02 Dezembro 2025
"Enquanto houver igrejas que preferem aplausos ao empenho, dízimos ao serviço e poder ao testemunho, o povo continuará a buscar — com fome, com dor e com esperança — uma igreja que fale com verdade, que não tranquilize, mas liberte", escreve José Carlos Enríquez Díaz, em artigo publicado por Religión Digital, 28-11-2025. A tradução é de Luisa Rabolini.
Eis o artigo.
Ao longo do último século, a América Latina foi palco de um fenômeno religioso complexo e contraditório. Enquanto as lutas sociais reivindicavam justiça, terra e dignidade, ocorreu um processo inverso: não foram fundados sindicatos, mas igrejas. As missões religiosas, muitas delas financiadas do exterior, chegaram com o discurso da "salvação das almas" em vez de um empenho com a transformação das estruturas de injustiça. Em vez de justiça, falavam de pecado pessoal; em vez de denunciar a pobreza, ofereciam a promessa de prosperidade individual. Assim, as megaigrejas e a teologia da prosperidade se espalharam, configurando uma espiritualidade que, em vez de libertar, acabou por anestesiar os povos.
Em muitos países da América Latina, especialmente desde a década de 1970, proliferaram as igrejas evangélicas e neopentecostais com foco no sucesso espiritual e material. A mensagem foi simplificada: quem tem fé prospera, quem paga o dízimo será abençoado. Essa ideia transferiu a responsabilidade pela mudança social das estruturas coletivas para o indivíduo, fazendo acreditar que a pobreza é falta de fé. No entanto, as Escrituras ensinam o contrário: "Bem-aventurados os pobres de espírito, porque deles é o reino dos céus" (Mt 5,3). No Evangelho, a pobreza não é um pecado, mas um lugar de encontro com Deus e um chamado à solidariedade.
A expansão do protestantismo evangélico na América Latina não pode ser compreendida sem analisar o papel dos Estados Unidos. Desde o final do século XIX e, especialmente, durante a Guerra Fria, Washington promoveu ativamente a disseminação de igrejas protestantes por todo o continente como parte de uma estratégia geopolítica e cultural. Durante as décadas de 1950 e 1960, em pleno choque ideológico com o bloco soviético, a Casa Branca promoveu missões evangélicas sob o pretexto da "defesa da liberdade religiosa" contra o comunismo. Na prática, essas missões serviram para se contrapor à influência da teologia da libertação e dos movimentos sociais de inspiração evangélica que denunciavam as ditaduras e o capitalismo da dependência.
Organizações norte-americanas como o Summer Institute of Linguistics (SIL), o World Vision e diversas missões pentecostais receberam apoio financeiro e político para se expandirem para regiões rurais e indígenas. Em muitos casos, essas instituições substituíram o trabalho de sindicatos camponeses ou das comunidades eclesiais de base, oferecendo assistência espiritual e material, mas sem promover organização ou consciência crítica. A estratégia era clara: substituir a mobilização social pela devoção religiosa, a análise política pelo testemunho pessoal e a denúncia do sistema pelo apelo ao arrependimento individual. Isso promoveu um modelo de cristianismo aparentemente apolítico, mas funcional à ordem imperial, que fortalecia a estabilidade dos regimes aliados aos EUA.
Não é coincidência que, durante as ditaduras militares da América do Sul e Central — Chile, Argentina, Brasil, Guatemala, El Salvador —, os governos autoritários toleraram ou até mesmo promoveram as igrejas evangélicas, enquanto perseguiam violentamente padres, teólogos e comunidades da teologia da libertação.
Um dos casos mais emblemáticos ocorreu na Guatemala durante o governo do General Efraín Ríos Montt (1982-1983), pastor evangélico formado no ambiente pentecostal. Seu regime foi caracterizado pela brutal repressão contra comunidades indígenas e camponesas, sob a bandeira da "salvação nacional". Em seus discursos, Ríos Montt afirmava que seu mandato era a "vontade de Deus" e misturava a linguagem bíblica com a retórica anticomunista promovida por Washington. Nesse contexto, a religião serviu como justificativa moral para o autoritarismo. "Pois virá o tempo em que não suportarão a sã doutrina; ao contrário, sentindo coceira nos ouvidos, juntarão mestres para si mesmos, segundo os seus próprios desejos." (2Tm 4,3), uma advertência que se concretiza quando a fé é usada para legitimar a injustiça.
Assim, o protestantismo, financiado e sustentado pelo Norte, desempenhou um papel estratégico: manter a estabilidade política, neutralizar a organização popular e promover a hegemonia cultural estadunidense sob a bandeira da fé. A Bíblia tornou-se um instrumento de pacificação e cobertura espiritual para uma ordem econômica desigual. Com o fim da Guerra Fria, a influência norte-americana assumiu uma nova forma: o neopentecostalismo empresarial e midiático, portador da teologia da prosperidade. Esse movimento, originário dos Estados Unidos, espalhou-se massivamente pela América Latina por meio da televisão, da música gospel e dos modelos de "igrejas do crescimento". Seu discurso é plenamente compatível com a lógica neoliberal: todo crente é um "empreendedor espiritual" chamado ao sucesso por meio da fé e do empenho pessoal. A pobreza não é mais um problema estrutural e torna-se um "fracasso individual". A salvação é medida pela capacidade de consumo e acumulação material. Mas o Evangelho adverte: "Não acumulem para vocês tesouros na terra, onde a traça e a ferrugem destroem, e onde os ladrões arrombam e furtam" (Mt 6,19). Essa teologia inverte o significado bíblico, apresentando a riqueza como sinal de bênção e o sofrimento como falta de fé. O exemplo da Guatemala é mais uma vez ilustrativo. A "Igreja Casa de Deus", liderada por Cash Luna, simboliza a fusão entre religião e espetáculo. Com templos monumentais, tecnologias audiovisuais avançadas e uma estrutura empresarial, promove uma espiritualidade baseada na recompensa financeira e na motivação pessoal. Em seus sermões, a prosperidade é apresentada como uma promessa divina imediata, desvinculada de qualquer crítica ao sistema econômico que produz desigualdade.
Em paralelo, o caso do Brasil demonstra a consolidação desse modelo. A "Igreja Universal do Reino de Deus" construiu um império religioso e financeiro que inclui meios de comunicação, bancos e partidos políticos. Seu líder, Edir Macedo, apoiou abertamente candidatos conservadores e promoveu uma visão de mundo na qual a prosperidade material é sinal da graça divina. Na prática, essas igrejas funcionam como empresas religiosas a serviço do sistema neoliberal, mais interessadas no crescimento econômico do que na opção preferencial pelos pobres. A contradição com a mensagem bíblica é profunda. Jesus advertiu: "Não podeis servir a Deus e às riquezas." (Mt 6,4), e o livro de Atos nos lembra que os primeiros cristãos "tinham tudo em comum, e ninguém passava necessidade" (At 4,32-35). A comunidade cristã primitiva era um projeto de justiça, não de competição.
Em contraste com o cristianismo triunfalista, os teólogos da libertação latino-americanos defenderam uma fé comprometida com os povos oprimidos. Gustavo Gutiérrez falou da "opção preferencial pelos pobres" como exigência evangélica, Jon Sobrino identificou Cristo com os "povos crucificados" e Ignacio Ellacuría clamou pela "deposição da cruz de todos os crucificados da história". Todos eles foram perseguidos ou silenciados pelas ditaduras e pelos poderes econômicos. Enquanto as comunidades eclesiais de base promoviam a organização popular, a alfabetização e a solidariedade, as igrejas da prosperidade multiplicavam campanhas de fé televisivas e conferências motivacionais. A repressão dos movimentos sociais foi acompanhada por uma espiritualidade desmobilizadora, que substituía a luta por justiça pela expectativa de um milagre. "Eu estava com fome, e vocês não me deram de comer; eu estava nu, e vocês não me vestiram" (Mt 25,42). Essas palavras ressoam como uma denúncia de uma Igreja que preferiu a conveniência ao empenho. Quando a fé se torna um espetáculo e a pobreza é espiritualizada, o cristianismo perde sua força libertadora e se transforma em ópio religioso, como denunciava a crítica social.
Quando a Igreja permanece em silêncio diante da fome, deixa de denunciar a corrupção e abençoa o sucesso individual em meio ao sofrimento coletivo, não é mais voz profética e se torna cúmplice do poder. Esse silêncio gerou desconfiança e ressentimento em amplos setores populares, que veem as instituições religiosas como um reflexo do sistema que os oprime. "aquele que ignora o clamor dos pobres acabará clamando por ajuda e não será ouvido" (Pr 21,13). O desafio atual é recuperar uma fé libertadora, capaz de unir espiritualidade e justiça. Não se trata de politizar a religião, mas de evangelizar a política, de retornar à mensagem central de Jesus: "O Espírito do Senhor me enviou para anunciar boas novas aos pobres" (Lc 4,18). Uma Igreja que não defende o pobre nem denuncia a injustiça já não segue mais a Cristo e passa a servir os poderosos.
Recuperar o sentido profético significa renunciar ao conforto do espetáculo e assumir o risco da verdade. Como escreveu Ignacio Ellacuría pouco antes de seu assassinato, "uma fé que não rende justiça não é uma fé cristã". Com as palavras do Evangelho: "Conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará" (João 8,32).
Enquanto houver igrejas que preferem aplausos ao empenho, dízimos ao serviço e poder ao testemunho, o povo continuará a buscar — com fome, com dor e com esperança — uma igreja que fale com verdade, que não tranquilize, mas liberte.
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