricci, que concedeu entrevista por telefone, as eleições serviram para revelar um país radicalmente dividido em dois importantes polos eleitorais: centro-sul e nordeste. “O sudeste dando uma guinada muito nítida à direita e em alguns casos para a extrema direita. É o caso, por exemplo, do Rio de Janeiro onde o candidato a deputado estadual mais votado é justamente aquele personagem que quebrou a placa com nome de rua da Marielle”, avalia. “Já no nordeste, a votação é toda à esquerda. O PT faz vários governadores, o PCdoB reelege Flavio Dino, no Maranhão, e temos o PSB elegendo vários governadores”, complementa.
Bruno Cava, em entrevista por e-mail, considera que o principal risco que corremos é que as estruturas estatais passem a ressoar o fascismo social que temos testemunhado. “O desafio de uma mobilização como o #EleNão é mostrar como as preocupações das minorias não se restringem à suposta ‘elite de esquerda’ que organiza os protestos, mas são preocupações de todos, preocupações transversais. Porque, no Brasil, todo mundo é minoria em alguma medida. Nem tanto a luta da minoria, mas a minoria enquanto luta, minoria que devimos, que nos constitui”, coloca.
Adriano Pilatti, que atuou na Assembleia Constituinte de 1988, em entrevista por e-mail, admite um olhar de preocupação com o cenário atual, mas adverte que é preciso arregaçar as mangas. “Será preciso muito esforço, muita coesão, muita paciência, muita disposição de persuadir a parcela de votantes ao centro e à direita para que não cedam, agora ou mais uma vez, à ilusão autoritária e obscurantista. Por isso mesmo é preciso começar imediatamente, sem hesitações”, provoca.
Na avaliação de Acauam Oliveira, “o resultado das eleições apresentou o cenário ideal tanto para petistas quanto bolsonaristas. Grande parte da força de Bolsonaro alimenta-se de um antipetismo radical aliado a um sentimento geral de negação da política tradicional, considerada como espaço da corrupção e da bandalheira. Sua candidatura claramente depende do avanço do PT para se sustentar. O mesmo se passa com o PT, cujas maiores chances de vitória se dão obviamente contra uma candidatura cujo índice de rejeição seja superior ao do próprio partido, sendo Jair Bolsonaro o único que preenche esse requisito”. O cálculo, adverte, “arremessa o país para um clima de assustadora instabilidade, mas é praticamente a única esperança petista, que pode contar novamente com a lógica do ‘nós contra eles e arregimentar grupos de eleitores que já haviam desistido de apoiar o partido”.
Moysés Pinto Neto frisa que o resultado da eleição confirma "o que todo mundo sabia: o país vive uma onda de viralização da ideologia conservadora somada a uma revolta contra o sistema inspirada da crítica à corrupção. O discurso encontrou em Bolsonaro a figura que sintetiza autoritarismo e discurso de renovação".
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Qual sua avaliação do resultado das eleições deste domingo?
Roberto Romano em evento no IHU
Foto: Ricardo Machado | Acervo IHU
Roberto Romano é professor aposentado de Ética e Filosofia na Universidade Estadual de Campinas – Unicamp. Cursou doutorado na École des Hautes Études en Sciences Sociales - EHESS, França. Escreveu, entre outros livros, Igreja contra Estado. Crítica ao populismo católico (São Paulo: Kairós, 1979), Conservadorismo romântico (São Paulo: Ed. Unesp, 1997), Moral e Ciência. A monstruosidade no século XVIII (São Paulo: SENAC, 2002), O desafio do Islã e outros desafios (São Paulo: Perspectiva, 2004) e Os nomes do ódio (São Paulo: Perspectiva, 2009).
Roberto Romano - Foi confirmada a preferência do eleitorado pela candidatura Bolsonaro, o que diz muito sobre a mente da sociedade brasileira. No mesmo passo em que o Estado nacional não se democratiza, os dirigentes políticos aumentam seus privilégios e legislam em causa própria, a massa sem condições de partilhar do cotidiano administrativo, não ouvida e escorchada com impostos sem retorno, busca um Salvador encarnado em indivíduo autoritário que promete tudo mudar. Foi assim com Jânio Quadros, com a ditadura de 1964, Fernando Collor e, em boa parte, com Luis Inácio da Silva. As políticas públicas são ineficientes, a responsabilidade na gestão é quase nula. Somados o desespero dos pobres e a ideologia moralista da classe média, mais a irresponsabilidade das elites, temos o terreno adubado para apelos ao populismo mais brutal.
O resultado é que o país sai das eleições dividido, sem governança possível. O Congresso, seja qual for o presidente eleito, tentará continuar sua chantagem contra o Executivo federal, a Justiça tentará levar adiante a campanha de desmoralização da ordem política, o STF está fraturado como nunca. Assim, todas as instituições estão inaptas para encaminhar soluções racionais para a tremenda crise que se abate sobre a coletividade. Saímos em condições danosas dos embates eleitorais.
Esperemos que tais danos não se ampliem para o embate físico, com uma intervenção militar (prevista na Constituição) tendo em vista manter a ordem interna e a segurança. Conhecemos tal drama desde a instauração do Estado Novo. E nada muda para melhor, nada realmente novo, apenas a velha política oligárquica requentada e adaptada para a era da internet.
Clemente Ganz Lúcio | Foto: Agência Sindical
Clemente Ganz Lúcio é sociólogo, diretor técnico do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos - Dieese e membro do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social - CDES.
Clemente Ganz Lúcio - As eleições revelam que há um claro movimento de radicalização que se afirma nos votos e nas exposições dos eleitores, na qual os candidatos que disputarão o segundo turno têm altas taxas de rejeição. De um lado, um processo que expressa mais de uma década de contínuo, intenso e progressivo ataque ao PT e ao presidente Lula e, de outro lado, a construção de uma candidatura, com fortíssima presença nos últimos três anos nas redes sociais, que agride pessoas, grupos, políticas e direitos e enaltece todas as formas de violência. Metade dos votantes apoiam esses dois movimentos, ou seja, concordam com ambos, o que é gravíssimo para a democracia, para a liberdade.
Os resultados estaduais mostram muitas novidades e mudanças, algumas confirmações e muitas surpresas. Há aqui no sudeste o crescimento para o senado e deputados de candidatos da direita e extrema direita, o que carrega para o legislativo uma visão do neoliberalismo econômico e do neoconservadorismo para os direitos e a política.
Há mudanças na composição partidária no Congresso, inclusive com mais fragmentação, com novos parlamentares, sem que isso represente, necessariamente, uma renovação. Aqui em São Paulo, por exemplo, Eduardo Bolsonaro será eleito como o deputado federal mais votado do Brasil!
O papel dos governadores crescerá em um país cindido, assim como será fundamental o papel do presidente do Senado federal e da Câmara dos Deputados. Está, mais uma vez, evidenciado o movimento de retrocesso econômico – concentração econômica e cultural –, regressão nos direitos e na moral.
De outro lado, há uma outra metade disposta a defender e sustentar os avanços civilizatórios nos direitos e liberdades, bem como a encontrar um caminho de crescimento econômico, desenvolvimento social e sustentabilidade ambiental. O desafio está nas mãos deste campo, de reencontrar a criatividade capaz de mobilizar a sociedade para retomar a marcha civilizatória em uma nova etapa da história.
Ivo Lesbaupin | Foto: Reprodução do Facebook
Ivo Lesbaupin é professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ e membro da ONG Iser Assessoria, do Rio de Janeiro. É doutor em Sociologia pela Université de Toulouse-Le-Mirail, França. Autor e organizador de diversos livros, entre os quais O Desmonte da nação: balanço do governo FHC (1999); O Desmonte da nação em dados (com Adhemar Mineiro, 2002); Uma análise do Governo Lula (2003-2010): de como servir aos ricos sem deixar de atender aos pobres (2010).
Ivo Lesbaupin - Em primeiro lugar, é preciso dizer que estas eleições foram realizadas em condições absolutamente anormais:
a) A presidente eleita no pleito anterior (2014) foi afastada por impeachment em 2016, sem que houvesse “crime de responsabilidade”, como exige a Constituição.
Um dos principais líderes do PSDB reconhece: “O partido (PSDB) cometeu um conjunto de erros memoráveis. O primeiro foi questionar o resultado eleitoral. Começou no dia seguinte (à eleição). (...) O segundo erro foi votar contra princípios básicos nossos, sobretudo na economia, só para ser contra o PT”. [Entrevista de Tasso Jereissati ao jornal O Estado de São Paulo, 13/09/2018].
b) A maior liderança política do país está impossibilitada de concorrer, em virtude de uma condenação injusta – segundo a avaliação de muitos juristas, tanto do Brasil como de outros países. Não há provas concretas que justifiquem sua condenação e prisão. Aparentemente, o único objetivo de sua condenação foi impedi-lo de concorrer. Segundo todas as pesquisas, se fosse candidato, Lula seria eleito.
Estas duas medidas – o afastamento da presidente eleita e a condenação e prisão de Lula – atingem unicamente o PT, como se houvesse a intenção deliberada de ceifar o PT da vida política nacional. A operação Lava Jato cometeu uma série de irregularidades (conduções coercitivas sem intimação prévia, vazamentos seletivos de depoimentos, direcionamento de delações, divulgação para a mídia de conversas gravadas com a presidente da República, divulgação para a mídia em véspera de eleições etc.). E, além disso, foi claramente direcionada para atingir as lideranças e os políticos de um só partido, o PT. Muitos outros políticos, de outros partidos, foram citados e, eventualmente denunciados, mas tiveram um tratamento diferenciado tanto pela força tarefa da operação quanto pela mídia. Alguns destes, com provas concretas de corrupção, continuam atuando na política como se nada tivesse acontecido.
Ricci | Foto: Carolina Lima / Acervo IHU
Rudá Ricci é graduado em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUCSP, mestre em Ciência Política pela Universidade Estadual de Campinas - Unicamp e doutor em Ciências Sociais pela mesma instituição. É diretor geral do Instituto Cultiva, professor do curso de mestrado em Direito e Desenvolvimento Sustentável da Escola Superior Dom Helder Câmara e colunista Político da Band News. É autor de Terra de Ninguém (Ed. Unicamp, 1999), Dicionário da Gestão Democrática (Ed. Autêntica, 2007), Lulismo (Fundação Astrojildo Pereira/Contraponto, 2010), coautor de A Participação em São Paulo (Ed. Unesp, 2004), entre outros.
Rudá Ricci – O resultado das eleições indica, em primeiro lugar, uma divisão ideológica do país, sendo que o centro-sul do país, especialmente o sudeste, deu uma guinada muito nítida à direita e em alguns casos para a extrema direita. É o caso, por exemplo, do Rio de Janeiro, onde o candidato a deputado estadual mais votado é justamente aquele personagem que quebrou a placa com nome de rua da Marielle.
Em São Paulo, a candidata a deputada mais votada foi a Janaína Paschoal, histriônica e muito conhecida que liderou a campanha pelo impeachment da Dilma Rousseff, tendo sido convidada, inclusive, para ser vice do Bolsonaro. Essas são duas marcas emblemáticas do que está acontecendo no Brasil hoje.
Já no nordeste, a votação é toda à esquerda. O PT faz vários governadores, o PCdoB reelege Flavio Dino, no Maranhão, e temos o PSB elegendo vários governadores. Então temos um país dividido em duas porções, nos dois colégios eleitorais mais importantes do Brasil. Temos uma renovação de nomes importantes nos partidos. O PT e o PSDB, este último em especial, sai arrebentado no sudeste, O PT vem logo em seguida, porque já estava muito mal em São Paulo, perde a reeleição de seu governador em Minas Gerais e tem uma situação muito delicada no Rio de Janeiro e no Espírito Santo. É uma situação muito difícil, mas como seu candidato a presidente é de São Paulo, e vai para o segundo turno na disputa com Jair Bolsonaro, ele tem pelo menos esse alento que o PSDB não tem, além da votação expressiva no nordeste. O PSDB tem uma chance de se manter na disputa de segundo turno do governo de São Paulo.
Há uma mudança muito importante ocorrendo e eu destacaria, como emblema, a candidatura em Minas Gerais do empresário Romeu Zema, do Novo, que sai do terceiro lugar a dois dias do pleito, com 21%, e vai para o segundo turno com mais de 40% e uma chance de eleição muito considerável.
Bruno Cava | Foto: João Vitor Santos (IHU)
Bruno Cava é pesquisador associado à rede Universidade Nômade (uninomade.net). Professor de Filosofia, oferece cursos livres em instituições culturais no Rio de Janeiro (Cinemateca do MAM, Casa de Rui Barbosa, Museu da República). É graduado em Engenharia pelo Instituto Tecnológico de Aeronáutica - ITA e em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ, pela qual também é mestre em Filosofia do Direito. Autor de vários livros, em 2018 publicou New Neoliberalism and the Other. Biopower, antropophagy and living money (Lanham: Lexington Books, 2018), com Giuseppe Cocco.
Bruno Cava – Há duas atitudes de avaliação: tentar escutar o rugido da plebe ou tapar os ouvidos com narrativas pré-fabricadas. Explicar Bolsonaro é fácil, difícil é explicar as condições que nos trouxeram aqui e a imensa fatia de eleitores que votou nele. Esta eleição foi vivida por eles como grande despertar democrático e renovação da esperança. Não foram apenas ressentimentos e sentimentos de vingança e ódio: seria muito cômodo fetichizar uma onda bárbara, um "eles" negativo. Digo isso não para relativizar, mas para dimensionar o tamanho do nosso problema.
A mobilização pró-Bolsonaro contém um misto de pragmatismo e ingenuidade e uma diversidade de discursos e motivações de grupos, mas no coração desse movimento transparece a busca por democracia real contra uma cultura política estelionatária, hipócrita, pedante. A sensação coletiva diante da vitória sobre isso é de primavera brasileira, tocando o que ocorreu na greve dos caminhoneiros, nas Jornadas de Junho de 2013, no longo ciclo das primaveras árabes, como o famoso cartaz na praça de Puerta del Sol (Madrid, Espanha), durante o movimento do 15-M: "estávamos adormecidos e despertamos".
Foi também a vitória de uma campanha cujo principal motor de organização ocorreu nas redes sociais, nas ruas, na horizontalização pelo melhor militante que há: o cidadão comum, por fora das grandes máquinas partidárias. Desde Tahrir se discute bastante o problema da organização, do que seria uma organização de novo tipo, e esta eleição produziu um protótipo, na prática, de como funciona e como pode ganhar ímpeto e contagiar milhões em pouco tempo.
Adriano Pilatti | Foto: Luísa Boéssio - IHU
Adriano Pilatti é graduado pela Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, mestre em Ciências Jurídicas pela PUC-Rio e doutor em Ciência Política pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro - Iuperj, com pós-doutorado em Direito Público Romano pela Universidade de Roma I - La Sapienza. Foi assessor parlamentar da Câmara dos Deputados junto à Assembleia Nacional Constituinte de 1988. É autor do livro A Constituinte de 1987-1988 - Progressistas, Conservadores, Ordem Econômica e Regras do Jogo (Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008). Pilatti também traduziu o livro Poder Constituinte - Ensaio sobre as Alternativas da Modernidade, de Antonio Negri (Rio de Janeiro: Editora Lamparina, 2015).
Adriano Pilatti – Triste e preocupante. Um tsunami reacionário e conservador, pois não se restringiu à disputa presidencial, mas também às disputas para o Congresso e para os governos e os legislativos estaduais. Ainda que se consiga uma vitória no segundo turno presidencial, o conjunto das demais instituições representativas terá um perfil hostil às franquias democráticas e às políticas públicas de conteúdo social, econômico e cultural. Se atentarmos, por exemplo, para o perfil da maioria dos governadores que comandarão as forças de segurança estaduais, veremos que o sistema de direitos e garantias constitucionais enfrentará enormes desafios. Tudo isso exige uma rápida e imediata concertação entre as forças democráticas e “progressistas”, no sentido de construir uma ampla frente em defesa do projeto civilizatório consagrado pela Constituição de 1988. Não serão fáceis os dias que estão por vir.
Acauam Oliveira | Foto: Obvious
Acauam Oliveira é graduado em Letras, mestre em Teoria Literária e Literatura Comparada e doutor em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo - USP. É professor da Universidade de Pernambuco - UPE, atuando na graduação em Letras e no mestrado profissional em Letras.
Acauam Oliveira - Pensando exclusivamente em relação às eleições para presidente, o resultado é, de um lado, o mais previsível de todos – pois seus contornos gerais foram se desenhando desde antes do golpe – e o pior dos cenários possíveis para aqueles que acreditam na defesa da democracia e, por isso, torceram para que fossem construídas alternativas fora da polarização petismo\antipetismo.
Em uma eventual (e bastante provável) vitória do Bolsonaro, veremos o triunfo de um candidato de perfil autoritário, claramente incompetente em termos políticos, mas extremamente hábil na manipulação de afetos e desejos, com uma bancada ultraconservadora a lhe dar respaldo e amplo apoio popular. Alia-se a isso uma crise econômica gravíssima que não dá sinais de retroceder, e para a qual o guru Paulo Guedes apresenta ideias esdrúxulas que têm tudo para dar errado. O resultado só pode ser desastroso, que faz temer pela nossa já frágil democracia. Em suma, nosso pior pesadelo parece estar cada dia mais próximo.
Muitos analistas têm apontado que a figura de Bolsonaro não representa um autoritarismo político no estilo clássico, com riscos de intervenção militar e fechamento do congresso – embora eu não descarte essa possibilidade – mas antes um modelo de neoliberalismo sem freios éticos, que concentra seus ataques no campo da moral e dos costumes enquanto favorece os poderosos de sempre. Ou seja, a adoção de um modelo “democrático” não liberal, ao estilo chinês, sem os freios éticos do liberalismo clássico e com forte ênfase na exploração absoluta sem lastros sociais.
Por outro lado, em caso de vitória de Haddad, o clima de instabilidade política deve atingir índices não menos alarmantes. Ao que tudo indica, os bolsominions não pretendem aceitar tranquilamente o resultado democrático das urnas. Notícias sobre fraudes em urnas eletrônicas vêm circulando incessantemente por correntes de WhatsApp, e o próprio Bolsonaro já declarou que não irá aceitar nenhum resultado que não seja a vitória. Enfrentando o peso do antipetismo e das crises internas do partido, um congresso ainda mais conservador que o de Dilma e uma das piores recessões da história recente do país, as chances de agravamento de uma crise institucional são enormes. De um jeito ou de outro, os próximos anos serão desoladores.
Moysés Pinto Neto durante sua palestra no IHU
Foto: Cristina Guerini | IHU
Moysés Pinto Neto é graduado em Ciências Jurídicas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS, mestre em Ciências Criminais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUCRS e doutor em Filosofia nessa mesma instituição. Leciona no Programa de Pós-Graduação em Educação - ULBRA e no curso de Direito da Universidade Luterana do Brasil - ULBRA Canoas. É autor, entre outros, do artigo Identidade de Esquerda ou Pragmatismo Radical?, publicado na edição nº 259 dos Cadernos IHU ideias, e do artigo Esquecer o neoliberalismo: aceleracionismo como terceiro espírito do capitalismo, publicado na edição nº 245 dos Cadernos IHU ideias.
Moysés Pinto Neto - Confirma-se o que todo mundo sabia: o país vive uma onda de viralização da ideologia conservadora somada a uma revolta contra o sistema inspirada da crítica à corrupção. O discurso encontrou em Bolsonaro a figura que sintetiza autoritarismo e discurso de renovação.
Acreditava até que a esquerda iria pior. Felizmente, pelo menos 1/3 foi pra ela. A mesma crise que se passa nos outros países repete-se no Brasil.
IHU On-Line - O que explica o resultado das eleições e qual é o seu significado político?
Roberto Romano - O significado político é claro: retornamos ao populismo mais bruto, acrescido do voto de cabresto praticado por empresários inescrupulosos que nada têm de democratas. O país regride à época do coronel, enxada e voto. Até quando tal status quo será mantido, é uma incógnita que assusta quem pensa com prudência no Brasil.
Clemente Ganz Lúcio - Estamos em um período complicado do processo civilizatório aqui no Brasil e no mundo, seja em termos de avanços econômicos, políticos, sociais e culturais. Os processos engendrados no pós-guerra (anos 50) mobilizaram avanços econômicos, sociais, políticos e culturais, enfrentando a pobreza, ampliando o bem-estar para populações e países, espraiando a democracia e afirmando a liberdade. Essa onda de avanço criou uma reação social restauradora e conservadora apoiada pela reorganização capitalista comandada pelo dinheiro (capital financeiro).
Há uma profunda transformação econômica do sistema produtivo, patrimonial e tecnológico, que afeta a propriedade das empresas, sua lógica produtiva e os empregos, e aprofunda desigualdades. Há forte pressão mobilizada pelo capital e pelos ricos para reduzir o aporte tributário para financiar as políticas públicas. Há demandas crescentes das sociedades para políticas sociais e por liberdade. A equação política não fecha no mundo e nem aqui. A direita e extrema direita crescem com expressão da onda restauradora e conservadora.
No Brasil há um experimento em curso no qual um arranjo institucional e o afastamento da presidenta Dilma engendraram transferências patrimoniais do Estado e de recursos naturais, mudanças institucionais (Lei do teto do gasto, reforma trabalhista etc.) e criou-se um clima para mudança política, promovida, sustentada por um ataque de longo prazo à esquerda, especialmente ao PT.
Aqui, a pobreza, o desemprego e, de maneira dramática, a violência e o tráfico, afetam gravemente a vida das famílias. As liberdades individuais e de identidade criam reações sustentadas pela fé e pela moral conservadora. Tudo configura uma onda restauradora do poder do capital em concentrar riqueza e uma moral neoconservadora e restauradora da família (mando do homem), bem como da arma para combater a violência.
O resultado eleitoral revela a força dessa onda e se materializa em candidatos que afirmam essa visão da sociedade. É o que a sociedade quer – sim, metade da sociedade deseja e espera que os eleitos promovam esse movimento –, muitos sabendo exatamente o resultado que esperam gerar, outros sem sabê-lo exatamente.
O papel das instituições em reprocessar politicamente essas questões será fundamental. Assim como sustentar a democracia e a liberdade, para se promover o debate público, através dos meios de comunicação, da cultura, e dos demais espaços institucionais e educacionais. Resistir nessa dimensão será fundamental!
Ivo Lesbaupin - A campanha judiciário-mediática de quatro anos e meio contra Lula e o PT construiu o antipetismo que marcou o 1º turno destas eleições. Durante este período não saiu uma notícia positiva sobre os governos Lula ou Dilma: a ascensão de 30 milhões de brasileiros que deixaram a miséria, o aumento real do salário mínimo, o Bolsa Família, o papel proativo do Brasil no cenário internacional etc. Até o desastre dos dois anos do governo Temer foram colocados na conta dos governos do PT. As falsas notícias não estiveram apenas nas redes sociais, estiveram também na grande mídia.
De outubro de 2014 para cá cresceu uma onda de ódio em nossa sociedade. Não foi gratuita. Ela foi incentivada pela grande mídia, que quis jogar a opinião pública contra um partido, o PT, e suas principais lideranças, com o objetivo de derrubar a presidente e de afastar Lula e o PT da cena política. Durante quatro anos e meio, a Operação Lava Jato construiu a narrativa da “maior história de corrupção do país”. Passado este tempo, a Operação não acabou com a corrupção e deixou intocados os maiores partidos de direita assim como suas lideranças – desde Temer a Aécio Neves, Romero Jucá, Eliseu Padilha, Moreira Franco. Mas conseguiu a derrubada de Dilma e a condenação e prisão de Lula.
A campanha “A Lei é para todos” se revelou “A Lei é para o PT”, numa atualização do dito “para os amigos tudo, para os inimigos a Lei”. A maioria da opinião pública, embora atingida pela campanha, não se deixou enganar: nas pesquisas de opinião, apesar do massacre mediático incessante, o líder do PT, mesmo preso, enquanto era candidato permaneceu em primeiro lugar. Fora do Brasil, na mídia internacional, o discurso dominante na nossa mídia não passou: a saída de Dilma é vista como uma espécie de golpe parlamentar e a prisão de Lula como uma manobra para afastá-lo das eleições. Desde o New York Times, passando pelo El País até a Comissão de Direitos Humanos da ONU, a situação no Brasil é vista como irregular. E o governo Temer é totalmente desmoralizado. Até o The Economist adverte para o risco que Bolsonaro representa.
Isto explica em boa parte o crescimento do voto útil em Bolsonaro nos últimos dias do primeiro turno. O antipetismo não surgiu do nada, surgiu de uma campanha orquestrada para gerar, em parte da sociedade, a reação que gerou a seu líder e ao partido.
Isto não reduz as críticas que se possa fazer aos governos Lula e sobretudo aos governos Dilma (especialmente, ao segundo governo). Há críticas a serem feitas a estes governos, mas o antipetismo é outra coisa: é a geração de um ódio baseado na exacerbação de falhas ocorridas nestes governos. Isto foi feito usando meios da Justiça e meios de comunicação de massa, em especial a televisão, além das redes sociais, alimentadas por “fake news”.
Não temos no Brasil instrumentos públicos de controle destas falsas notícias. Tal como nos EUA, elas servem aos conservadores, para confundir a opinião pública e gerar um clima de desconfiança face aos meios de comunicação em geral. E a grande mídia tem sido condescendente com a difusão das falsas notícias.
Não contentes com a condenação e prisão de Lula, uma parte do Judiciário e generais querem condicionar o resultado das eleições ao que eles desejam: manifestam-se para dizer ao STF a posição que deve tomar e para definir qual eleito eles aceitam e qual seria inaceitável (para eles). Ou seja, a decisão democrática – do povo – não importa.
Em outras palavras, as eleições, que são uma prática típica da democracia, pela qual o povo escolhe seus governantes e seus representantes, não estão sendo realizadas em condições de liberdade e, sim, em condições de tutela, tanto por parte de alguns juízes, inclusive do STF, como por parte de setores das Forças Armadas, que se pronunciam como se fossem donos do país.
O candidato Jair Bolsonaro sofreu um atentado. Certamente, o clima de ódio difuso presente na conjuntura atual contribuiu para este acontecimento trágico. Mas o crime foi rechaçado por todos os partidos e por todos os candidatos à presidência. Embora o candidato tenha um discurso de intolerância, ninguém defende outra solução para esta postura que não a democracia.
A saída não é mais ódio ou mais violência (“agora é guerra”) e, sim, a superação deste clima. A política se constrói pelo debate de ideias, num clima de liberdade e respeito às diferentes posições existentes. E o rumo é definido, com muito debate, pela maioria. Tomada a decisão, os que perderam naquele momento se reorganizam para influir no decorrer do período e para convencer a maioria na oportunidade seguinte.
Rudá Ricci – Os partidos mais estruturados do Brasil, até então – o MDB, PSDB e o PT –, têm demonstrado dificuldades para atrair os indecisos. Aí os candidatos, especialmente no centro-sul do país, que aparecem como novidade (não exatamente um outsider) vêm atraindo votos. Nós estamos mudando a política brasileira, mudando a estrutura de poder no Brasil, isso é muito importante e teremos que acompanhar como vai ser. Além disso, esse posicionamento do eleitor que vai mudando muito constantemente, desconfiando dos partidos tradicionais e dos políticos conhecidos (talvez a única exceção seja o Lula), exigirá que os analistas e cientistas políticos estudem muito. Inclusive estudar demais o que aconteceu na região sudeste nos dois dias anteriores às eleições. Em um primeiro olhar, é algo muito surpreendente o que ocorreu nessa reviravolta no Executivo e no Legislativo, como no Senado, no caso de Minas e de São Paulo, em que Eduardo Suplicy e Dilma Rousseff, nomes expressivos, ficaram de fora, abrindo lugar para nomes mais desconhecidos e menos tradicionais da política.
Bruno Cava – A bifurcação decisiva foi em Junho de 2013. Parte da esquerda brasileira estava presente naquelas lutas por transporte, educação, saúde e renda, e contra a casta de saqueadores da riqueza pública. Na restauração que se seguiu, a esquerda foi afastando-se ou francamente opondo-se ao espectro de Junho, que ainda rondou a greve dos garis do Rio de Janeiro, as ocupações das escolas secundaristas, as manifestações anticorrupção e a primavera feminista.
Na mesma medida do descolamento das esquerdas, grupos como o MBL, o Vem pra Rua, mas também grupúsculos intervencionistas, vieram ao encontro de Junho. Isso ficou claro durante a greve dos caminhoneiros, que também teve uma dinâmica de transbordamento social. Não que havia um levante puro e selvagem, depois aparelhado pelas forças da direita. É que quem tinha melhores condições, por tradição, de agenciar-se com as pautas junhistas, deixou-se cair no repuxo gravitacional da estratégia da unidade das esquerdas elaborada pelo PT e por Lula. Isso provocou um efeito estilingue intensificado pelo aprofundamento da crise e a Glásnost promovida pela Lava Jato, acumulando uma energia que, agora, vimos ser descarregada. A manobra de lançar Lula como candidato oculto de Haddad e investir na polarização com Bolsonaro apenas esticou ainda mais o elástico.
A pergunta difícil é: por que Bolsonaro se beneficiou dessa liberação de energia? Por que ele? Fala-se em risco do fascismo como se o fascismo não fosse a realidade do Brasil. Uma coisa é falar de fascismo na Europa ou nos EUA, onde a população vive uma democracia social. Outra coisa é falar num país onde a maioria nunca experimentou uma democracia social e tem de suportar arbitrariedades, ameaças, chantagens e discriminações no dia a dia, na normalidade. É essa condição de exceção permanente que constrange a transacionar com instâncias autoritárias tais como milícias, chefões locais, oligarcas, coronéis.
O Brasil é um país ultraviolento. A taxa de homicídios é cinco vezes maior do que a americana e cerca de trinta vezes maior que na Itália ou Espanha. Bolsonaro aparece assim como um justiceiro e oferece proteção militar, pela via da força. Nesse sentido, é um personagem próximo de um Mariel Maryscott (interpretado por Jece Valadão em "Eu matei Lúcio Flávio"), um tropicalizado protetor da sociedade: cafajeste, debochado, meio chanchadesco. Aí há uma contradição gritante: um movimento calcado na democracia indica um personagem não democrático, mas tolera seus arroubos e excessos porque entende ser um mal necessário.
É o mesmo tipo de legitimidade ambígua que um grupo miliciano colhe numa periferia violenta da metrópole brasileira. Ele é o homem forte, de ação, num contexto de falência da confiança das instituições. Sua "ideologia", por assim dizer, é o próprio biopoder: gestão mafiosa dos territórios e dos pobres, que por vezes descamba para linchamentos e esquadrões da morte.
Quando se fala que Bolsonaro é a volta da ditadura, muitos dão de ombros, não porque desprezem a democracia, mas porque as práticas da ditadura nunca deixaram de ser parte integrante do status quo. O discurso do golpe que o PT adotou para se isentar do colapso no período Dilma é arriscado porque, se a pessoa está desamparada, indignada e detesta a ordem existente, você contrapô-la à ditadura pode levá-la a questionar: se isto é a democracia, o que a ditadura tinha de pior?
A ditadura de 1964 se construiu sobre as práticas de biopoder e não o inverso. Carregar as tintas no alerta do fascismo tem um efeito retórico, mas pode tanto lançá-lo num saco de gatos que borra qualquer nuance quanto ofuscar a centralidade do racismo que já opera na normalidade do estado de direito.
Adriano Pilatti – Um fenômeno dessa dimensão tem origem necessariamente multifatorial. Há uma onda reacionária global, que no Brasil avança em direção ao mais tacanho e retrógrado dos extremismos. E o faz “holisticamente”, pois o reacionarismo é político, econômico, social e cultural. Há um antipetismo selvagem que, mesmo alimentado por inegáveis erros cometidos por esse partido, excede qualquer limite razoável de dissenso ou crítica, pois se nutre também do horror aos muitos e grandes acertos dos governos petistas. Há um inconformismo com tudo que seja tolerante e igualitário, cujo sintoma é a pecha de “comunista” pespegada em toda e qualquer posição meramente civilizada. Há um enorme desejo de revanche demofóbica, de “branqueamento” e “higienização” dos ambientes, como dizem seus próprios instigadores. Enfim, o significado é que a construção democrática, que tão sofrida e exaustivamente nós temos levado adiante nas últimas quatro décadas, está em perigo. Perigo real e iminente.
Acauam Oliveira - Em certo sentido, o resultado das eleições apresentou o cenário ideal tanto para petistas quanto bolsonaristas. Grande parte da força de Bolsonaro alimenta-se de um antipetismo radical aliado a um sentimento geral de negação da política tradicional, considerada como espaço da corrupção e da bandalheira. Sua candidatura claramente depende do avanço do PT para se sustentar.
O mesmo se passa com o PT, cujas maiores chances de vitórias se dão obviamente contra uma candidatura cujo índice de rejeição seja superior ao do próprio partido, sendo Jair Bolsonaro o único que preenche esse requisito. O cálculo obviamente arremessa o país para um clima de assustadora instabilidade, mas é praticamente a única esperança petista, que pode contar novamente com a lógica do “nós contra eles” e arregimentar grupos de eleitores que já haviam desistido de apoiar o partido. Bom para o partido, ruim para a estabilidade política e social do país.
O PT é ainda a maior força de centro-esquerda do país, e sua participação nessas eleições seria inescapável para a esquerda, mas o ônus do antipetismo certamente poderia ser minimizado com uma candidatura de terceira via, como a que se propôs Ciro Gomes. O candidato do PSL, entretanto, fracassou em todas as suas estratégias: compor com o PT (que basicamente só aceita “puxadinhos”), formar uma frente de esquerda como alternativa ao lulopetismo (mas não conseguiu o apoio do PSB) e articular com o “centrão”, que preferiu Geraldo Alckmin e agora, ao que tudo indica, Bolsonaro. Ainda assim, não acredito que se possa falar em fracasso na candidatura de Ciro (ao contrário de Marina Silva, que desapareceu por completo ao longo da campanha, ficando atrás inclusive de cabo Daciolo), mostrando que o campo progressista é capaz de construir alternativas fora do eixo de influência direta do PT, o que a meu ver é a principal tarefa da esquerda hoje.
O sucesso de Jair Bolsonaro, por sua vez, bem como a mudança radical na configuração do congresso nacional, demonstra que o povo está em busca de uma candidatura antissistêmica. E, nesse ponto, como disse Vladimir Safatle, a esquerda brasileira fracassou enormemente (diga-se de passagem, o PSOL é um exemplo bem acabado desse fracasso, abdicando de construir uma alternativa antissistêmica e fazendo de Guilherme Boulos uma espécie de cabo eleitoral do PT). Não que Bolsonaro represente uma alternativa de fato: afinal, nada mais velho em política do que permanecer por quase trinta anos no poder empregando todos os filhos e aprovando apenas dois projetos, sem realizar nada de relevante por seu estado. Contudo, a campanha bolsonarista foi amplamente eficaz em transformar sua incompetência em ganho político (ele não aprovou nenhum projeto não por ser incompetente, mas porque a esquerda o perseguia).
Outro elemento responsável pelo sucesso de sua candidatura é a sua capacidade de forjar um tipo de discurso feito sob medida para apavorar o campo progressista. Racismo, machismo, elogios à ditadura são mobilizados mais pelo efeito que causam do que pelos conteúdos. É por isso que considero insuficientes tanto as análises que apontam para os gérmens fascistas presentes em sua candidatura (por não explicitar alguns aspectos locais decisivos em sua configuração) quanto as que focam exclusivamente em nossa violenta tradição antiliberal, de matriz colonial. Afinal, se é certo que o país é extremamente violento em todos os níveis, desde a sua colonização, isso não explica certa mudança fundamental mais recente no padrão de relacionamento com esses impulsos violentos, assumidos de forma explícita na candidatura de Bolsonaro. Por que assumir um discurso de ódio tão direto e pouco mediado se a violência sempre pode ser cometida sem maiores consequências? Por que não continuar cometendo os mesmos crimes enquanto se finge que nada aconteceu, como é o padrão da violência brasileira? Se é possível assassinar negros impunemente enquanto se afirma que o racismo não existe, por que mudar o tom para um muito mais comprometedor “sou racista sim, e daí”?
Particularmente, não acredito que o país tenha se tornado mais violento para com as minorias – os índices de violência e assassinato contra mulheres, negros e LGBTS não pararam de avançar com os governos petistas – e que por isso os discursos se tornaram mais raivosos (o que não significa que esse aumento de violência simbólica não se converta em um acréscimo real de barbárie). Ao contrário, acredito que o movimento de assumir a barbárie como um dado positivo faça parte de um sentimento de insatisfação global com governos que usam discursos progressistas enquanto adotam medidas amplamente impopulares para salvar bancos e beneficiar as elites. Ou seja, o que se ampliou foi a percepção de que os discursos politicamente corretos de proteção social são formas de marcar uma posição de superioridade ética da esquerda que funcionam como um mecanismo de blindagem contra críticas, na medida em que atacar a esquerda é também atacar as minorias que ela “beneficia” e “protege”. Quando as classes populares deixam de se reconhecer no discurso que é mobilizado em seu nome, o “nós contra eles” petista passa a girar no vazio, e a revolta contra a impostura torna-se um movimento natural. Daí que os discursos em defesa das minorias passem a ser considerados como estratégia de manipulação dos grupos hegemônicos, e tratados como mais um inimigo a se combater. Ser politicamente incorreto se torna sinal de rebeldia antissistêmica, ainda que não exista nada mais pró-sistema do que agredir minorias.
Em suma, a única resposta que a esquerda ofereceu aos eleitores que ansiavam por opções antissistemas foi... Lula. Acostumada\colada\barrada pelo governismo, a esquerda mostrou-se incapaz de apresentar alternativas reais. Muito pelo contrário, o PT criminalizou as manifestações de Junho, culminando na lei antiterrorismo da Dilma, e a esquerda adquiriu uma curiosa fobia às ruas ao perceber que não estava só e que havia perdido sua capacidade de liderança, refugiando-se cada vez mais no interior dos jogos políticos desvinculados das bases sociais. Desde então, as principais movimentações políticas do país têm sido vencidas pela direita: o golpe\impeachment, a greve dos caminhoneiros, a prisão de Lula, e o risco de eleição de um dos maiores aventureiros oportunistas e autoritários que já se candidataram a presidência do país.
Se existe algum consolo possível para o interior desse conjunto espetacular de derrotas, digamos que seja algo puramente reativo e rancoroso: a direita, com a faca e o queijo na mão, só consegue apresentar opções profundamente equivocadas, incapaz de oferecer um projeto minimamente decente de país – talvez porque nunca tenha sido este o seu desejo. Tomar o sistema de assalto para então apresentar Michel Temer e Jair Bolsonaro é de um grau de incompetência impressionante. Ou então, seu horizonte de pensamento, pretensamente “esclarecido”, mas no fundo apenas mesquinho, seja mesmo a barbárie.
Moysés Pinto Neto - A incapacidade de o sistema encontrar válvulas de escape para sua renovação desde 2013 encontra-se com as guerrilhas cibernéticas da extrema direita. O Brasil conecta-se com o resto do mundo no horizonte da pós-verdade e na necropolítica.
O significado político é ainda enigmático, mas pode dizer duas coisas: que o fim de algo está chegando – e esse algo é a Nova República – e quem não souber se renovar vai perecer. Apesar disso, quem soube aproveitar essa nova tendência são, paradoxalmente, os velhos atores do Brasil mais reacionário.
IHU On-Line - Como deve se dar a disputa eleitoral no segundo turno?
Roberto Romano - Ela será desigual. A extrema direita adquiriu musculatura inédita no país. A esquerda não está coesa, sobretudo depois dos eventos que envolveram Ciro Gomes e a direção do PT. A probabilidade é grande do candidato reacionário sair vencedor das eleições. Uma era de incertezas se anuncia, desde já, não apenas a partir do segundo turno.
Clemente Ganz Lúcio - É uma nova eleição, sendo que Bolsonaro parte de uma larga vantagem – nos votos, na presença nas redes sociais e no posicionamento forte do neoconservadorismo. Será um desafio enorme iniciar uma etapa fundamental de rearticulação de um campo democrático para um novo arranjo político. A esquerda tem demonstrado enorme dificuldade de fazê-lo, o que pode configurar sua derrota! Poderá superar e dar um salto de qualidade, constituindo um campo de articulação para lastrear uma nova base social de luta por avanços econômicos, sociais, políticos e culturais. Mas, para isso, será preciso humildade para um diálogo entre iguais e determinação para a luta política conjunta. Serão três semanas de fortes emoções, de um jogo duríssimo.
Espero que se possa colocar em debate o futuro do país, com uma alternativa clara para o desenvolvimento, que ilumine uma utopia que encante as pessoas pela sua clareza, pela resposta direta às questões que preocupam as pessoas (desemprego, violência, tráfico, pobreza, crescimento econômico etc.) e pelo compromisso de trabalhar e lutar para materializá-la.
Ivo Lesbaupin - Temos de levar em conta estes fatores:
1) a existência de um antipetismo difundido a nível nacional no correr dos últimos anos;
2) a candidatura de um político que se apresenta como um candidato antissistema, diferente de “tudo o que está aí”, que afirma que vai acabar com a corrupção e com a violência. Com medidas simples: armas para toda a população, facilitação do uso da violência pela polícia.
Este candidato já disse frases muito fortes em sua vida política e durante a campanha eleitoral, discriminatórias com relação às mulheres, aos/às homossexuais, aos negros. Tudo lhe foi perdoado pelos órgãos de justiça, até o presente momento. Seus eleitores são pessoas conservadoras, de um lado, alguns dos quais desejam a volta da ditadura militar, mas também pessoas que apenas querem acabar com a corrupção no país, acabar com o caos em que nos encontramos.
A facilidade com que este candidato fala positivamente da ditadura militar tem a ver com o desconhecimento da história dos vinte e um anos deste regime por parte da maioria da população: muitos imaginam a ditadura como um período em que houve ordem e progresso, em que não havia violência nas ruas. A supressão da liberdade, a opressão daqueles anos, as prisões, as torturas, é fato desconhecido para muitos. Provavelmente, este candidato vai continuar tomando as posições que tomou até hoje e vai procurar alimentar o antipetismo para derrotar o outro candidato, que é do PT. Por sua vez, Fernando Haddad terá de conseguir galvanizar o apoio dos candidatos que perderam a eleição, o que implicará em muito diálogo e abertura para incorporar preocupações que não são do PT.
O segundo turno colocará em disputa o campo democrático e o campo que flerta com a ditadura, o campo da defesa das liberdades e dos direitos humanos e o campo que aposta na violência e na intolerância. Será preciso abrir a consciência dos eleitores do outro candidato para os riscos que ele traz para o país e para os direitos dos trabalhadores, das mulheres, da população LGBTI, dos negros.
Rudá Ricci – Bolsonaro sai com uma vantagem expressiva, ele é o favorito e o PT só terá competitividade se trabalhar em dois polos, em especial:
1) atraindo o eleitor do Ciro, que se mostrou muito fiel, do começo ao fim em torno de 10% a 12%, terminando a eleição com pouco mais de 12% e, somado aos aproximadamente 28% do Haddad, ele empata com Bolsonaro; e
2) O PT precisa investir na Igreja Católica, porque o Bolsonaro no final da campanha encostou nos evangélicos e essa disputa da religiosidade cristã no Brasil pode dar dividendos. Se a Igreja Católica entrar com força na eleição para evitar que a Igreja Evangélica tenha mais poder político que vem alcançando, as coisas podem ser mais equilibradas. Essa é a possibilidade que eu vislumbro no segundo turno.
Bruno Cava – O pior possível. Quanto mais o PT se colocar como opção democrática ao Bolsonaro, mais é retroalimentado o transbordamento. A associação da volta do PT à volta da proteção social bateu no limite, esboroando o alinhamento eleitoral de pelo menos doze anos, que André Singer chama de lulismo. Parte do dito antipetismo que cristalizou em Bolsonaro é antissistema, o que é reforçado quando o PT se apresenta como opção civilizada de acordo para recompor o sistema, é lido como vocalizando aquela frase célebre do Jucá: "salva o Lula, salva todo mundo". A associação predominante, e com certo direito, é aos anos Dilma, à quebra do país, aos escândalos de corrupção e à inigualável prepotência das lideranças petistas, que parecem tratar o eleitorado e mesmo os apoiadores como massa de manobra.
Uma liderança como Marina Silva ou Ciro Gomes teriam melhores condições de desativar os mecanismos infernais desse círculo vicioso, inclusive usando o terreno das reformas para propor um novo sistema de proteção social, um 'commonfare'. Se Bolsonaro apresentar uma inteligência política até agora apenas esboçada, irá propor um grande pacto, fazer a sua "Carta aos Brasileiros", e começar a costurar o mercado e o empresariado, o que abrirá novas contradições. Mas isto não está dado.
Do ponto de vista das lutas, não podemos ficar contando com o desenrolar do segundo turno nem com promessas de guinadas e moderação. É preciso continuar repercorrendo a bifurcação junhista, que é um incandescente, e continuar produzindo linhas de fuga para a conjuntura. Não um movimento novo ou de novo tipo: Junho é o novo dos movimentos, o 'spin'.
Se existe o risco de fascismo, é porque a tomada do aparelho estatal pode pôr para ressoar o fascismo social que já é a nossa normalidade, numa rede de vasos comunicantes de microfascismos. Aí o transbordamento pode se voltar contra as minorias e provocar na bifurcação decisiva uma terrível aurora. O desafio de uma mobilização como o #EleNão é mostrar como as preocupações das minorias não se restringem à suposta "elite de esquerda" que organiza os protestos, mas são preocupações de todos, preocupações transversais. Porque, no Brasil, todo mundo é minoria em alguma medida. Nem tanto a luta da minoria, mas a minoria enquanto luta, minoria que devimos, que nos constitui. Uma linha fascista significaria uma linha de autoabolição, uma máquina suicidária. Então seguir agindo, pensando, criando brechas, para além da polarização eleitoral, é o único antídoto para não ficar refém dos acontecimentos.
Adriano Pilatti – Muito difícil, seja na esfera presidencial, seja em vários cenários estaduais. Desde 1989, todos os candidatos a presidente que terminaram o primeiro turno em primeiro lugar venceram o segundo turno. E o impulso que a candidatura presidencial reacionária recebeu nesta primeira etapa não autoriza a apostar que essa “escrita” será facilmente quebrada. Será preciso muito esforço, muita coesão, muita paciência, muita disposição de persuadir a parcela de votantes ao centro e à direita para que não cedam, agora ou mais uma vez, à ilusão autoritária e obscurantista. Por isso mesmo é preciso começar imediatamente, sem hesitações.
Acauam Oliveira - Acredito não haver grandes motivos para se imaginar que algo diferente do pior dos cenários irá se revelar a partir de agora. Dificilmente o candidato petista leva a fatura, pois vai ter que conquistar muitos mais votos com uma campanha muito mais complicada em termos estratégicos (qual é o limite da identificação de Lula com Haddad?), enquanto Bolsonaro tem apenas de lutar para manter os seus votos, além de herdar a maioria dos candidatos nanicos e dos indecisos antipetistas. É claro, o segundo turno são novas eleições e entramos em uma nova fase, com Bolsonaro tendo de se expor mais na televisão, em confrontos mais diretos etc. Nem sempre eventos imponderáveis irão livrar o candidato da exposição, e este é sem dúvidas um dos pontos frágeis de sua equipe – tanto Mourão quanto Paulo Guedes foram cobrados por Bolsonaro a serem mais moderados em suas colocações. Note-se bem o que acabei de escrever: Jair Bolsonaro pediu moderação a sua equipe. Por aí se percebe os riscos que corremos caso essa candidatura venha a comprovar sua vitória.
Entretanto, o ônus do antipetismo pesará muito sobre Haddad, e a campanha do candidato do PSL tem se mostrado muito eficiente em termos estratégicos, concentrando-se nos alvos certos. É preciso ter sempre em mente que Bolsonaro conseguiu vencer peixes muito grandes como outsider até se apresentar como uma alternativa viável para setores mais amplos do poder (parte da grande mídia, setores políticos tradicionais que não o apoiaram etc.) que agora se mostram mais diretamente interessados em sua candidatura. Em particular, alguns setores liberais que tendem a se apresentar enquanto alternativa esclarecida antibarbárie, mas que não perdem a oportunidade de adotar posturas autoritárias.
Será também uma guerra de narrativas, das mais sujas possíveis. O campo petista, fortalecido após o resultado favorável, deverá seguir se apresentando enquanto bastião da democracia e das minorias contra o fascismo. Ladainha bem manjada, mas que adquiriu um lastro bastante real com o risco Bolsonaro. O lado bolsonarista, por sua vez, deve continuar o jogo sujo que domina bem, armado de fake news e fazendo das redes sociais o seu principal front de batalha. Aliás, o ataque a instituições tradicionais de estabelecimento do debate público (como escolas, universidades e a chamada grande mídia), que inicialmente parecia uma espécie de retorno a um moralismo caricato digno de zombaria, revelou ser uma bem elaborada estratégia de batalha. O apelo a valores “arcaicos”, aparentemente ultrapassados pelo liberalismo esclarecido de esquerda, mostraram ser o caminho ideal para capturar a hegemonia no interior das mais modernas tecnologias de comunicação (que iriam se mostrar decisivas no processo eleitoral), aproveitando-se do hiato entre os valores liberais – restritos aos setores esclarecidos – e a maioria da população com acesso cada vez maior às redes sociais.
Nesse ponto a extrema direita, aproveitando-se das lições conservadoras da direita norte-americana e europeia, deu um verdadeiro baile na esquerda progressista. Esta, julgando-se mais avançada em termos de costumes, avaliava como retrocesso passadista e caricato o que na verdade era resultado de um diagnóstico bem fincado no presente, e que parte da percepção de que 1) os valores liberais progressistas não foram incorporados à sociedade, haja vista que o Brasil ainda é dos países com maiores índices de violência contra negros, mulheres, LGBTs etc., e 2) a democratização do acesso às redes sociais estabelece um canal de comunicação direta com a imensa maioria da população que possui valores conservadores. O que parecia “regressivo” e atrasado de uma perspectiva progressista, portanto, era na verdade a forma que a direita encontrou para estar um passo à frente na disputa pela hegemonia. O resultado, curioso a seu modo, é uma esquerda defensora de instituições tradicionais em nome de valores progressistas, e uma direita conservadora perfeitamente alinhada à linguagem moderníssima das redes sociais.
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Eleições 2018. A radicalização da polarização política no Brasil. Algumas análises. Entrevistas especiais - Instituto Humanitas Unisinos - IHU