Por: Jonas | 15 Mai 2013
“A sentença contra o ditador [Efrain Ríos Montt] é uma lição de decência do sistema de justiça guatemalteco. É também uma lição contra aqueles que se autodefinem eleitos de Deus, e que em nome desse suposto chamado messiânico cometem crimes atrozes contra os seres humanos”, opina o diretor da organização defensora dos direitos humanos “Paz e Esperança Internacional”, Alfonso Wieland, em artigo publicado pela Agência Latino-Americana e Caribenha de Comunicação (ALC), 13-05-2013. A tradução é do Cepat.
Eis o artigo.
Domingo, 28 de março de 1982, período da tarde. Se você tivesse sido um cristão evangélico, vivendo na Guatemala, sentado em frente à televisão, seu coração teria batido mais rápido e, talvez, algumas lágrimas de emoção teriam rolado pelo seu rosto.
O homem que fala pausadamente, com a Bíblia na mão, ensina os telespectadores: “Se não há paz na família, não há paz no mundo. Se queremos paz, temos que ter, em primeiro lugar, a paz em nossos corações”. Em seguida, sentencia: “Os guatemaltecos são o povo eleito do Novo Testamento. Somos os Novos Israelitas da América Central”. Esse homem, de 55 anos de idade, é o general Efrain Ríos Montt, pastor da Igreja "O Verbo", e acabava de assumir a presidência da Guatemala mediante um golpe de Estado promovido por jovens militares.
Faltará vida para Ríos Montt cumprir os 80 anos de prisão conferida, no dia 10 de maio de 2013, pelo Tribunal de Sentença de Maior Risco da Guatemala. Embora tenha ficado apenas 16 meses como chefe de Estado, o tempo foi suficiente para que, na opinião de organizações humanitárias, na Guatemala fosse desencadeado, literalmente, um rio de sangue. O ditador declarou uma “guerra santa” sem trégua contra o comunismo, o crime comum e a violência política. Diz-se que 10.000 guatemaltecos, em sua maioria indígena, foram vítimas de execuções extrajudiciais e seus corpos foram sepultados em fossas comuns ou atirados no campo desolado, como se fossem lixo. A repressão feroz obrigou os camponeses a buscarem refúgio em acampamentos mexicanos. Houve mais de 100.000 deslocados, e foi o grupo étnico ixil um dos mais atingidos.
Durante o julgamento de Ríos Montt, agora com 85 anos de idade, algumas vítimas dessa horrenda etapa da história guatemalteca descreveram, com detalhe, como membros do exército chegavam a suas comunidades. Aplicando a doutrina de terra arrasada, matavam, sequestravam, estupravam as mulheres. Não importavam se eram recém-nascidos ou anciãos. Segundo o relatório de Recuperação da Memória Histórica (Remni), a violência sexual contra as mulheres ocorreu em um de cada seis casos, nos massacres perpetrados por soldados ou pelas paramilitares Patrulhas de Autodefesa Civil. Uma testemunha, durante o julgamento, narrou como sua filha de sete anos foi reiteradamente estuprada pelos soldados até chegar à morte. Outra mencionou, diante de um público atônito, que “alguns soldados estavam doentes de sífilis ou gonorreia. A ordem foi que estes ficassem por último, depois que os sadios já tinham estuprado a vítima”.
Naqueles anos, dizia-se que a Guatemala tinha um despertar ou avivamento do cristianismo, sendo que 21% da população eram de confissão evangélica. Não foram poucas vezes que, em março de 1982, os soldados golpistas entraram na igreja cristã “O Verbo”, procurando Ríos Montt, para pedir que assumisse a chefatura do novo governo. Como também não foram poucas as vezes que o ditador recebeu o apoio de diferentes setores sociais, entre eles o religioso, pois o caos e a corrupção asfixiavam o país centro-americano. O imaginário do presidente cristão, que traria paz e justiça a uma nação, parecia se tornar realidade.
Nesses 16 meses de governo, Ríos Montt acostumou a população com seus “sermões” televisivos, quase todos os domingos. Falava de moralidade, de fortalecer a família, da mudança de corações para poder mudar a sociedade. Falava, em termos apocalípticos, do cumprimento dos tempos para a Guatemala, “a nova escolhida”.
Porém, foi um apocalipse o que o pequeno povo Maia dos ixiles sofreu. Durante os primeiros 100 dias, do governo de Ríos Montt, ocorreu a maior parte das matanças promovidas pelo Estado. Enquanto o ditador preparava seus diálogos dominicais, cheios de alusões bíblicas, ordenava e admitia a morte de mais de 3.000 pessoas, somente no primeiro mês de seu mandato.
Ríos Montt foi condenado por genocídio e crimes contra a humanidade. De todo o universo de assassinatos, foi considerado responsável pela morte de 1.771 pessoas. O ditador foi filho da doutrina de segurança nacional e de terra arrasada. Aquela que dizia que tinha que tirar “a água do peixe”, no sentido de aterrorizar a população civil para que não se atrevessem a apoiar os grupos guerrilheiros.
A sentença contra o ditador é uma lição de decência do sistema de justiça guatemalteco. É também uma lição contra aqueles que se autodefinem eleitos de Deus, e que em nome desse suposto chamado messiânico cometem crimes atrozes contra os seres humanos. O abuso de poder, disfarçado de religiosidade, é mais do que perigoso. É um ato idolátrico que cedo ou tarde se desnuda. Os cristãos jamais deveriam ser manipulados ou levados a justificar as injustiças, somente porque alguém cita Deus ou diz acreditar Nele. Já conhecemos essa velha lição apostólica: “também os demônios acreditam e tremem”.
Será bom tirar lições desta dolorosa etapa da história cristã na Guatemala, pedir perdão a Deus e mudar de atitude. Sabemos que há milhares de cristãos nesse país que repudiam a maneira como as igrejas e, especialmente, seus líderes se deixaram manipular pelos políticos. Tomara que o próprio Ríos Montt se arrependa. Ainda não fez isto.
Hoje, a Guatemala deve celebrar o desencadeamento deste impetuoso rio de justiça na alma da nação. Como no caso do ditador peruano Fujimori, aqui, são as vítimas, os indígenas maias, os mais excluídos, os que colocaram um intocável no banco dos acusados, para que nesta vida comece a prestar contas por seus atos abusivos. E, hoje, o nome de Deus foi enaltecido com esse ato tardio, mas necessário, de justiça.
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O que se aprende com a história e condenação do ditador Ríos Montt - Instituto Humanitas Unisinos - IHU