29 Abril 2025
"A Igreja perde quando se transforma em trincheira ideológica. Ela vence quando volta ao essencial: Cristo como centro, a cruz como critério, e o amor como método. Fora disso, resta apenas o ruído das facções — e nenhuma delas salvará a fé", escreve Gutierres Fernandes Siqueira.
Gutierres Fernandes Siqueira é jornalista, escritor e autor do livro “Igreja polarizada: como a guerra cultural ameaça destruir nossa fé” (Editora Mundo Cristão).
A polarização política da sociedade contemporânea não respeita fronteiras — nem mesmo as da Igreja Católica. A cada novo Conclave, a imprensa especula se o próximo papa será “conservador” ou “progressista”. Essa expectativa, longe de ser infundada, reflete uma divisão real entre os cardeais e dentro do próprio catolicismo global. Mas por que uma instituição milenar, cuja vocação é a unidade, continua sendo atravessada por tensões que parecem pertencer à era das redes sociais?
A resposta passa por reconhecer que, dentro da tradição cristã, conservadorismo e progressismo muitas vezes operam como verdadeiras "seitas". No passado, "seita" era uma forma de nomear "partidos". Cada um desses polos se apega a aspectos legítimos da fé — tradição e renovação — mas os absolutiza, transformando-os em ídolos. O conservadorismo tende a sacralizar costumes herdados, confundindo o eterno com o que foi historicamente produzido em solo europeu. Já o progressismo, na ânsia de atualizar a fé, corre o risco de dissolvê-la, relativizando seus fundamentos em nome da adaptação cultural — transformando uma fé viva em mera ética humanista.
Essas disputas não são novas. Desde os primeiros séculos do cristianismo, a Igreja tem convivido com tensões entre permanência e mudança. A tradição cristã nunca foi homogênea; sempre abrigou debates legítimos sobre como viver, interpretar e anunciar o Evangelho. O problema não está na divergência, mas na incapacidade de dialogar com maturidade e de submeter o próprio ponto de vista à verdade revelada.
No século XX, o Concílio Vaticano II foi um marco de abertura e diálogo com o mundo moderno. Mas sua recepção foi desigual. Alguns o viram como um novo Pentecostes — um refresco de ideias e posturas —, enquanto outros o consideraram o início de uma crise de identidade. Desde então, a Igreja vive um processo de fragmentação interpretativa. A crise de autoridade — acentuada pelos escândalos morais e pela ascensão das mídias digitais — ampliou essa fragmentação. Em vez de um único magistério, hoje há “magistérios paralelos”: youtubers, redes sociais e influenciadores que formam verdadeiras bolhas teológicas.
Além disso, a polarização externa — cultural, política e ideológica — foi importada para dentro da Igreja. O que deveria ser espaço de comunhão tornou-se arena de disputa. Há quem veja o papa como traidor; outros, como salvador — conforme o viés ideológico.
No entanto, é preciso lembrar: unidade não é uniformidade. A catolicidade da Igreja pressupõe uma pluralidade reconciliada, não um pensamento único. O desafio é conviver com tensões sem romper a comunhão. É reconhecer que o corpo de Cristo abriga diferentes vocações, culturas e ênfases teológicas. A tradição não deve ser museu, nem a renovação, iconoclastia. Ambas exigem discernimento espiritual nascido da humildade diante do Cristo vivo.
A Igreja perde quando se transforma em trincheira ideológica. Ela vence quando volta ao essencial: Cristo como centro, a cruz como critério, e o amor como método. Fora disso, resta apenas o ruído das facções — e nenhuma delas salvará a fé.