08 Outubro 2018
A escritora, uma das intelectuais mais respeitadas do Brasil, disseca a fascinação que há no país pela ditadura.
A entrevista é de Tom C. Avendaño, publicada por El País, 07-10-2018.
A antropóloga e escritora Lilia Schwarcz, uma das intelectuais mais queridas no Brasil, já escreveu vários livros sobre a história de seu país e, neles, não há tantas pasagens tão carregadas de tensão e significado como as eleições que se realizam neste domingo. O extremista de direita Jair Bolsonaro lidera as pesquisas com uma vantagem cada dia maior, enquanto os demais candidatos pagam pelos respectivos fracassos de seus projetos políticos nos últimos anos. Schwarcz, professora da Universidade de São Paulo e cofundadora da editora Companhia das Letras, explica o presente olhando para as manifestações de 2013, quando grupos tanto de esquerda como de direita saíram às ruas, cansados do desgaste do Partido dos Trabalhadores (PT) após 10 anos no poder e de sua corrupção indissimulável. Ela também olha para o impeachment de Dilma Rousseff em 2016, o caso Petrobras, que mostrou que a corrupção se estendia a toda a classe política, e, puxando um pequeno fio, também o último imperador do Brasil, D. Pedro II.
Como vê essa tendência, cada vez mais frequente, à medida que estas eleições se definem, de comparar Haddad e Bolsonaro?
O passado recente ainda dói para a sociedade brasileira. As manifestações de 2013, a corrupção revelada pelo caso da Petrobras e o desdobramento dessa investigação, o impeachment de Dilma Rousseff em 2016. E isso se traduz na polarização do voto, mas não que esses polos sejam duas faces da mesma moeda. É impossível comparar um com o outro. Bolsonaro representa um desafio para a democracia e Haddad, como os demais candidatos, não. Seria bom ter uma alternativa de direita à proposta de esquerda de Haddad, mas quando falamos de Bolsonaro estamos falando de um radical.
E esses setores da sociedade que acham que ele se acalmará ao chegar ao poder, que tudo o que diz é só para atrair o eleitorado?
Faz muito tempo que Bolsonaro está nos dizendo quem ele é. Um homem que se apresenta como um outsider da política, quando está no Congresso há 27 anos e tem dois filhos deputados. Que nesse período apresentou 600 projetos de lei e conseguiu que dois fossem aprovados. Que, no entanto, se uniu com um vice-presidente, Hamilton Mourão, capaz de dizer que pode reformar a Constituição sem consultar o povo, e que imita os generais da ditadura brasileira. Não há hipocrisia em Bolsonaro. Isto não é algo que inventou para as eleições. Caracteriza-se pelo seu espírito autoritário e por se opor à conquista dos direitos das mulheres, minorias raciais e LGBTQI há anos.
E essa diferença entre os dois? É um desafio ou uma vantagem para a campanha do PT?
O PT sempre seguiu as regras democráticas. Dilma se submeteu ao impeachment, embora as acusações contra ela fossem duvidosas, e Lula está preso. Agora, é verdade que vem de um período em que se descobriu que usou a máquina do Governo para fins não públicos. Talvez o que mais lhe convenha seja construir um consenso nacional.
Algum crítico diria que no projeto de poder do PT os consensos não têm sido sempre seu ponto forte.
Há muitos exemplos da flexibilidade do PT, no âmbito federal ou estatal. Conhecendo Haddad por seu trabalho como ministro da Educação para Dilma e Lula, não diria que é um radical.
É possível que Bolsonaro esteja menos sozinho do que se acreditou até agora? O novo presidente do Supremo Tribunal Federal, Dias Toffoli, acaba de repetir uma frase muito usada pelo extremista de direita: que prefere se referir ao levante militar que deu início à ditadura em 1964 não como um golpe de Estado, mas como um “movimento”.
Acho que é cedo para tirar conclusões. Mas ninguém pode dizer que o que aconteceu em 1964 não foi um golpe de Estado. Os militares chegaram, depuseram o governo democraticamente eleito e em 20 anos baixaram 17 Atos Institucionais, cada um retirando mais direitos da sociedade civil. Se isso não é um golpe de Estado, seria preciso reescrever a literatura universal, revendo o significado do conceito.
Como explica este fenômeno de nostalgia pela ditadura depois de 30 anos de democracia?
Há um desejo de ver a ditadura como uma utopia que melhoraria a segurança, a economia, a estabilidade ... Tudo o que vai mal agora. O brasileiro tem essa mania, de projetar a responsabilidade por suas desgraças. E não há nada como se projetar em um governo militar. É distante, autoritário e recebe todas as suas responsabilidades como cidadão. No Brasil, tudo é sempre culpa do outro.
Essa tendência é constante ao longo da história?
Quando escrevi um livro sobre Dom Pedro II [o admirado imperador, o último a ser chefe de Estado], notei que os brasileiros tendem a ver os governantes como um grande pai. Alguém que tem mais ideia do que nós, que governa em nosso lugar, que exerce nossos direitos. Que é severo, mas tolera nossas fraquezas e sabe estar à altura dos desafios. O mesmo aconteceu com o caudilho Getúlio Vargas (que governou o Brasil em quatro mandatos entre 1930 e 1954). Nos últimos 30 anos deveríamos ter superado isso.
Acha que a confusão entre os assuntos públicos e os sentimentos privados ainda se mantém hoje?
O público ainda é entendido como algo quase familiar, sim. Construímos instituições fracas e chamamos os governantes por seus próprios nomes, como os santos, ou transformamos seus nomes em apelido [um exemplo disso seria o caso de Luiz Inácio da Silva, que legalmente mudou seu nome para que seu apelido, Lula, estivesse presente nas cédulas de votação, e os eleitores o reconhecessem]. Temos uma sensação de intimidade com o poder.
Estes demônios que Bolsonaro despertou partirão com ele se não chegar à presidência?
Duvido. Seus eleitores sabiam muito bem como ele era quando o elegeram.
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“Há um desejo de ver a ditadura como uma utopia”. Entrevista com Lilia Schwarcz - Instituto Humanitas Unisinos - IHU