Por: Jonas | 03 Mai 2013
Rios Montt é acusado de ser o autor intelectual de uma série de massacres contra a etnia ixil. Durante o julgamento, uma testemunha disse que foram coordenadas pelo major Tito Arias, nome de guerra do hoje presidente Otto Pérez Molina.
A reportagem é de Angel Berlanga, publicada no jornal Página/12, 29-04-2013. A tradução é do Cepat.
‘Adeus crianças’. Ao longo do tempo, o horror produzido pelo homem acarretou argumentos práticos, histórias, geografias. Inquisição, Auschwitz, Vietnã, Ruanda. Aqui, já sabemos. Nestes dias, fala-se do horror na Guatemala, onde está sendo julgado por genocídio o ex-ditador José Efraín Ríos Montt. Ou estava, pois a pressão das altas camadas do poder, depois de uma acusação, no julgamento, ao atual presidente democrático, Otto Pérez Molina, traduziu-se numa suspensão provisória, ditada pela Corte Constitucional.
Ríos Montt é um general aposentado que foi presidente entre março de 1982 e agosto de 1983. É acusado de ser o autor intelectual de uma série de massacres contra a etnia ixil, no departamento de Quiché. Terra arrasada: esse foi o conceito a ser aplicado. Com o argumento de liquidar a guerrilha, o exército guatemalteco deteve, torturou e executou cerca de 48.000 pessoas durante o mandato deste militar, que hoje tem 86 anos. Neste julgamento busca-se provar sua responsabilidade nos crimes de 1771 maias ixiles. Destes, 38% eram menores de 12 anos. ‘Adeus crianças’ é o que dizia um soldado no instante prévio de jogá-las no rio. “O exército agarrou algumas mães grávidas, degolando-as, partiram seus estômagos e arrancaram o bebê”, relatou uma testemunha. “jogavam no rio as crianças de peito, de um ano, e ali se afogavam”, contou outro.
Esses testemunhos estão presentes em “Guatemala: memória do silêncio”, publicado pela Comissão para o Esclarecimento Histórico, CEH, em fevereiro de 1999. Há ali muitas outras vozes, carregadas ainda mais pelo horror. No início deste mês, diante de Ríos Montt e seu ex-chefe de Inteligência, Mauricio Rodríguez Sánchez (o outro acusado na causa), uma dezena de mulheres, que foram estupradas por soldados e oficiais, com uma violência e crueldade observáveis apenas no ser humano (no homem), testemunharam.
‘Levaram-me para um campo, cerca de vinte quadras de minha casa’. ‘Os soldados que me estupraram eram como vinte, eu estava tremendo de susto, não tinha consciência’. ‘Deixaram-me nu, outras pessoas me deram roupa’. ‘Tinha um filho de trinta dias’. ‘Quando regressei para minha casa tudo estava queimado’. ‘Queimaram meu filho. Era ainda um bebê, coloquei-me a chorar’. Outra vítima declarou no Tribunal, sob a responsabilidade da juíza Jazmín Barrios, que uma neta de sete anos não sobreviveu aos contínuos estupros. A fúria com os ixiles implicou em esquartejá-los, pendurados, mutilados, em bombardeios, fossas comuns, incinerações. Terra arrasada. Após três décadas daquilo, em busca ainda de justiça, outra vez estes testemunhos palpitam arrepiantes.
O que distancia ou o que aproxima? Que envolvimento será requisito para falar, ler e escrever sobre este genocídio? Horacio Castellanos Moya tratou disto em “Insensatez”, uma nouvelle, publicada em 2004. Seu protagonista se recrimina por ter aceitado fazer a última leitura, um retoque final num ‘tijolo’ de mil e cem páginas, elaborado pelo bispo, que procura recuperar a memória de centenas de sobreviventes e testemunhas dos massacres. Trata-se do ‘Relatório para a Recuperação da Memória Histórica’, embora o escritor centro-americano não explique isto. Dois dias após a sua apresentação, em abril de 1998, o bispo Juan Gerardi, diretor deste relatório, também chamado “Guatemala: Nunca mais”, foi assassinado. Ao narrador de “Insensatez”, mais interessado em ganhar alguns trocados, andar cômodo e conhecer alguma menina, aos poucos cresce o medo das possíveis represálias de militares ou de agentes de Inteligência por sua tarefa. Por sua vez, emociona-se pelo que vai lendo, as atrocidades de assassinos que ainda andam soltos. Lê: “Eu não estou completo da mente”, diz um indígena. Este corretor de livros também se emociona com a potência poética daquilo que lê. A beleza do como o requer mais do que o espanto daquilo.
Escreve Castellanos Moya: “Eu não estou completo da mente, repeti-me, impactado pelo grau de perturbação mental na qual havia se afundado esse indígena cachiquel, testemunha do assassinato de sua família. Em razão desse indígena ter sido consciente da transgressão de seu aparato psíquico, por ter presenciado, ferido e impotente, como os soldados do exército de seu país despedaçavam, com machadadas e com ironia, cada um de seus quatro pequenos filhos e, em seguida, investiam contra sua mulher, a pobre já em choque por também ter sido obrigada a presenciar a forma como os soldados transformavam seus pequenos filhos em palpitantes pedaços de carne humana. Ninguém pode estar completo da mente, disse-me, matutando, excitante, procurando imaginar o que pode ser o despertar desse indígena, a quem tinham deixado como morto entre os pedaços de carne de seus filhos e de sua mulher, e que depois, muitos anos depois, teve a oportunidade de contar seu testemunho para que eu o lesse e lhe fizesse a pertinente correção na escrita. Um testemunho que começava, precisamente, com a frase ‘Eu não estou completo da mente’, que tinha me emocionado tanto, pois resumia da forma mais compacta o estado mental em que se encontravam dezenas de milhares de pessoas que tinham sofrido experiências semelhantes à relatada pelo indígena e que também resumia o estado mental dos milhares de soldados e paramilitares que tinham destroçado, com o maior prazer, seus maus chamados compatriotas. Embora, eu deva reconhecer que não é o mesmo estar incompleto da mente por ter sofrido o esquartejamento dos próprios filhos do que por ter esquartejado filhos alheios, tal como me disse antes de chegar à contundente conclusão de que era a totalidade dos habitantes desse país que não estava completa da mente, o que me conduz a uma conclusão ainda pior, mais perturbadora: a de que apenas alguém fora de sua mente poderia estar disposto a mudar para um país distante, cuja população estava incompleta da mente, para realizar um trabalho que consistia precisamente em editar um extenso relatório de mil e cem páginas, que documentava as centenas de massacres, evidência da perturbação generalizada”.
Durante o julgamento do ex-ditador – a quem também chamam Ríos de sangue Montt – uma testemunha protegida, que colaborou com o exército em Quiché, naqueles anos, Leonardo Reyes, afirmou que os massacres dos ixiles foram coordenados pelo major Tito Arias, nome de guerra que encobria Otto Pérez Molina, atual presidente da Guatemala. Desde então, o julgamento começou a retroceder. Em seguida, um secretário da Presidência saiu desmentindo a declaração, dizendo que foi um erro garrafal a promotoria ter permitido a testemunha se referir a pessoas que não são julgadas. Disse que Pérez Molina andou por essa região nessa época, mas sem violar nenhum direito humano, nem muito menos ordenar algum massacre. Não é o que opina o jornalista Allan Nairn, que em 1982 andou pela região de Quiché e documentou a situação para “Titular de hoy: Guatemala”, filme de Michael Whalfors, disponível no YouTube. Nele, pode-se ver um diálogo com o major Tito sobre a procedência dos morteiros e as facilidades que os helicópteros prestam. Diante dos cadáveres de alguns camponeses, recém-executados, ouve-se a voz de um soldado: “Nós somente os trouxemos e os deixamos ao major, para que os interrogassem, mas não disseram nada ao major. Nem por bem, nem por mal”.
Também pode ser visto um Pérez Molina jovem, em primeiro plano, com roupa camuflada e boina, lendo “material subversivo” que as vítimas portavam. Nairn iria depor no julgamento, mas as peripécias-escolhos judiciais até agora o impediram. Junto ao papel de Pérez Molina nos massacres contra os ixiles se soma outra acusação, não julgada aqui: o jornalista Francisco Goldman, autor de “El arte del asesinato político: quién mato al obispo?”, sustenta e fundamenta que o atual presidente guatemalteco foi o autor intelectual do crime de dom Gerardi.
“Quase 90% dos colunistas da imprensa guatemalteca nega que em seu país tenha sido cometido genocídio, e acredita que o julgamento contra o general aposentado Efraín Ríos Montt é injusto”, destaca o escritor Rodrigo Rey Rosa, no jornal “El Faro”, em artigo que disseca os argumentos dos defensores do status quo, para deixar em evidência as falácias e hipocrisias. “Ter conseguido que a causa por crimes contra o povo ixil fosse vista em tribunais estrangeiros e nacionais, demandou um trabalho e perseverança enormes por parte dos sobreviventes, e é a prova de sua força de espírito – escreve Rey Rosa -. A confiança que os ixiles decidiram depositar nas instituições democráticas de uma nação por cujos governos foram atacados de forma sistemática, ao longo da história, é digna de elogio e revela sua boa fé. A linha de ação pacífica e corajosa que adotaram é simplesmente exemplar”.
Após a pressão da opinião pública e a aparição da testemunha contra Pérez Molina, a juíza Patricia Flores, responsável do Juizado de Maior Risco A, pediu a anulação do processo. A Corte Constitucional apontou que a juíza Barrios – responsável do julgamento – remetesse o expediente para Flores e que, após 48 horas, esta última o enviasse novamente para a Corte, para decidir a continuidade ou não do processo. Em síntese: a continuidade do histórico julgamento de Ríos Montt está em risco.
O corretor de estilo [escrita] de “Insensatez”, a novela de Castellanos Moya, entra progressivamente em pânico quando para ele fica evidente que os assassinos, os torturadores, ainda caminham por aí, soltos pela rua, inseridos nas instituições. No bispado, onde lê as páginas que testemunham o horror, cruza-se com uma garota que tinha sido torturada com cólera, num quartel de polícia, por um tenente que com o tempo se tornaria general e chefe de Inteligência do Exército. Imaginar que o criminoso estará consciente de seu trabalho o assusta: enxerga-o numa reunião social, intui vigiando-lhe, pronto para executá-lo. Foge da Guatemala. Contudo, enquanto toma uma cerveja num bar alemão, como ondas de sangue, retornam-lhe as frases do genocídio: “Quanto mais se matava, mais se ia para cima”, em relação a certas comodidades oferecidas para aqueles que colaboraram com as matanças. E também: “Todos nós sabemos quem são os assassinos”.
Sozinho no balcão, pelo espelho, logo descobre alguns olhos que o miram. O torturador. Esse personagem, que chegaria a ser chefe de Inteligência do Exército e muito mais, na novela, chama-se Octavio Pérez Mena. Cuidado: pode soar parecido a Otto Pérez Molina, o atual presidente da Guatemala. “Insensatez” é uma ficção. E Pérez Molina é realmente o presidente da Guatemala. Todos nós sabemos quem são os assassinos.
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O horror. "Todos nós sabemos quem são os assassinos da Guatemala" - Instituto Humanitas Unisinos - IHU