17 Outubro 2025
Sociólogo francês aponta: reduzida à eficiência, competição e performance, finalidade educativa perdeu o sentido. Leva jovens a frustração e alimenta a anomia – onde a lógica empresarial ocupa o vácuo. Como transformar a resistência em ofensiva?
Por que aprendemos o que aprendemos? E de que forma o discurso comum sobre a educação, ainda que de maneira instintiva, ecoa políticas econômicas dominantes, instaurando a lógica da competição de mercado até mesmo dentro do setor público?
Esse é um roteiro bem conhecido e frequentemente questionado por educadores. Aos poucos, a escola vai sendo colocada sob pressão por metas de desempenho e exigências de rentabilidade. Com isso, o clima escolar, ou seja, a forma como professores e demais profissionais da educação vivenciam o cotidiano da comunidade escolar, acaba sendo diretamente afetado.
“A escola deveria ser o lugar onde se formam cidadãos capazes de pensar e participar da vida coletiva — não apenas indivíduos treinados para o mercado.” A afirmação é do sociólogo francês Christian Laval, professor emérito da Universidade Paris-Nanterre, e sintetiza uma de suas principais críticas ao avanço do neoliberalismo na educação.
Reconhecido internacionalmente por seus estudos sobre o tema, Laval é autor de obras fundamentais como A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal e A escola não é uma empresa. Nessas publicações, ele analisa como a lógica da concorrência, da performance e da rentabilidade passou a moldar não apenas as políticas públicas, mas também a cultura escolar e a subjetividade dos indivíduos.
Em entrevista ao Porvir em São Paulo (SP), antes de participar do Seminário Educação Insurgente, promovido pela Escola da Árvore, em Brasília (DF), Laval reflete sobre os efeitos dessa racionalidade neoliberal na vida cotidiana de escolas e universidades, nas relações entre professores e alunos, e no próprio sentido de educar.
Para ele, o desafio contemporâneo está em recuperar o ideal de uma educação comum e democrática, capaz de promover a reflexão crítica e fortalecer a vida coletiva. “Quando a escola se torna uma empresa, perdemos de vista sua verdadeira missão: formar sujeitos livres e solidários.” Leia abaixo destaques da conversa.
A entrevista é Vinícios de Oliveira, publicada por Porvir, e reproduzida por Outras Palavras, 16-10-2025.
Eis a entrevista.
Como o neoliberalismo transcende a economia para impactar políticas educacionais e o cotidiano de escolas e universidades?
Para entender isso, é preciso começar dizendo que o que entendemos por neoliberalismo não é simplesmente uma política econômica particular, uma política monetária ou uma política de oferta. O neoliberalismo é, na verdade, muito mais uma lógica geral de governo da sociedade e dos indivíduos. Creio que este é o ponto fundamental.
Não se trata apenas de gerir as finanças, as contas públicas de outra forma, ou de favorecer apenas as empresas. É mais complicado. O neoliberalismo é a ideia de que toda a sociedade deve ser submetida a uma lógica de concorrência, a uma forma empresarial. É a ideia de que o mercado e a empresa são formas universais que devem ser aplicadas a todas as atividades e esferas institucionais.
Uma vez que compreendemos isso, podemos nos perguntar como essa lógica se aplica a diferentes setores como a saúde, a justiça e, claro, a educação. Concretamente, políticas neoliberais na educação promovem a concorrência entre os setores público e privado, e até mesmo dentro do setor público. A doutrina neoliberal supõe que a concorrência é um fator de eficiência e um estímulo que pressiona os profissionais a darem o melhor de si.
Poderia exemplificar?
Isso significa entrar em uma lógica de mercado, onde cada instituição de ensino deve se ver como uma unidade em um mercado educacional. Essa ideia tem efeitos diretos na organização interna: o diretor da escola se torna um “manager”, um chefe de empresa, e os professores são vistos como funcionários que devem seguir uma lógica de rentabilidade e performance.
Cria-se, então, uma lógica bizarra, especialmente no setor público. O serviço educacional, que a priori não é um serviço comercial, passa a ser tratado como se fosse. Introduzem-se critérios e ferramentas de avaliação que transformam a educação em uma “quase-mercadoria”. Ela não tem necessariamente um preço, como no setor privado, mas é tratada como uma mercadoria fictícia.
Isso altera todas as relações…?
Sim. Altera as relações entre professores e alunos, e entre professores e famílias, que passam a se ver como “consumidores” de escola ou “investidores” em educação. A própria linguagem da educação muda. Não se formam mais cidadãos ou seres humanos adultos; formam-se consumidores e investidores. A grande mudança é na mentalidade, na subjetividade.
O que se desenvolveu foi um utilitarismo profundo e generalizado, que afeta a relação dos alunos com o saber. Por que se aprende? Para obter um diploma. Por que obter um diploma? Para ter uma boa profissão e ganhar dinheiro. O saber se torna uma ferramenta econômica para alcançar uma posição social e renda, perdendo seu valor intrínseco e passando a ter apenas um valor instrumental.
Em diferentes contextos, o foco em métricas de eficiência e desempenho não está apenas gerando insegurança. Ele não estaria também esvaziando o debate sobre a própria finalidade democrática da escola?
Sim, você toca no ponto importante: para que educar? Qual é a finalidade da educação? Essa questão foi amplamente deixada de lado em favor de considerações sobre meios, eficiência e performance, o que é típico de uma lógica empresarial. A discussão se resume à relação entre “input” (investimento) e “output” (resultados), despolitizando a educação como se ela fosse apenas uma questão econômica.
Esquecemos pelo caminho que a finalidade educativa poderia ser a de construir uma sociedade democrática, com igualdade real e cidadãos capazes de participar da vida coletiva, deliberar e decidir. Esse ideal iluminista, republicano, de formar cidadãos com capacidade de reflexão e crítica, foi descartado para formar o que chamo de “homem econômico”, alguém feito essencialmente para a economia.
O que o “homem econômico” representa na educação?
Essa ideia gera uma profunda perda de sentido na educação. Para aqueles com vantagens sociais, o sistema funciona. Mas para as classes populares, a promessa de que a escola lhes trará uma posição melhor não se cumpre, devido à reprodução social. Isso cria uma frustração enorme e uma visão da democracia como algo sem sentido. Esse cenário favorece o que os sociólogos chamam de anomia (a perda de normas), gerando insegurança e delinquência.
A ideia de que a economia poderia dar sentido à educação é um fracasso. Em resposta a essa anomia, os setores mais autoritários, a extrema-direita, propõem o reforço da autoridade. Eles acreditam que, se a economia não é suficiente para dar sentido e integrar a todos, a solução é mais repressão e mais autoridade. É compreensível que, à economização da vida, se responda com uma politização autoritária, uma resposta que eu qualificaria como neofascista, tendência que vemos em todo o mundo.
Professor, seu livro sobre educação democrática fala em passar da crítica para uma “ofensiva da democracia”. Como podemos transformar a resistência em construção, criando alternativas concretas na educação e na sociedade?
O sentimento de ter que resistir a essa lógica mundial é algo universal entre os professores. Muitos resistem, seja de forma passiva, limitando os efeitos negativos das políticas neoliberais, ou de forma ativa, com mobilizações sociais e sindicais.
No entanto, a resistência por si só é insuficiente. Todos que resistem se perguntam: “O que podemos fazer? O que podemos propor?”. Não basta recusar; é preciso afirmar uma nova finalidade, uma nova organização para o ensino. É preciso uma refundação do ensino.
Quais os entraves para a refundação do ensino?
O que nos enfraquece e nos leva ao desespero é a falta de um objetivo claro. Perdemos o sentido do projeto: que educação construir? Como refundar a escola e a universidade?
É isso que busquei abordar com meu colega Francis Vergne no livro Educação democrática – A revolução escolar iminente (Editora Vozes, 272 páginas). Usamos a expressão do filósofo Jacques Derrida sobre fazer “propostas ofensivas”. É o que tentamos fazer neste livro.
Diante deste cenário, o senhor defende uma abordagem baseada em princípios como a liberdade de pensamento, produção da igualdade, cultura comum, pedagogia da cooperação e autogestão. Como podemos colocá-los em prática?
Tudo é e será muito difícil. Para compreendê-la, é preciso entender que nosso objetivo é tornar visível um sistema educacional coerente, fundamentado em uma abordagem sistêmica. Não se trata de melhorias pontuais, mas de conceber uma nova estrutura para a educação, alinhada a um propósito genuinamente democrático.Primeiramente, é necessário ter clareza sobre qual modelo de sociedade buscamos.
O que define uma sociedade democrática?
Em linhas gerais, uma sociedade democrática é aquela em que todos os indivíduos, em condições de igualdade, podem deliberar e participar das decisões que os afetam diretamente. O princípio fundamental da democracia é o autogoverno. A questão que se impõe é: como seria uma sociedade com um autogoverno mais desenvolvido?
Abraham Lincoln definiu a democracia como “o governo do povo, pelo povo e para o povo”. Essa é a base de tudo. Ao considerarmos essa premissa, percebemos que não vivemos, de fato, em uma sociedade plenamente democrática, pois estamos submetidos a decisões das quais não participamos. Portanto, o desafio central é construir uma sociedade democrática efetivamente fundada no autogoverno.
O projeto de se libertar da uniformização ocidental é um desafio enorme, especialmente quando modelos como o capitalismo e o Estado-nação já foram importados.
Em meu trabalho com Pierre Dardot (A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal, Boitempo Editorial, 416 páginas), argumentamos pela necessidade de uma pluralidade de mundos. A mudança não virá de cima. Acredito que são as dinâmicas sociais, as lutas e os movimentos de base, como os movimentos indígenas, que podem reinventar a sociedade a partir de traços originais.
Hoje, na França, isso faz muita falta. A formação de educadores é um desafio grave: há pouca ou nenhuma formação continuada. E, quando há, ela raramente se baseia na auto-organização docente. Acredito profundamente na ideia de que os professores devem poder se organizar por escola e por disciplina, para decidir juntos, em diálogo com universidades, pesquisadores e outros atores, o que é mais relevante ensinar.
Para mim, essa é a essência de uma escola democrática: educadores democráticos, com autonomia e responsabilidade coletivas.
Leia mais
- Anatomia do novo neoliberalismo. Artigo de Pierre Dardot e Christian Laval
- Universidades públicas em tempos neoliberais. Artigo de Graça Druck, João Carlos Salles e Roberto Leher
- “As universidades ainda lutam para se afirmar na sociedade brasileira”. Entrevista especial com Daniel Arruda Nascimento
- O grande risco da “Universidade Empreendedora”
- Universidade pra quê? Artigo de Paulo Martins
- Autonomia universitária e liberdade de cátedra nas instituições federais
- Kroton Educacional: ‘Em termos de educação pública nunca experimentamos um inimigo com uma força social tão concentrada como esse’
- “A desinformação sobre as Universidades Públicas é proposital e tem a intenção de justificar o discurso privatista”. Entrevista com Mônica Ribeiro
- Universidades ou fábricas?
- “Fature-se”: Ataque Privatizante à Universidade Pública
- Universidades federais devem captar recursos privados? Especialistas respondem
- Cortes e ataques às universidades públicas catalisam mobilização contra Bolsonaro
- Boa gestão universitária desligada do espírito acadêmico gera apenas burocracia e repressão intelectual. Entrevista especial com Roberto Romano
- “A sociedade não pode renunciar à universidade”, diz João Carlos Salles, ex-reitor da UFBA
- A “inteligência das mãos” e o papel da universidade hoje. Discurso do Papa Francisco
- "O mundo está perplexo com o desmonte da educação no Brasil", constata Miguel Nicolelis
- Quem são os sobre-educados, brasileiros com ensino superior que não encontram trabalho qualificado
- A educação superior em um mundo globalizado
- Que benefício a educação superior traz à sociedade?
- Da escola neoliberal à educação democrática. O papel da filosofia na revolução democrática da educação. Artigo de Christian Laval
- Do ethos ao business em tempos de “Future-se”. Revista IHU On-Line, Nº. 539
- Neoliberalismo: A “grande ideia” que engoliu o mundo
- "A alternativa ao neoliberalismo é... romper com o neoliberalismo!" Entrevista especial com Marcelo Carcanholo
- O Comum: um ensaio sobre a revolução no século 21
- “O imaginário de Estado-nação não é um imaginário alternativo ao neoliberalismo”. Entrevista com Christian Laval e Pierre Dardot
- Comuns, a racionalidade do Pós-Capitalismo
- Neoliberalismo: A “grande ideia” que engoliu o mundo
- “As instituições europeias criadas nos últimos dez anos tornam o neoliberalismo mais forte”. Entrevista com Costas Lapavitsas
- “Na reorganização do neoliberalismo, a extrema-direita apresentou um projeto. E as esquerdas?” Entrevista com Ricardo Antunes
- “Para se defender, o neoliberalismo faz a democracia se esgotar”. Entrevista com Grégoire Chamayou
- A nova equipe econômica e a continuidade do neoliberalismo. Entrevista especial com Marcelo Carcanholo
- Neoliberalismo, distopias e Bolsonaro presidente
- Militarismo com neoliberalismo, tragédia para a economia
- A polarização política, as paixões da sociedade e a disputa pelos rumos do neoliberalismo. Entrevista especial com Alana Moraes
- Apesar das desproporções, o Comum continua sendo a principal ameaça ao neoliberalismo, segundo Christian Laval
- 'Neoliberalismo está moribundo, mas não sabemos para onde vamos'. Entrevista com Luiz Gonzaga Belluzzo
- Neoliberalismo e pós-fascismo. Artigo de Jorge Alemán
- “O neoliberalismo é uma perversão da economia dominante”. Artigo de Dani Rodrick
- O neoliberalismo e sua falha fatal
- A subordinação da esquerda brasileira ao neoliberalismo e o abandono da Teoria da Dependência. Entrevista especial com Carlos Eduardo Martins
- Neoliberalismo: A “grande ideia” que engoliu o mundo
- "A alternativa ao neoliberalismo é... romper com o neoliberalismo!" Entrevista especial com Marcelo Carcanholo
- A morte anunciada (e nunca ocorrida) do neoliberalismo. Artigo de Roberto Esposito