22 Mai 2025
O Senado Federal pautou para esta quarta-feira, 21, o Projeto de Lei 2.159/2021, apelidado por organizações socioambientais de “PL da Devastação” ou “mãe de todas as boiadas”. A proposta teve pareceres aprovados na terça-feira, 20, nas Comissões de Meio Ambiente (CMA) e de Agricultura e Reforma Agrária (CRA) da Casa, e representa o maior desmonte já proposto ao licenciamento ambiental no Brasil. O açodamento, no entanto, promove insegurança jurídica e promete judicialização no Supremo Tribunal Federal (STF).
A reportagem é de Marcelo Menna Barreto, publicada por ExtraClasse, 21-05-2024.
Não é para menos. Ambientalistas e advogados deixam claro que a pauta, sequestrada pela bancada ruralista ainda na Câmara dos Deputados, desarticula salvaguardas legais e abre brechas para um avanço descontrolado de empreendimentos de alto impacto, como exploração de petróleo, mineração e desmatamento. Na câmara alta do Congresso Nacional, a proposição foi relatada pela senadora Tereza Cristina (PP/MS), na CRA, e pelo senador Confúcio Moura (MDB-RO), na CMA. O texto ainda avança com o apoio direto do presidente do Senado, Davi Alcolumbre (União Brasil-AP), mas tem sido duramente criticado por especialistas e entidades ambientais. A principal mudança proposta é a instituição do autolicenciamento. Assim, em vez de estudos prévios e avaliação técnica, o empreendedor poderá simplesmente preencher um formulário pela internet e declarar que sua atividade não oferece risco, sem necessidade de fiscalização prévia.
Mal iniciou a sessão plenária deliberativa, Alcolumbre já apresentou uma emenda ao PL durante o processo de votação no plenário. Ela determina a liberação de licenciamento de forma generalizada para todos os empreendimentos que forem considerados politicamente relevantes. “Não existe essa modalidade esse tipo de licença! Ele está criando”, fala Suely ao acentuar o absurdo que ocorre na tramitação da PL 2.159/2021. Leia na íntegra.
Nota técnica publicada pelo Observatório do Clima (OC), no último dia 16, detalha os impactos devastadores do PL 2.159/2021. O documento aponta que o projeto “mantém os principais retrocessos do texto aprovado em 2021 pela Câmara dos Deputados” e alerta que a flexibilização das licenças, a isenção de estudos e o enfraquecimento da fiscalização criam um cenário propício para tragédias ambientais e conflitos sociais. “É um pacote de retrocessos que ignora os alertas da ciência, omite completamente a questão climática e rompe com direitos constitucionais dos povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais”, diz a nota técnica da OC, que contém 119 páginas.
Segundo a análise, o PL dispensa o licenciamento para diversas atividades agropecuárias, fragmenta a competência dos órgãos ambientais entre estados e municípios, desvincula a outorga de uso da água do licenciamento e permite o avanço de empreendimentos mesmo em regiões de grande fragilidade ambiental.
Tudo isso sem a participação das autoridades competentes, quando os territórios não estiverem formalmente homologados. Isso, por exemplo, alcança diretamente mais de 95% dos territórios quilombolas e 40% das terras indígenas do país.
Para Gabriela Nepomuceno, porta-voz do Greenpeace Brasil, “estamos às vésperas de sediar a COP30, mas o Senado quer empurrar goela abaixo um projeto que ignora a crise climática. É um escárnio. O Brasil corre o risco de chegar à conferência com as mãos sujas de lama e petróleo”, exclama.
Outros especialistas alertam para as implicações irreversíveis. Suely Araújo, do Observatório do Clima, denuncia que o PL “implodirá o licenciamento ambiental e institucionalizará a irresponsabilidade”. Alice Dandara, advogada do Instituto Socioambiental (ISA), vai além: “O projeto legaliza o racismo ambiental, ao permitir a exclusão das comunidades mais vulneráveis do processo decisório”, aponta.
A medida ainda representa uma ameaça direta à segurança hídrica. Como descreve Malu Ribeiro, da SOS Mata Atlântica, o projeto “desvincula a gestão da água da análise ambiental, facilitando a degradação e aumentando o risco de conflitos”. Letícia Camargo, do Painel Mar, ressalta que o PL “compromete a proteção do oceano e dos territórios costeiros, em um momento em que o mundo busca justamente reforçar o papel dos oceanos na agenda climática”.
A aprovação do PL 2.159/2021 pode colocar o Brasil na contramão dos compromissos climáticos internacionais e destruir o legado de décadas de construção de políticas públicas ambientais.
Para o especialista Marcos Woortmann, do Instituto Democracia e Sustentabilidade (IDS), a consequência pode ser catastrófica: “Estamos falando em romper o ponto de não retorno da Amazônia, com impacto direto no regime de chuvas, na geração de energia e na produção de alimentos em toda a América do Sul”, assevera.
Críticos do projeto denunciam um cenário ainda mais grave, agravado pelo atropelo regimental. Para eles, o PL 2.159/2021 foi relatado simultaneamente por duas comissões com o objetivo de acelerar sua aprovação antes que a comunidade internacional perceba a dimensão do retrocesso.
A manobra, com a aprovação célere, cumpriu seus propósitos. Com o presidente do Senado abençoando a matéria, o texto segue imediatamente para votação em plenário nesta quarta-feira.
Na opinião corrente, Alcolumbre e a bancada ruralista apostam na falta de agilidade de uma mobilização da sociedade civil, que seria crucial para tentar impedir o maior ataque já promovido à política ambiental brasileira.
No meio disso tudo, Suely Araújo diz ter visto um governo “silente”, mesmo com o Ministério do Meio Ambiente fazendo críticas “há um tempo”.
Para a integrante do OC, recentemente circulou um documento em que o governo expôs suas preocupações. “Duro é que eles (governo) não têm chance, não têm força para segurar”, acredita Suely.
“Pelo visto, vai ser tratorado (no plenário do Senado). Retorna para a Câmara só aquilo que foi alterado, mas o que temos de evidência é que vão aprovar essa coisa e a gente vai ter que judicializar”, declara ela, que não tem dúvidas: “O texto é carregado de inconstitucionalidades, tem problemas jurídicos em vários dispositivos e, no lugar de segurança jurídica, que eles dizem estar defendendo, haverá muita insegurança jurídica”, arremata.
Suely Araújo acompanha de perto a tramitação do PL 2.159/2021 desde sua gênese. Segundo ela, a proposta de uma lei geral de licenciamento ambiental — hoje sequestrada pela bancada ruralista — teve origem no campo dos ambientalistas.
O projeto surgiu como uma demanda dos ambientalistas. O primeiro esforço veio em 1988, lembra ela, com o então deputado Fábio Feldmann (PMDB/SP), um dos fundadores da SOS Mata Atlântica. Ele buscava regulamentar o Estudo Prévio de Impacto Ambiental previsto no artigo 225 da Constituição.
Anos depois, em 2004, o então deputado Luciano Zica (PT/SP), ligado à pauta ambiental, retomou a proposta. “Era um parlamentar muito especializado na área, chegou a ser secretário no Ministério do Meio Ambiente”, registra Suely.
Se o projeto de licenciamento ambiental de Fábio Feldmann iniciou com a ideia de organizar e dar segurança jurídica ao tema, ele acabou engavetado e arquivado após passar por comissões.
Com a retomada da pauta em 2004 por Zica, surgiram diversas propostas. Ao todo, 20 projetos que tratavam do mesmo tema foram anexados uns aos outros para tramitação conjunta no Congresso Nacional.
Com o tempo, os textos se afastaram das diretrizes originais. “Foi, ao longo dos anos, sempre ficando pior”, lembra Suely, que viu o ponto de virada derradeiro com o parecer do deputado Neri Geller (PP/MT).
O conteúdo aprovado pela Câmara e chancelado pelos relatores do Senado estabelece que empreendimentos como melhorias de infraestrutura pré-existente possam ficar dispensados de licença.
“Isso pode incluir desde um bueiro numa rodovia até o asfaltamento da BR-319. No setor do agronegócio, as exceções são ainda maiores. Quase nada do agro exige licença. Só há exigência para pecuária intensiva de médio e grande porte. O resto não tem licença. Basta estar no CAR (Cadastro Ambiental Rural), que é um instrumento declaratório — mesmo com o CAR não homologado —, que está dispensado”, ironiza a integrante do OC.
Suely alerta para os riscos da chamada Licença por Adesão e Compromisso (LAC). “É a única modalidade em que você nem entrega estudo ambiental. Apenas descreve o empreendimento, aperta o botão e a licença sai impressa”, critica.
Para Suely, não resta dúvida sobre quem assumiu o comando do processo. “Hoje, quem está capitaneando é a bancada ruralista: a Frente Parlamentar da Agropecuária e suas entidades de apoio, como o Instituto Pensar Agro. A Confederação Nacional da Indústria e outras entidades estão indo de carona, na minha leitura pessoal. Quem está capitaneando é o agro. O fiador dessa proposta é a bancada ruralista”, conclui.
Antes de chegar ao Senado, o texto tramitou por 17 anos na Câmara dos Deputados, onde foi aprovado em 2021. No Senado, a matéria vinha sendo analisada ao mesmo tempo na CMA e na CRA, onde seus relatores foram, respectivamente, Confúcio Moura (MDB-RO) e Tereza Cristina (PP-MS).
É pelo licenciamento ambiental que o poder público autoriza a instalação, ampliação e operação de empreendimentos que utilizam recursos naturais ou podem causar impacto ao meio ambiente. Alguns exemplos incluem a construção e ampliação de rodovias, aeroportos, indústrias têxteis, metalúrgicas, e de papel e celulose, além de postos de gasolina, hidrelétricas e empreendimentos turísticos e urbanísticos, como hotéis e loteamentos, entre outros.
Uma das principais emendas acatadas pelo relatório foi a do ex-senador Luiz Carlos do Carmo (GO), que inclui no projeto as atividades de mineração de grande porte ou de alto risco. O texto aprovado anteriormente na Câmara dos Deputados havia retirado essas atividades do âmbito de aplicação da lei, remetendo esse licenciamento apenas às disposições do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), até que fosse promulgada lei específica.
Os senadores mantiveram a redação da Câmara no que se refere à isenção de licenciamento ambiental nos empreendimentos agropecuários para cultivo de espécies de interesse agrícola, além de pecuária extensiva, semi-intensiva e intensiva de pequeno porte.
“Entendemos que as atividades agropecuárias, no tocante à supressão de vegetação nativa e regulamentos do CAR [Cadastro Ambiental Rural], já são muito bem reguladas pelo Código Florestal, sendo desnecessário imputar ao produtor rural um ônus adicional”, argumentou Confúcio no relatório.
Uma das grandes inovações do relatório, em relação ao texto da Câmara, é a restrição das atividades dispensadas de licenciamento. Inicialmente, a Câmara dispensava 13 tipos de atividades ou empreendimentos.
Os relatores, no entanto, mantiveram a dispensa de licenciamento somente para atividades que não oferecem risco ambiental ou para atividades que precisam ser executadas por questão de soberania nacional ou de calamidade pública.
São elas:
De acordo com o texto, haverá exigência de licenciamento para obras de serviço público de distribuição de energia elétrica até o nível de tensão de 69 Kv; sistemas e estações de tratamento de água e de esgoto sanitário; além de locais referentes a depósito e reciclagem de resíduos sólidos, como pontos de logística reversa, de triagem, pátios, de compostagem, de resíduos de construção e ecopontos.
A proposta prevê que a Licença Ambiental por Adesão e Compromisso (LAC) será simplificada e expedida mediante uma espécie de autodeclaração de adesão e compromisso do empreendedor, com os requisitos preestabelecidos pela autoridade licenciadora.
O projeto libera a LAC para a maior parte dos empreendimentos no Brasil, pois esta será válida, de acordo com o texto, aos licenciamentos em geral, com exceção daqueles de alto impacto no meio ambiente.
O texto da Câmara previa que a única condição para a LAC é a atividade ou o empreendimento não ser potencialmente causador de significativa degradação do meio ambiente. No Senado, emendas de Jaques Wagner (PT-BA), Randolfe Rodrigues (PT-AP) e Eliziane Gama (PSD-MA), que foram parcialmente acatadas, definem que a LAC só será permitida para empreendimentos considerados de pequeno ou médio porte e baixo ou médio potencial poluidor — e nos quais a entidade licenciadora não tiver identificado fragilidade ambiental.
Entre as demais exigências previstas para a LAC estão o prévio conhecimento das características gerais da região da implantação; das condições de instalação e de operação da atividade; e dos impactos ambientais.
O texto não autoriza a LAC se houver desmatamento de vegetação nativa, pois isso necessita de autorização específica. Será necessário também juntar o Relatório de Caracterização do Empreendimento (RCE). Foi acrescida emenda de relator que define o prazo mínimo de cinco anos e máximo de dez anos para a LAC, consideradas as informações prestadas no RCE.
O texto da Câmara permitia a renovação automática das licenças ambientais para qualquer tipo de licença ou empreendimento, independentemente de análise por parte da entidade licenciadora, com uma espécie de autodeclaração do empreendedor. Mas os relatores no Senado acataram parcialmente a emenda do ex-senador Jean-Paul Prates (RN) para que a renovação automática seja restrita à atividade considerada pelo ente federativo como de baixo ou médio potencial poluidor e pequeno ou médio porte que apresente relatório de cumprimento das condicionantes do contrato.
O texto em tramitação no Senado prevê que a renovação automática só ocorrerá se não houver alteração nas características e no porte do empreendimento, se não tiver ocorrido alteração na legislação ambiental aplicável e se forem cumpridas as condicionantes da licença, mediante apresentação de relatório assinado por profissional da área.
“Entendemos que a renovação automática é um importante instrumento desburocratizante do licenciamento ambiental, que é almejado por toda a sociedade. Contudo, compreendemos que ela não pode ser aplicada a empreendimentos de maior complexidade e de grande impacto ambiental”, alegou Confúcio.
Emenda do senador Paulo Paim (PT-RS) foi parcialmente acatada para que alterações na operação da atividade que não tenham impacto ambiental negativo avaliado nas etapas anteriores do licenciamento sejam comunicadas com antecedência mínima de 30 dias à autoridade licenciadora. Depois desse prazo, se não houver manifestação do órgão público, será considerado que a autorização foi concedida.
Foram acatadas ainda, parcialmente, emendas dos ex-senadores Jorginho Mello e Jean Paul Prates que tratam da habilitação profissional da equipe responsável pelos estudos ambientais.
Uma delas exige que a equipe seja composta por profissionais em situação de regularidade nos respectivos conselhos de fiscalização de sua profissão, quando for o caso, para que possam ser feitas as devidas anotações de responsabilidade técnica (ART). Outra exige a habilitação da equipe técnica responsável pelos estudos ambientais nas áreas em que atuará, além de excluir da proposição a previsão de histórico negativo de fraudes e rejeições de estudos.
Atualmente, a Lei 9.605, de 1998, estabelece que o crime de construir ou reformar obras ou serviços poluidores sem licença ambiental gera pena de prisão de um a seis meses. Os senadores estenderam a pena para seis meses a dois anos ou multa, ou ambas cumulativamente. De acordo com o projeto, essa pena será aumentada até o dobro se o licenciamento da atividade ou do empreendimento for sujeito ao Estudo Prévio de Impacto Ambiental.
Em complementação de voto na última terça-feira, 20, Confúcio Moura acatou emendas dos senadores Luis Carlos Heinze (PP-RS) e Mecias de Jesus (Republicanos-RR) para simplificar o licenciamento relativo a projetos relacionados à segurança energética nacional.
O relator também acatou duas emendas do senador Jayme Campos (União-MT) que alteram a Lei da Mata Atlântica e a Lei Complementar 140, de 2011, para que não haja conflito sobre qual ente federativo deverá ser o responsável pelo licenciamento ou pela autorização de desmatamento de terras em fronteiras entre estados e municípios.
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