Por: Jonas | 29 Abril 2013
Manter viva a memória dos bispos Juan Gerardi e Próspero Penados, dois religiosos que lutaram por uma Guatemala justa e fraterna, é fundamental para alimentar as lutas de hoje. É necessário lembrar que o próprio “Jesus de Nazaré, em seus dias de Galileia, lutou contra a injustiça que as pessoas pobres, excluídas, “impuras” sofriam. Ele também acabou frustrado e derrotado: crucificado. Como outra florzinha esmagada na beira do caminho. Para muitos, foi o momento em que desperdiçou sua vida e acabaram-se suas possibilidades de ter impactos religiosos e políticos de transformação. Entretanto, no círculo de seus seguidores cresceu a convicção de que vivia, apesar de ter sido morto. Até hoje, nós o proclamamos presente nos processos históricos”. Neste sentido, a “Escuela de Teología y Pastoral Monseñor Gerardi” preparou um belíssimo texto, recuperando o verdadeiro significado da vida daqueles que morrem em prol da justiça. A tradução é do Cepat.
Eis o texto.
Durante a comemoração de dom Juan Gerardi, no décimo quinto aniversário de seu martírio, assistiremos entre outros atos, o traslado de seus restos e os de dom Próspero Penados. Serão levados da cripta até a parte superior da mesma catedral, onde ficarão mais acessíveis à devoção do povo de Deus, toda vez que se desejar visitar o túmulo daqueles que mostravam o caminho para o Reino de Deus. Este fato nos obriga a prestar especial atenção na amizade que ligava os dois prelados e a sintonia com a qual ambos entendiam a sua missão episcopal.
A atenção às vítimas da guerra
Entre outros muitos temas, dom Gerardi e dom Penados compartilhavam a preocupação com as vítimas da guerra. Por causa delas, tinham promovido a publicação do Relatório do Projeto Interdiocesano de Recuperação da Memória Histórica (REMHI): “Guatemala Nunca Mais”, apresentado por dom Gerardi, na noite do dia 24 de abril de 1998, quarenta e oito horas antes de ser assassinado na casa paroquial de São Sebastião.
O quarto tomo deste relatório tem como título justamente: “Vítimas do conflito”. Basicamente, é um livro com nomes e sobrenomes: quase 500 páginas deles. Milhares e milhares de pessoas massacradas. Muitas destas vítimas ainda são lembradas e choradas, cotidianamente, pelos familiares que sobreviveram. Não são esquecidas nos lares de onde foram arrancadas. Continuam ali, como um lugar vazio, como a presença de uma ausência. Por terem escrito e publicado os nomes no quarto tomo, os bispos Gerardi e Penados confirmam a dignidade das vítimas, cujos nomes não são esquecidos por Deus, segundo a sua Palavra registrada no profeta Isaías: “Eu não me esquecerei de você. Veja! Eu tatuei você na palma de minha mão” (49, 15-16).
Na página 486, do quarto tomo, encontramos dados importantes sobre uma categoria de vítimas, mais de 30% do total, que pertenciam a algum grupo organizado. “Deles, mais da metade era catequista ou agente da Palavra” e quase 20% das vítimas “trabalhavam em grupos de caráter social ou comunitário, como, por exemplo, comitês de desenvolvimento”. Estes dados, conclui o documento, confirmam o enorme impacto da violência repressiva contra os líderes comunitários.
Por que precisamente aquelas pessoas foram perseguidas pelos aparatos repressivos (exército, comissários militares, PAC, polícia,...)? Por que “se fez terra arrasada com os catequistas”, como, há pouco, expressou alguém que é neto de um deles? Porque, muitas vezes por motivos de fé, estavam lutando contra a injustiça e a favor de um país “diferente”, melhor, mais habitável, mais humano, um país construído sobre as bases de justiça e de paz. Esta luta, sobretudo em seu início, não era violenta, não era armada. Antes de se tornar violenta, a luta era legal e confiava em meios pacíficos. Somente quando ficou comprovado que para eles não deixariam nenhuma alternativa, é que alguns caminharam para se tornar guerrilheiros.
Dom Próspero Penados, então arcebispo metropolitano de Guatemala, explica com clareza este processo, em suas Palavras Preliminares no Relatório mencionado: “O desejo de mudança, por uma sociedade mais justa, e a impossibilidade de realizá-la por meio de categorias estabelecidas, provocou a incorporação na insurgência, não apenas daqueles que pretendiam uma mudança para o socialismo, mas de muitos que não sendo marxistas, e não tendo uma posição política comprometida, ficaram convencidos e se viram compelidos a apoiar um movimento que parecia ser a única via possível: a luta armada” (p XII).
As vítimas que queremos enfocar, especialmente nesta reflexão, são as pessoas que, sofrendo pobreza e injustiça, decidiram lutar contra as causas desta situação. Os catequistas e demais líderes viram a injustiça e ouviram o grito de dor de seu povo. Após avaliarem esta situação, a partir da Palavra de Deus, como desumana e insustentável, optaram pela ação libertadora, assim como fez Moisés, o libertador dos escravos no Egito, segundo a vocação que o próprio Deus libertador lhe confiou (Ex, 3).
No entanto, todos aqueles catequistas, e outras pessoas massacradas, não fracassaram em sua luta? Não conseguiram ver a terra prometida, nem eles e nem seus descendentes. O projeto de libertar o povo ficou trincado. Apesar de seu sacrifício generoso, como o de Jesus crucificado – até o extremo de entregar sua vida –, hoje, a Guatemala não pode se denominar um país libertado. Os netos e netas de hoje continuam sofrendo quase o mesmo que, ontem, seus avôs e avós sofreram: continua a pobreza e segue o empobrecimento, segue a falta de terra, de emprego e de salários justos. Continua a fome e segue a desnutrição infantil como uma das piores tristezas que nossa nação arrasta. As enfermidades e a morte “antes do tempo” continuam. Segue a degradação de milhões de seres humanos. Continua o sofrimento e seguem os gritos de dor.
E o próprio Gerardi, não fracassou, também ele, em seu projeto de converter a Guatemala num país diferente? Em 2013, permanecemos vivendo num país que continua fundamentalmente com as mesmas condições das anteriores a tanto esforço para se libertar delas.
A memória dos mortos que lutaram pela justiça
Há um autor judeu que, nas vésperas do genocídio contra seu povo, cometido na Europa nos dias de Hitler, refletiu a respeito das mesmas perguntas sobre o fracasso daqueles que lutaram contra a injustiça. Trata-se de Walter Benjamin, que morreu em 1940. “Teses sobre a história” redefine quem é o sujeito da história: aqueles e aquelas que sofrem e lutam contra a injustiça, que é a causa de seu sofrimento.
Entretanto, muitos lutaram e caíram como vítimas na luta, sem alcançar o dia de sua libertação. Para muitos observadores, inclusive historiadores profissionais, aqueles lutadores fracassados se perderam para sempre. São como as florezinhas que na marcha da história foram pisoteadas e desapareceram para sempre dos livros da história. Agora são esquecidos e esquecidas. Daqueles momentos, o único que sobreviveu é o que se impôs, saindo como vencedor. Em sua configuração atual, a sociedade é o resultado daquilo que os adversários impuseram aos que lutaram por um país edificado sobre princípios de justiça e paz. Pensa-se, frequentemente, que a realidade de nossos dias está nos crivos moldados pela intervenção dos vencedores históricos.
Contudo, Benjamin vê com outros olhos a história passada e a realidade presente. Para ele, tantos lutadores e lutadoras não ficaram aniquilados nas sarjetas do itinerário histórico. Hoje, ainda, é possível escutar seus gritos e seus projetos de emancipação, se é que queremos ter um ouvido atento e se é queremos escutar as vozes apagadas. Assim, descobriremos a presença de sua ausência, a validade de suas reivindicações por justiça. A realidade que vivemos, em 2013, não é apenas os fatos que temos diante dos nossos olhos, e que são fruto das barbaridades cometidas por aqueles que esmagaram as vidas das pessoas que lutaram por uma vida melhor. A realidade de hoje é aquela facticidade, sim, mas também é o conjunto de possibilidades não realizadas, que eram o objetivo dos oprimidos que lutaram por um país diferente, embora não conseguiram alcançá-lo. Estas possibilidades não estão apagadas de maneira absoluta da realidade: ainda se mantêm vigentes como uma crítica subterrânea à atual sociedade e como um grito surdo que clama por mudança. Se, além de ter matado estas vítimas fisicamente, também as matamos espiritualmente, ao deixá-las enterradas no esquecimento, então, sim, nós as declaramos como florezinhas machucadas.
Dom Gerardi e dom Penados não quiseram que as vítimas sofressem, além da primeira morte violenta, essa segunda morte, que é a do esquecimento, do apagão e conta nova. Não permitiram que seus nomes fossem riscados do livro da história. Ao contrário, quiseram colocá-los nos livros e nas colunas do átrio da catedral, mas, sobretudo, na memória coletiva do povo guatemalteco, para não afogar os gritos contra a injustiça sofrida secularmente. Nossos bispos insistiram em manter aberta a possibilidade de que nós, as gerações que hoje vivem na Guatemala, déssemos seguimento nas lutas e que alcançássemos a terra prometida, que eles e elas estiveram a ponto de entrar, mas caíram eliminadas e eliminados brutalmente pelos defensores da “ordem estabelecida”, que não é mais do que uma escandalosa situação de desigualdade.
Para uma teologia do Ressuscitado e dos ressuscitados
No pensamento de Walter Benjamin, que era um filósofo muito original e muito livre, há uma aproximação com a teologia. Podia se espantar, como disse Reyes Mate, um de seus melhores comentadores, diante de situações que para o resto dos mortais fazem parte da paisagem. Resgata de sua fé judaica a ideia do messianismo, não no sentido daqueles movimentos sociais que irresponsavelmente esperam a chegada de um salvador, que estabeleceria uma nova situação utópica sem necessidade de uma comprometida colaboração humana. Isto seria desconhecer a responsabilidade humana no político e a autonomia dos processos naturais e sociais, o que um pensador como Benjamin leva muito a sério.
Contudo, na repulsa de Benjamin em dar por irrevogavelmente desperdiçadas as vidas daqueles que no passado lutaram por conquistar justiça, como se fossem pequenas flores arrancadas e esmagadas sob as rodas da história, abre-se a porta para uma fé na ressurreição, conceito que como tal não aparece em seus escritos, sendo que se incorpora o de “redenção”. O certo é que as teses do extraordinário escritor que foi Walter Benjamin, muitas vezes difíceis e interpretáveis em diversos sentidos, permitem aproximar posições e motivações da fé com outras não religiosas.
Jesus de Nazaré, em seus dias de Galileia, lutou contra a injustiça que as pessoas pobres, excluídas, “impuras” sofriam. Ele também acabou frustrado e derrotado: crucificado. Como outra florzinha esmagada na beira do caminho. Para muitos, foi o momento em que desperdiçou sua vida e acabaram-se suas possibilidades de ter impactos religiosos e políticos de transformação. Entretanto, no círculo de seus seguidores cresceu a convicção de que vivia, apesar de ter sido morto. Até hoje, nós o proclamamos presente nos processos históricos. Continuamos celebrando, em sua memória, a ceia com a qual se despediu de seus amigos e amigas, e que é sinal do Reino de Deus, outro nome para destacar a sociedade diferente, onde há lugar para todos e todas, onde por fim se conquista a justiça. Este Reino, se o acolhemos como dom de Deus, mas, ao mesmo tempo, estamos comprometidos e comprometidas em sua construção histórica. É um reino inaugurado pelo Messias crucificado e ressuscitado, “primeiro dos que morreram” (1 Co, 15.20) e presente em cada instante da história, como uma porta por onde Ele pode entrar e se colocar no meio daqueles que sofrem e lutam para conquistar a justiça que os pais e avós não conseguiram estabelecer.
Não vamos cometer o erro de mais uma vez enterrar dom Gerardi, rematando-lhe, de maneira simbólica, ao deixá-lo no anonimato e no esquecimento. A partir de hoje, é nos facilitado a forma de atualizar e alimentar nossa memória histórica. Poderemos nos aproximar de seu túmulo e ao de seu amigo dom Próspero Penados, que estarão juntos na catedral, onde poderemos lembrá-los, fazendo uma oração ou acendendo uma vela, mas, onde mais do que tudo poderemos acender a chama de nossa disposição de ser fiéis à memória destes lutadores e pedir a sua intercessão no trabalho por uma Guatemala diferente e por outro mundo possível, o qual eles tiveram que deixar inconcluso.
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Dom Gerardi e dom Penados. Manter viva a memória de dois pais da Igreja guatemalteca - Instituto Humanitas Unisinos - IHU