Por: Patricia Fachin | 05 Setembro 2018
Uma questão particular a ser analisada no debate eleitoral e após a eleição presidencial é como se dará a governabilidade a partir de 2019, adverte o economista Guilherme Delgado à IHU On-Line, na entrevista a seguir, concedida por telefone. Segundo ele, diante da fragmentação das campanhas neste ano, “a governabilidade, na perspectiva de dar soluções estruturais aos problemas legados por uma crise profunda de quatro anos, é um assunto que tem sido mal discutido nos debates até aqui”. Com “raras exceções”, afirma, “a eleição aparece como sendo uma solução normal para uma disputa política — e não é assim. (...) Uma eleição solteira, como uma eleição geral para presidente, para o Congresso etc., não é a solução para o problema institucional crítico e para a governabilidade subsequente, embora seja o prenúncio de que se possa, a partir dela, dar sequência a um conjunto de outras consultas populares que resolvam os impasses do chamado presidencialismo de coalizão”.
Para começar a resolver as crises política, econômica e social que se estendem pelo país nos últimos anos e superar o presidencialismo de coalizão que é baseado na “troca de patrimônio público por governabilidade”, Delgado sugere que o próximo governo adote recursos que permitam um misto de democracia direta e democracia representativa. Nessa linha, propõe, “o governo teria que fazer consultas populares diretas que não dependessem de maiorias caras, como são essas maiorias geradas pelo presidencialismo de coalizão. Para tanto, o recurso a plebiscito e referendo teria que ser muito mais frequente no próximo mandato presidencial”. Esse recurso constitucional, constata, raramente foi usado nos últimos 30 anos. “Ficamos apenas usando a democracia representativa e os instrumentos do presidencialismo de coalizão e praticamente esquecemos a democracia direta. Está na hora de repensar isso para se pensar uma legitimidade para sair das crises econômica, política, social e moral”, resume.
Na entrevista a seguir, Delgado também comenta em linhas gerais as propostas dos candidatos à presidência e diz que três projetos estão disputando o imaginário popular nesta eleição: o Estado Social, o Estado Mínimo e o Estado de Direito Penal.
Guilherme Delgado | Foto: Youtube
Guilherme Delgado é doutor em Economia pela Universidade Estadual de Campinas – Unicamp. Trabalhou durante 31 anos no Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – Ipea.
Confira a entrevista.
IHU On-Line — Que avaliação geral faz da conjuntura eleitoral, especialmente em relação ao debate presidencial? Alguma questão particular tem chamado sua atenção no debate eleitoral deste ano?
Guilherme Delgado — Uma questão em particular é a da governabilidade pós-eleições. Nos debates, com raras exceções, a eleição aparece como sendo uma solução normal para uma disputa política — e não é assim. Não é uma situação normal; é uma situação excepcional. Portanto, uma eleição solteira, como uma eleição geral para presidente, para o Congresso etc., não é a solução para o problema institucional crítico e para a governabilidade subsequente, embora seja o prenúncio de que se possa, a partir dela, dar sequência a um conjunto de outras consultas populares que resolvam os impasses — impasses do chamado presidencialismo de coalizão —, boa parte dos quais são responsáveis pela crise institucional, que é política, econômica e social.
IHU On-Line — A governabilidade será mais difícil no próximo governo? É isso que a fragmentação do cenário eleitoral demonstra?
Guilherme Delgado — Exatamente. A governabilidade do presidencialismo de coalizão, que é o que nós temos hoje, é altamente desgastante para as instituições políticas, porque as tratativas se dão no período eleitoral. Em geral, é cedido espaço do Estado aos partidos ou coligações de partidos para obter maiorias eventuais. E quanto mais difícil é a demanda política, maior é o preço que essas maiorias cobram em termos não apenas de empresas estatais, diretorias, mas também de recursos fiscais do Refis, dos processos de privatização, que também estão envolvidos. Ou seja, há uma troca de patrimônio público por governabilidade e essa é a raiz da crise institucional de deslegitimação da ética pública. Portanto, apostar que o presidencialismo de coalizão contenha na governabilidade a base de formação da maioria dentro desses círculos, é prorrogar a crise por longa data; por isso estou chamando a atenção acerca desse fato. Não é por aí: governabilidade precisa haver, mas dentro de um outro quadro, respondendo a vários impactos que foram gerados por esse modelo e que ainda estão gerando a crise que estamos vivendo.
IHU On-Line — Como a governabilidade poderia ser discutida neste momento de eleições, com outros formatos? O que o senhor sugere?
Guilherme Delgado — Essa é uma situação crítica e para ela precisamos de alternativas não convencionais — o que não significa anormais, mas que é preciso resolver em partes. Por exemplo, em partes temos uma PEC do Teto que está aí com uma validade de 20 anos. Como vamos resolver isso com maioria de 3/5 na Câmara e no Senado? O preço é muito alto. Além disso, temos uma legislação trabalhista, provavelmente toda ela inconstitucional, que está em vigor, mas sobre a qual os poderes do judiciário não se manifestam. Também temos uma regulação financeira absolutamente anormal em termos de comparação internacional, porque ela torna os ilícitos financeiros secretos e apenas objeto de negociação administrativa no Banco Central e na Comissão de Valores. E o país também enfrenta uma crise de desemprego aberto da maior gravidade.
Nesse cenário, um governo legítimo, que traga programa para sair da crise, precisa construir uma governabilidade legítima. Portanto, provavelmente, para resolver várias dessas situações que citei, o governo teria que fazer consultas populares diretas que não dependessem de maiorias caras, como são essas maiorias geradas pelo presidencialismo de coalizão. Para tanto, o recurso a plebiscito e referendo teria que ser muito mais frequente no próximo mandato presidencial. Esse é um recurso de democracia direta, que é totalmente constitucional e que raramente foi usado nos últimos 30 anos. Ficamos apenas usando a democracia representativa e os instrumentos do presidencialismo de coalizão e praticamente esquecemos a democracia direta. Está na hora de repensar isso para se pensar uma legitimidade para sair das crises econômica, política, social e moral.
Para implantar esse modelo de democracia direta, o governo a ser eleito precisa antecipar essas questões na própria campanha. Se houver impasses — e todos nós sabemos que impasses são esses — o futuro presidente vai solicitar uma votação do Congresso, mas se ele anuncia antes das eleições que adotará a democracia direta via plebiscito, ele ganha legitimidade, e a população se pronuncia em relação a, por exemplo, se quer continuar com a PEC do Teto do jeito que está, se quer a Reforma Trabalhista do jeito que está etc. Enfim, vários plebiscitos poderiam dar legitimidade para uma nova governabilidade.
Evidentemente que aqueles setores que apoiam a permanência do legado instituído pelo governo Temer, mesmo setores que não querem colocar essa questão em aberto, ficam em um jogo muito fechado. Por exemplo, na semana passada o comandante do Exército fez um pronunciamento dizendo que combater a segurança pública só com ações armadas não é possível, porque a falta de ações em segurança, educação, saúde e infraestrutura não permite que se resolvam os problemas de segurança pública. É perfeita e lúcida a observação dele, mas isso vale também para quem aposta na segurança pública como pedra angular, pois para resolver os problemas de segurança pública é preciso recursos, os quais estão proibidos pela PEC do Teto.
Qualquer que seja a visão de governabilidade, não dá para manter o receituário criado pelo governo Temer, que é totalmente ilegítimo e aprofunda a crise.
IHU On-Line — Algum candidato sinaliza em seu discurso que governaria em direção a esse modelo de governabilidade via plebiscito, como o senhor sugere?
Guilherme Delgado — Provavelmente sim. O candidato do PT, Fernando Haddad, já sinalizou isso. Segundo seu programa de governo, todas essas questões que tratamos, como a PEC do Teto e a Reforma Trabalhista, devem ser mudadas. E não se muda isso sem pagar um preço caro. A questão é como essa proposta vai ser colocada na campanha. Eles ficam se furtando, mas não deveriam, porque comprometeriam o próprio Congresso e o Executivo eleito com essa proposta, afinal, democracia direta e democracia representativa não são inimigas.
Em relação aos candidatos, o candidato do PSOL, Guilherme Boulos, falou sobre essa proposta na entrevista que concedeu à CartaCapital. Já Ciro Gomes acredita que resolve tudo com um “acordão” no Congresso nos seis primeiros meses. Ele não chegou a mencionar esse instrumento da democracia direta, mas promete até mais: promete revogar boa parte do entulho autoritário e anticonstitucional do governo Temer, mas para isso precisa ter maioria — e essa maioria é cara. Os candidatos que estão “colados” nas agendas econômica e social do governo Temer, que é o caso de [Henrique] Meirelles e, aparentemente, do candidato do PSDB [Geraldo Alckmin], não trataram dessa questão.
IHU On-Line — Considerando um novo governo em 2019, quais são as perspectivas e possibilidades de se rediscutir a reforma trabalhista e a EC 95 a partir do ano que vem, considerando o que já é sinalizado no debate eleitoral pelos candidatos?
Guilherme Delgado — Se considerarmos o arco da “centro-esquerda”, que vai da candidatura de Ciro Gomes, Lula-Haddad, a Rede Sustentabilidade, o PSOL e o PSB, todos esses partidos acenam com essas revisões; o que muda é o grau de profundidade da revisão. O país é ingovernável com a PEC do Teto, mas tem alguns aditivos nessa discussão: uma vez retirada a PEC do Teto, é preciso fazer a reforma tributária progressiva, mexer na Previdência Social para garantir a sua sustentabilidade. Enfim, há uma agenda complementar para sair da crise, que não é singela do ponto de vista de atos legislativos necessários.
Nesse campo da centro-esquerda todos estão cientes de que precisam fazer alguma coisa. O fato de os candidatos estarem discutindo outras coisas faz parte desse jogo de cena, de tratar a eleição como um marketing político-eleitoral. Mas para ter governabilidade para tirar o país da crise, não tem como não mexer nesses temas. O candidato Ciro Gomes diz que vai mudar a Reforma Trabalhista do governo Temer e fazer uma outra reforma; o candidato do PT vai mais na linha do respeito à CLT vigente etc.; o candidato da extrema direita não fala nada, para ele o mercado autossuficiente resolve tudo — não para ele, mas para seu mentor, que é o Paulo Guedes. Mesmo esse candidato, que coloca a Segurança Pública e o Código Penal como centrais na atuação do Estado, não faz isso sem recurso. Mas do ponto de vista ideológico, esse candidato é umbilicalmente ligado a um discurso de neoliberalismo puro. Não creio que venhamos a cair nesse extremo. O segundo turno provavelmente se dará entre um candidato de centro-esquerda e Bolsonaro, mas não vejo que a extrema direita possa ganhar as eleições por voto majoritário.
Estou raciocinando dentro do arco constitucional, que é aquela ideia de que temos um conjunto de partidos dentro do arco constitucional, nos quais espero que em algum momento o próprio PSDB venha a se incluir também, pois ainda não se incluiu. Então, dentro do arco constitucional e de uma governabilidade, mantendo o Estado Democrático de Direito, não tem como não se fazer um plano B, diferente de um plano A convencional, que é o presidencialismo de coalizão.
IHU On-Line — Então o senhor apostaria na manutenção do presidencialismo de coalizão, mesmo se o próximo governo adotar uma governabilidade via plebiscitos?
Guilherme Delgado — A democracia direta não pressupõe a substituição da democracia representativa, ela é uma espécie de “forma democrática” para curar tudo isso. Imagino que um governo que pratique democracia direta com uma certa frequência para resolver impasses, deva também praticar algum tipo de reforma política radical, que é o que sanaria os vícios congênitos do sistema partidário brasileiro e das suas formas de governança. Mas esses já são desdobramentos que não temos como prever. A própria ideia de uma nova constituinte exclusiva que reescrevesse toda a ordem política não está descartada. A questão é que temos uma trajetória de curso imediato, a partir de 1º de janeiro de 2019, e nesse curso alguns problemas cruciais — como os que mencionei da PEC do Teto e da Reforma Trabalhista — precisam estar na agenda, assim como um programa mínimo para resolver o desemprego aberto. Nesse sentido, é preciso fazer uma reforma política, fiscal, financeira, trabalhista etc. para colocar o país nos trilhos, já que o triênio maligno de Michel Temer — em parte de Dilma também — não resolveu nada, só aprofundou os problemas.
IHU On-Line — O senhor fala da possibilidade de revogar a EC 95 e as reformas feitas no governo Temer. Como isso seria possível? Ainda nesse sentido, o que deveria ser feito primeiro num novo governo: a revogação da EC 95 ou novas reformas, como a tributária, para garantir mais receitas ao Estado, ou as duas coisas em conjunto?
Guilherme Delgado — Do ponto de vista jurídico-formal eu não sei, porque não sou jurista. Mas uma consulta popular sobre o tema daria força expressiva para que, até do ponto de vista formal, o governo mandasse uma Emenda Constitucional revogando a PEC do Teto. A forma é discutível porque não existe na prescrição constitucional referendo sobre Emenda Constitucional no sentido de revogá-la, mas é possível consultar o Congresso e, nessa consulta, cacifar a manifestação do Congresso na linha do que é preciso ser feito. Ou seja, é uma empreitada que requer certa criatividade. Hoje existem 106 Emendas Constitucionais em vigor, muitas delas contraditando textos pretéritos da Constituição de forma radical. Alguma coisa precisa ser feita, pois estamos em uma situação de anomia em que os próprios Poderes da República, que tratam do resguardo da constitucionalidade, estão inertes. Alguns processos de negociação e correção dessa anomia normativa precisam ser feitos no sentido de uma reforma política ou de uma nova constituinte, mas isso é um assunto que não pode esperar ações imediatas que deem conta da solução de desequilíbrios abruptos criados de forma atabalhoada e açodada no governo Temer, por um Congresso totalmente omisso de responsabilidade política e democrática.
IHU On-Line — A partir dos discursos dos candidatos até o momento, já é possível delinear quais são as linhas gerais dos programas econômicos dos principais candidatos, Alckmin, Bolsonaro, Haddad, Marina e Ciro? O senhor mencionou anteriormente que os programas à esquerda são muito parecidos, mas o que é distintivo em cada um deles?
Guilherme Delgado — No campo da centro-esquerda — com exceção da Rede, porque seus assessores econômicos são muito ligados ao campo neoliberal —, até onde tenho visto em entrevistas e conversas de economistas e partidos, nenhum tem sustentado manter a Emenda Constitucional 95. Todos asseguram que para poder fazer política macroeconômica e tirar o país da crise é preciso, sim, equilíbrio fiscal, mas é preciso garantir o equilíbrio fiscal de outra forma que não essa de congelar absurdamente a ação do Estado no sentido de provisão de bens públicos, enriquecendo as finanças. Esse discurso de manter a EC 95 é o discurso do Meirelles e ele já mostrou, independente de teoria econômica A ou B, que isso não funciona; não funciona na segurança, na saúde, na educação. Apenas os fundamentalistas de mercado, que estão na orientação do PSDB e da extrema direita, evitam essa discussão, mas isso não é o caso dos grupos do Ciro Gomes, do PT, do PSOL. Acredito que a própria Marina Silva não concorda com seus economistas, mas ela não vai substituí-los.
O grande problema é que nos programas televisivos essas questões mais complexas não são colocadas ou os tempos de resposta dos candidatos são tão curtos que eles evitam essas questões e ninguém cobra isso deles. Parece que tudo está pronto, que se ganhar fulano ou beltrano, ele magicamente resolverá os problemas, mas não diz como. A governabilidade, na perspectiva de dar soluções estruturais aos problemas legados por uma crise profunda de quatro anos, é um assunto que tem sido mal discutido nos debates até aqui.
IHU On-Line — Como avalia a estratégia do PT de insistir na candidatura do ex-presidente Lula?
Guilherme Delgado — Houve um fato novo nesses últimos dez dias que foi a decisão do Conselho de Direitos Humanos da ONU sobre o direito de Lula concorrer às eleições. Em face a esse fato novo e tendo sido feito o registro da candidatura “protocolar”, não tendo havido um pronunciamento judiciário e do TSE [1], acredito que faz todo o sentido manter a candidatura. O fato novo criou um constrangimento no Judiciário, até porque o ministro encarregado de relatar o processo tem obras publicadas sobre a relação jurídica dos órgãos internacionais de direitos humanos e o Brasil.
Nesse momento, do ponto de vista de práxis jurídica, a candidatura está bem, está até crescendo em termos de sondagens eleitorais. Quem tem um problema na mão a esta altura não é o PT, mas o Judiciário, que se meteu numa tratativa absolutamente incongruente ao aceitar que um juiz de primeiro grau, notoriamente partidarizado, juntamente com um Tribunal de segunda instância, produzissem o fato judiciário da prisão do ex-presidente.
A candidatura do PT, seja com Lula ou Haddad, se inclui nesse arco de centro-esquerda, e dentro dela — a não ser que haja muita fragmentação — a tendência é haver uma convergência para uma posição majoritária do PT, de forma a se ter um segundo turno com um candidato do PT versus Bolsonaro. Estamos vendo um movimento de crescimento das intenções de voto em Lula e há, evidentemente, uma sinalização de que, se o ex-presidente for impedido de forma abrupta na última hora, haverá uma tendência de migração desses votos para o plano B do próprio PT. Do ponto de vista jurídico, judicial e eleitoral, quem está com a batata quente é o Tribunal Superior Eleitoral e o Supremo Tribunal Federal, que criaram o problema; portanto, eles que terão de dar a solução.
IHU On-Line — Como o senhor interpreta o resultado das pesquisas eleitorais, que mostram Lula e Bolsonaro como os principais candidatos isolados? O que explica esse fenômeno?
Guilherme Delgado — As intenções de voto em Lula se explicam porque ele tem um carisma próprio, tem a herança dos seus governos, que foram bem vistos. Além disso, ele também está sabendo administrar com competência a ideia de que foi vítima de um golpe e cada vez mais essa estratégia se mostra verossímil. A decisão do Comitê de Direitos Humanos da ONU dá um respaldo enorme à tese que o PT vem defendendo. Tanto é que a reação da mídia é ignorar o assunto, não pautar, não tomar conhecimento. Do ponto de vista da popularidade do Lula, isso era de se esperar, ainda mais porque estamos em uma crise muito profunda e a memória que ele representa é a de um governo que tirou o Brasil da crise — sabemos que tirou, mas ao mesmo tempo colocou o país na crise também, mas isso é outra história. A memória popular tem esse lado positivo.
O caso do Bolsonaro é patológico. A sociedade brasileira, uma parte dela, assumiu um discurso fascista e isso encontra respaldo em uma pessoa totalmente desequilibrada do ponto de vista político, ético e tudo mais, mas que tem voto. Ou seja, é uma disjuntiva, não vou dizer que é uma disjuntiva ruim, porque ruim seria se tivesse a direita e a extrema direita no segundo turno, aí seria péssimo, mas ter um candidato de centro-esquerda e outro de extrema direita é uma disjuntiva razoável para podermos respirar e pensar o futuro. O meu receio é que haja uma tentação ainda forte, dentro do PT — em parte dele —, no sentido de percorrer o caminho do presidencialismo de coalizão. No entanto, na centro-esquerda mais esclarecida, as pessoas sabem que isso é a raiz da ingovernabilidade. Percorrer esse caminho aprofunda e não resolve a crise. Por isso, acredito que no segundo turno tenhamos a possibilidade de dar uma virada qualitativa no sentido democrático.
IHU On-Line — Sem a candidatura de Lula, as intenções de voto em Marina aumentam e ela fica na segunda posição. Essa é uma surpresa?
Guilherme Delgado — Ela representa ou provém de um campo comum, que é o campo popular, mas acredito que é correto ela estar cada vez mais se aproximando deste campo da esquerda, diferentemente da última eleição, em que se aliou com Aécio [Neves] e foi para a direita. Acredito que agora ela tenha aprendido que não é por aí.
O que me preocupa no caso da campanha dela é a audiência muito frequente aos economistas neoliberais que ela tem como representantes de um certo academicismo. Percebo no discurso dela — na pessoa de Marina e não de seus assessores — uma sensibilidade maior das questões estratégicas que precisam ser enfrentadas e que não se resolvem na governança tradicional.
IHU On-Line — Quais são os projetos de país que estão em disputa nessa eleição?
Guilherme Delgado — Existem três focos nessa direção. O primeiro é no Estado Social da Constituição de 1988, que é uma linha de clivagem àqueles que pretendem recuperar direitos sociais básicos e fazer voltar a vigorar os sistemas de saúde, educação e segurança nas bases estruturais do orçamento da Seguridade Social e das vinculações. Para isso tem que fazer uma minirreforma tributária. Esse é um campo e boa parte da centro-esquerda está aí.
O outro campo, no qual se colocam o PSDB e o MDB, defende a ideia de que é preciso aumentar o raio de abrangência dos mercados, apoiar os processos de redução do Estado com privatização e internacionalização, manter no mínimo a ação social do Estado na linha das políticas puramente voluntárias dos governos, ou seja, tirar os ordenamentos sociais e institucionais da Constituição.
A terceira vertente é a do Estado de Direito Penal, que é um misto dos fascistas de Bolsonaro e dos procuradores da República de Curitiba. Nessa visão, basta aplicar mais polícia, Ministério Público, Lava Jato e combater a corrupção, que tudo mais se resolve por decurso de prazo ou por decretação de uma mão invisível. O Estado de Direito Penal cederia espaço à ideia da punição infinita e à ideia da Segurança Pública com todo mundo com arma na mão, correndo atrás de bandido. É um misto de fascismo com a Lava Jato totalmente desregulada dos controles estatais.
Essas três vertentes disputam o imaginário popular. Claro que estou caricaturando para caber dentro dos limites da fala, mas essas são três vertentes: Estado Social, Estado Mínimo e Estado de Direito Penal.
Essa terceira vertente tem popularidade, porque ela partiu de alguns elementos originalmente bem explorados pela República de Curitiba, que é a ideia de combate à corrupção, e exacerbou para uma linha de penalização infinita. A vertente do Estado Mínimo tenta se desvencilhar o tempo inteiro do governo Temer, mas não consegue. E a ideia do Estado Social só se viabiliza com mudanças profundas nas regras estabelecidas no governo Temer. São três processos de enfrentar a crise que não são triviais, são complicados.
Nota:
[1] A entrevista foi gravada antes do pronunciamento do TSE acerca da candidatura do ex-presidente Lula. (Nota da IHU On-Line)
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Três projetos de país em disputa e as incertezas da governabilidade. Entrevista especial com Guilherme Delgado - Instituto Humanitas Unisinos - IHU