“O Papa Leão XIV dirige ao mundo uma mensagem diretamente política com sua primeira exortação apostólica”. Artigo de François Oudinet e Frédéric-Marie Le Méhauté

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14 Outubro 2025

"O Papa reiteradamente apela a um empenho que não se limite a aliviar a pobreza, mas que busque eliminar suas causas. Por isso, nos passos do Papa Francisco, ele convida a delinear uma política com os pobres, que seja concebida a partir deles", escrevem François Oudinet Frédéric-Marie Le Méhauté, em artigo publicado por Le Monde, 11-10-2025. A tradução é de Luisa Rabolini.

François Oudinet é professor de teologia na Faculdade Loyola de Paris e capelão geral do Secours catholique (Caritas França)

Frédéric-Marie Le Méhauté é professor de teologia na Faculdade Loyola de Paris e ministro provincial dos Franciscanos da França-Bélgica.

Eis o artigo.

Em 4 de outubro, o Papa assinou o primeiro texto de seu pontificado, a exortação apostólica “Dilexi te”. Segundo os autores, esse texto critica as derivas do ultraliberalismo. Leão XIV adverte: “Se os homens políticos não ouvirem os pobres, a democracia se atrofia”.

Em 8 de maio, tornando-se Papa, Leão XIV teve que, como seus predecessores, assumir a longa e complexa história da Igreja Católica. A exortação apostólica Dilexi te (“Eu te amei”), publicada em 9 de outubro, é o texto inaugural de seu pontificado e indica como ele se insere nessa história.

Primeiro, a continuidade com o pontificado do Papa Francisco é evidente, pois Leão XIV completou um texto preparado por seu antecessor – o título afinal lembra aquele da quarta encíclica do papa argentino, Dilexit nos (“Ele nos amou”).

Acima de tudo, Leão XIV relê toda a história do cristianismo, desde a Bíblia hebraica até as últimas décadas, sob a ótica do cuidado reservado aos mais pobres. Encontramos grandes figuras inspiradoras – Agostinho de Hipona, Francisco de Assis – e muitos cristãos anônimos, “testemunhas de uma Igreja em saída dos caminhos já percorridos”.

Essa releitura tem um objetivo: o Papa convoca a Igreja Católica a se manter à altura de sua própria história, vivendo um real empenho prioritário ao lado dos mais pobres. A relação que o Papa mantém com a história que narra, na qual situa o empenho das mulheres como o dos homens, não é neutra: essa história, explica Leão, empenha a Igreja Católica. Tal convicção é apresentada como um percurso que tem duas maneiras de ver a vida e a fé, ambas fortemente criticadas várias vezes no texto.

De um lado, o ultraliberalismo, alvo de reflexões sobre a acumulação de riquezas, o culto ao sucesso individual ou a liberdade de mercado. Os argumentos do Papa não são tanto econômicos, mas antropológicos: ele denuncia crenças ilusórias como o "gotejamento" da riqueza e uma cegueira difícil de curar, como a que nos impede de nos alarmarmos com as desigualdades que se transformam em "desequilíbrios dramáticos". Encontramos, por exemplo, afirmações cortantes sobre o "crescimento de algumas elites ricas, que vivem numa bolha de condições demasiado confortáveis e luxuosas, quase num mundo à parte em relação às pessoas comuns".

Por outro lado, Leão XIV distancia-se de uma concepção privatizada da fé cristã, limitada à oração e ao testemunho. A força de suas afirmações não reside apenas no chamado ao fato de que o amor e a justiça são inseparáveis da fé: reside ainda mais na reiterada declaração de incoerência de uma vida espiritual ou eclesial que ignora as necessidades concretas dos pobres. O Papa escreve, por exemplo: “o amor aos pobres (...) é a garantia evangélica de uma Igreja fiel ao coração de Deus. Efetivamente, toda a renovação eclesial sempre teve entre as suas prioridades essa atenção preferencial pelos pobres”.

Essa dupla denúncia é necessária para compreender a leitura otimista que Leão XIV propõe da história do cristianismo. Ele não evoca as trágicas hesitações dos cristãos diante da escravidão ou da colonização, nem a realidade atual de diversas paróquias excessivamente homogêneas no plano social, pois valoriza a razão de ser da Igreja: ela “realiza sua vocação mais profunda: amar o Senhor onde Ele está mais desfigurado”.

No entanto, sua releitura da história não isola a Igreja Católica de seu contexto, pelo contrário: o novo Papa dirige uma mensagem diretamente política ao mundo. “A condição dos pobres representa um grito que, na história da humanidade, interpela constantemente a nossa vida, as nossas sociedades, os sistemas políticos e econômicos e, sobretudo, a Igreja”.

Por isso, o Papa reiteradamente apela a um empenho que não se limite a aliviar a pobreza, mas que busque eliminar suas causas. Por isso, nos passos do Papa Francisco, ele convida a delinear uma política com os pobres, que seja concebida a partir deles; com realismo, ele observa que isso requer uma escuta real das pessoas que conhecem a precariedade de parte dos políticos e dos profissionais da assistência social — e das instituições eclesiais. "Se políticos e profissionais não os ouvirem (os pobres), a democracia se atrofia, torna-se um nominalismo, uma formalidade, perde representatividade e vai se desencantando de seu destino."

A dimensão política também está presente quando o Papa recorda a necessidade de os Estados controlarem as trocas econômicas, para evitar que ocorram apenas em benefício de "uma minoria feliz". Os termos se tornam mais severos em relação às políticas de austeridade: "Torna-se normal ignorar os pobres e viver como se eles não existissem. Apresenta-se como uma escolha razoável organizar a economia exigindo sacrifícios ao povo, para atingir certos objetivos que interessam aos poderosos".

Aqui, então, ele convida as comunidades católicas e os teólogos a saírem de uma certa indiferença em relação à política, a unirem suas palavras às vozes dos mais vulneráveis e a fazerem ressoar a questão central colocada por Leão XIV: “Os mais fracos não têm a nossa mesma dignidade? Aqueles que nasceram com menos possibilidades valem menos como seres humanos e devem limitar-se apenas a sobreviver? A resposta que damos a essas perguntas determina o valor das nossas sociedades e dela também depende o nosso futuro”.

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