Monogamia moderna e monogamia pré-moderna: algumas diferenças instrutivas entre sociedade de honra e sociedade da dignidade. Artigo de Andrea Grillo

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26 Novembro 2025

 Não se pode negar que toda a questão da "monogamia" depende de como pensamos a relação entre o casamento e a singularidade do sujeito (masculino e feminino) que o concebe. E aqui, sem dúvida, superar a primazia absoluta da procriação e compreender a "submissão" feminina transforma profundamente a questão, impondo uma gramática inesperada e uma nova sintaxe.

O artigo é de Andrea Grillo, teólogo italiano, publicado por Endoxa, 26-11-2025.

Eis o artigo. 

«Pluralitas uxorum quodammodo est contra legem naturae, et quodammodo non.» Tomás de Aquino, Super Sententias, IV, 33, 1,1 corpus

A doutrina católica sobre a "monogamia", como característica do matrimônio sacramental, tem uma longa história e diversas expressões dentro da tradição. A consciência de que a história da salvação, atestada pelas Escrituras, inclui uniões matrimoniais "não monogâmicas" tornou os antigos, os medievalistas e os modernos cautelosos em seus julgamentos. Somente os contemporâneos parecem ter resolvido drasticamente a questão. Um traço desse "maximalismo tardo-moderno" encontra-se no texto do Catecismo da Igreja Católica, que realiza uma operação "indistinta" e assimila, de forma praticamente indiferenciada, no n.º 2400, as quatro ofensas contra a dignidade do matrimônio:

"O adultério e o divórcio, a poligamia e a união livre constituem graves ofensas contra a dignidade do matrimônio."

O argumento apresentado é muito recente e pressupõe uma "evidência moderna" como fundamento: é bastante esclarecedor que o argumento utilizado remonte ao Concílio Vaticano II (1965) e à Familiaris consortio (1981):

"“A unidade do matrimônio, confirmada pelo Senhor, se manifesta claramente na igual dignidade pessoal do homem e da mulher, que deve ser reconhecida no amor mútuo e pleno” [Concílio Ecumênico Vaticano II, Gaudium et Spes , 49]. A poligamia é contrária a essa igual dignidade e ao amor conjugal, que é único e exclusivo [cf. João Paulo II, Exortação Apostólica Familiaris Consortio , 19]" (CIC 1645).

Essa forma de argumentação, porém, revela uma tensão entre categorias que a síntese magisterial não consegue superar completamente: a “ruptura da unidade”, que se denomina adultério, divórcio, poligamia ou união livre, corresponde a diferentes perspectivas sobre a relação entre sujeito e instituição, perspectivas essas que a história conhece e que a tradição eclesial deve levar em consideração. Uma pista para essa diferença aparece, novamente no Catecismo da Igreja Católica, no n.º 2387, onde fica claro que a poligamia é uma “instituição” que, no entanto, cria direitos e deveres:

"Compreende-se o drama daqueles que, desejando converter-se ao Evangelho, se veem obrigados a repudiar uma ou mais mulheres com quem partilharam anos de vida matrimonial. Contudo, a poligamia está em conflito com a lei moral. Contradiz radicalmente a comunhão conjugal; “nega diretamente o plano de Deus que nos foi revelado desde o princípio, porque é contrário à igual dignidade pessoal do homem e da mulher, que no matrimônio se entregam com um amor total e, portanto, único e exclusivo” [João Paulo II, Exortação Apostólica Familiaris Consortio, 19; cf. Concílio Ecumênico Vaticano II, Gaudium et Spes, 47]. O cristão que foi anteriormente polígamo tem, por justiça, o grave dever de respeitar as obrigações contraídas para com as mulheres que foram suas esposas e para com os seus filhos." (CIC 23879)

Mesmo neste caso, a evidência "revelada" parece ser justificada com base em "princípios da razão comum", que não podem contornar a força das constrangimentos: por mais que se possa considerar que conflitem com a igual dignidade dos sujeitos envolvidos, não deixam de produzir efeitos, a fim de impedir que o "summum ius" determine, para os sujeitos envolvidos, uma "summa iniuria", quando o melhor devido se revela inimigo do bem possível.

Essa mesma tensão, que deriva da articulação interna de um raciocínio que une a "tradição de autoridade" e as "novas evidências da modernidade tardia" (ou seja, o discurso obediente ao mandamento de Deus e o discurso imposto pelas novas evidências dos direitos dos homens e das mulheres), deve nos levar a examinar a forma como o tema da "monogamia" era abordado "antes da modernidade", da qual analisaremos alguns exemplos.

1. A monogamia em Tomás de Aquino

De particular interesse é examinar como Tomás de Aquino elabora a teologia da monogamia. Os argumentos fundamentais de Tomás, extraídos tanto do Scriptum super Sententias quanto da Summa contra Gentiles, oferecem-nos diferentes maneiras de considerar o fenômeno da poligamia. Examinemos os argumentos apresentados em ambas as obras.

1.1. Poligamia e lei natural

Pode ser surpreendente ler na síntese de Tomás sobre o tema da monogamia uma tensão singular entre a evocação do texto bíblico de Gênesis 2, a correspondência a ele da leitura cristológica do matrimônio como cumprimento sacramental e uma espécie de gradação interna construída a partir dos "bens" do matrimônio. De fato, lemos essa síntese na Distinção 33 do Livro IV do Scriptum:

"O matrimônio, portanto, tem como fim principal a procriação e a educação dos filhos, fim que pertence ao homem em virtude da natureza de seu gênero; de modo que, para usar a expressão aristotélica, 'é também comum a outros animais'. E, nesse aspecto, corresponde ao matrimônio o bem da prole. Mas, como fim secundário, o próprio Filósofo declara que, para os homens, o matrimônio oferece a troca dos serviços necessários à vida. E, nesse outro aspecto, os cônjuges devem um ao outro a fé, ou fidelidade , que é um dos bens do matrimônio. Além disso, no caso dos crentes, outro fim deve ser alcançado, a saber, a união de Cristo com a Igreja deve ser expressa simbolicamente. E assim, entre os bens do matrimônio, temos o sacramento. Portanto, ao primeiro desses fins do matrimônio, o homem é ordenado como um animal; ao segundo, como um homem; ao terceiro, como um cristão."

"Ora, a poligamia não exclui nem impede de modo algum o primeiro desses fins: basta um homem para engravidar várias mulheres e educar os filhos que delas nascerem." — O segundo, porém, mesmo que não o exclua, impede-o seriamente: visto que a paz não pode ser fácil numa família onde muitas esposas estão unidas a um só marido, pois um só homem não pode satisfazer várias esposas segundo os seus desejos; e também porque a competição de várias pessoas por um determinado cargo causa desavenças, tal como “os oleiros brigam entre si”, assim também brigam as várias esposas de um mesmo marido. — O terceiro fim, porém, é completamente excluído pela poligamia: porque, assim como Cristo é um, também o é a Igreja. Disso se conclui que a poligamia, em certos aspectos, é contrária à lei natural; enquanto em outros aspectos não o é." (Super Sent., lib. 4 d. 33 q. 1 a. 1 co.)

Obviamente, estamos falando aqui de uma perspectiva que correlaciona estreitamente três níveis de experiência da mesma realidade: como o próprio Tomás afirma, a correlação é feita dentro de uma compreensão estática e naturalista da diferença entre masculino e feminino. Dentro desses limites, porém, a possível justificativa para a poligamia encontra seu argumento em um nível “natural” e, ao mesmo tempo, “institucional”: o bem do animal e o bem da espécie são centrais aqui. Comparado a esse modo de reflexão, fica claro que o processo de “personalização” dos sujeitos, combinado com a unificação eclesial das competências relativas ao sacramento, determina uma profunda mudança de perspectiva. A unificação dos “bens” em uma perspectiva cristológica, por um lado, promove a “dignidade de cada sujeito”, mas, por outro, obscurece a distinção entre diferentes níveis da realidade matrimonial, sintetizando toda a experiência matrimonial no nível mais alto e, assim, contribuindo significativamente para uma espécie de tendência ao “maximalismo nupcial”.

1.2. Poligamia e a animalidade do homem

Mais radical e ainda mais surpreendente é a abordagem que Tomás de Aquino adota sobre o mesmo tema na Suma contra os Gentios. É a própria estrutura da obra que leva o autor a apresentar o casamento quase inteiramente no nível da "evidência racional", reservando apenas uma pequena parte de seu discurso para a revelação. Graças a esse método apologético (concebido precisamente "contra os gentios"), o argumento sobre a monogamia parte de algumas observações radicalmente antropológicas e até mesmo etológicas: o capítulo 124 do livro III da Suma contra os Gentios, intitulado Quod matrimonium debeat esse unius ad unam, começa com a observação de que "propter cibum et propter coitum animalia pugnant", e daí emerge a tendência do instinto natural de demonstrar que o casamento é "una unius". Nesse argumento racional, Tomás de Aquino busca todos os argumentos que possam convencer sobre a monogamia. Os argumentos são os seguintes:

(a) Paz social, como já vimos;

(b) A certeza dos filhos (dada a primazia do “bonum prolis”);

(c) Cuidado masculino com a prole: Uma observação do mundo animal distingue entre espécies animais em que o macho cuida da prole (como em muitas aves) e espécies em que o macho não cuida da prole (como em cães e galinhas). Se a espécie humana é aquela em que o macho cuida mais da prole, então a monogamia é imposta, poderíamos dizer, por analogia natural;

(d) A amizade deve ser baseada numa certa igualdade: isto não pode acontecer numa relação entre um e muitos. O mesmo se aplica à qualidade "liberal" da amizade, que no caso de "múltiplas esposas" transforma a liberalidade numa forma de relação que é quodammodo servil;

(e) A orientação para os “bons costumes” impede a discórdia na família doméstica, onde a presença de mais mulheres gera conflitos, “como a experiência demonstra”.

(f) Somente à luz desta evidência podemos ler o texto bíblico "e os dois se tornarão uma só carne" (Gênesis 2:24).

Em conclusão, a perspectiva da poligamia é refutada, juntamente com a opinião de Platão, segundo a qual as esposas na pólis deveriam ser compartilhadas.

É evidente que a posição de Tomás de Aquino é influenciada por duas fontes distintas: por um lado, a consideração dos diferentes níveis da experiência da relação entre homem e mulher (no nível animal, para a procriação; no nível social, para a amizade; e no nível eclesial, como a realização da unidade entre Cristo e a Igreja); por outro, a demonstração racional da primazia da monogamia sobre a poligamia.

2. Monogamia nos "mestres" de Tomás de Aquino (Pietro Lombardo e Agostino)

No entanto, Tomás de Aquino se baseia em uma tradição que encontra duas passagens decisivas em Pedro Lombardo, mestre das Sentenças, e em sua antiga inspiração, Agostinho. Ambos fornecem à tradição uma posição significativa sobre o tema, que vale a pena ao menos mencionar.

2.1 Distinção 33 no Livro IV das Sententiae

O início da Distinção 33 aborda o tema intitulado De diversis coniugii legibus. É notável a estreita correlação, nesta abordagem escolástica inicial, entre o tema do coniúgio e os temas da castidade e da virgindade. Justificar o casamento unicamente "para a procriação" também pode justificar a poligamia "por função". A estrutura em que o tema é abordado ainda não utiliza as distinções que se tornariam decisivas a partir do século XIII. Em vez disso, prevalece o ensinamento de Agostinho, que não coloca a castidade virginal acima da continência conjugal: "a virgindade da mente é melhor do que a da carne".

2.2. O muito citado De bono coniugali

A obra De bono coniugali, de Agostinho, estabelece a perspectiva que inspirou profundamente toda a reflexão medieval e que distingue cuidadosamente os diferentes graus do "bem conjugal". O fato de o matrimônio ser um "bem" depende da presença, nele, do bem dos filhos (proles), do bem da fidelidade (fides) e do bem do vínculo indissolúvel (sacramentum). A urgência de confirmar que o matrimônio pode ser considerado um "bem" levou Agostinho a investigar os diferentes "bens" e sua articulação diferenciada na história da salvação. Os bens do matrimônio encontram equilíbrios diferenciados na história: a pretensão de unificá-los a partir de uma perspectiva escatológica não significa negar seu desenvolvimento histórico e o necessário discernimento temporal e local. A correspondência entre os bens nem sempre e nem em todo lugar é a mesma, e há também "novos bens" que podem emergir da história e da cultura, como "sinais dos tempos".

3. Conclusão e perspectiva sinodal

No Relatório Sumário da primeira fase do Sínodo sobre a Sinodalidade, lê-se a seguinte proposição:

"O SECAM (Simpósio das Conferências Episcopais da África e Madagascar) é incentivado a promover o discernimento teológico e pastoral sobre o tema da poligamia e sobre o acompanhamento de pessoas em uniões poligâmicas que se aproximam da fé." (RdS 16, q)

Uma releitura histórica da tensão entre monogamia e poligamia permite-nos considerar vários aspetos da correlação atual, indo além das polarizações em que a elaboração racional e a fidelidade à tradição se tornam rígidas em formas institucionais e preconceitos argumentativos excessivamente simplistas:

(a) o discernimento dos tempos e das formas

Uma doutrina excessivamente unívoca não só deixa de respeitar a complexidade da tradição, como também as diversas formas de vida nos cinco continentes. O estabelecimento da monogamia baseia-se em argumentos e instituições diferenciados e diz respeito à relação entre "honra institucional" e "dignidade pessoal". Simplificar demais essa transição de forma precipitada levanta novas questões, tanto pessoais quanto institucionais.

(b) a aliança suspeita entre evidência e tradição

No momento em que se assume a "dignidade" dos indivíduos, a "sociedade da honra" declina. A forma patriarcal de "poligamia" e a forma liberal de "monogamia", contudo, não são absolutas. Existem formas liberais de poligamia (uniões livres) e monogamia patriarcal (a submissão da esposa ao marido). Proteger a "dignidade do casamento" e proteger a "dignidade do homem e da mulher" nem sempre fornecem caminhos comuns ou coerentes. A correlação entre a evolução da compreensão da instituição e a evolução da compreensão do homem e da mulher constitui um teste crucial para uma interpretação correta da doutrina da monogamia.

(c) a confusão entre tradições, formas históricas, formas institucionais e vícios

Uma solução drástica, avessa a qualquer diferenciação, tem memória curta e exige uma reinterpretação do casamento como instituição, lutando para acomodar lógicas complexas que não podem ser reduzidas a uma única lei gerida centralmente pela Igreja. Os diferentes modelos de compreensão aplicados à poligamia são altamente instrutivos: a articulação entre lógica natural, lógica civil e lógica eclesiástica (que hoje reaprendemos da Idade Média) pode permitir maior flexibilidade na concepção da relação entre "costumes", "instituições", "leis" e "revelação". Um paralelismo rígido e competitivo entre "direito civil" e "direito canônico" por vezes constitui uma regressão em relação ao potencial de discernimento eclesial que a tradição ainda pode ensinar.

(d) a dignidade dos sujeitos e a reinterpretação de sua natureza

Por fim, não se pode negar que toda a questão da "monogamia" depende de como pensamos a relação entre o casamento e a singularidade do sujeito (masculino e feminino) que o concebe. E aqui, sem dúvida, superar a primazia absoluta da procriação e compreender a "submissão" feminina transforma profundamente a questão, impondo uma gramática inesperada e uma nova sintaxe. Algumas evidências do passado já não o são, enquanto novas evidências surgem e se impõem, mesmo que ainda inimagináveis: uma correlação precisa entre tempo e espaço permitirá à Igreja uma "sabedoria matrimonial" de que a cultura comum ainda necessita. Contanto que a Igreja não caia na tentação de confundir monogamia com monocracia e/ou monotonia.

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