06 Abril 2019
“Esta Igreja, em que a instituição eclesiástica não soube discernir no advento da modernidade um grande sinal dos tempos, está com graves problemas, justamente por não ter dialogado com a modernidade, para discernir outros sinais dos tempos e se somar à ação de Deus na história. Neste contexto, a hierarquia e também os pais e mães de família, agentes pastorais e catequistas têm hoje uma enorme dificuldade para transmitir a fé às gerações seguintes”, escreve Jorge Costadoat, teólogo, jesuíta, em artigo publicado por Reflexión y Liberación, 04-04-2019. A tradução é do Cepat.
A crise dos abusos sexuais do clero e de seu acobertamento não tem precedentes na história da Igreja e, provavelmente, será recordada como a maior catástrofe depois das Guerras de religião do século XVI, e quem sabe se depois do próprio cisma de Lutero.
Assim como estas rupturas, a atual crise abarca muitos aspectos: Há vítimas que foram crentes que deixaram de acreditar ou que, ao contrário, sua própria fé as levou para frente. Há perpetradores que foram principalmente sacerdotes que causaram danos devastadores para muita gente. Há uma instituição eclesiástica que, para se defender das acusações que lhe são feitas, fez de tudo para ocultar verdadeiros crimes e reage com enorme lentidão para abordar o problema com a seriedade que se requer. Há também uma sociedade estremecida que não deseja jamais que o clero lhe fale de sexo e que dificilmente reconhecerá autoridade à hierarquia católica para que se refira a outros temas.
A crise da Igreja, no entanto, deve ser vista como uma guinada triste de mudanças culturais extraordinariamente positivas para os vulneráveis e, em particular, para as crianças e as mulheres. Nossa sociedade está em um processo de “conversão” ao próximo que deve ser considerado como um importantíssimo crescimento em humanidade. Estamos diante de uma nova explicitação da convicção da inviolabilidade da pessoa humana.
No entanto, para entender esta grande crise é preciso ir mais longe ou se aprofundar em outros assuntos. Por certo, esta é uma crise de toda a Igreja, ou seja, da institucionalidade e das pessoas. A instituição eclesiástica, já há séculos, teve grandes dificuldades para processar as conquistas da modernidade. Esta, em meu parecer, é a principal causa da crise eclesial atual. A própria Igreja não fez caso de sua condenação ao fideísmo (Concílio Vaticano I, 1870), heresia que em termos populares pode a identificar com “a fé do carvoeiro”. A hierarquia não pôde, nem quis integrar fé e razão, fé e ciência, e fé e cultura.
Tomemos dois exemplos: A institucionalidade na Igreja é a de uma monarquia absoluta ao modo das monarquias bourbons. É governada por um Papa eleito em vida. Ele próprio tem o poder de nomear a todos os bispos do mundo e pedir conta de seus atos a 1,2 bilhão de católicos. A estrutura institucional sabe pouco de divisão, de repartição e de controle de poderes, de transparências e de accountability. Um camponês católico da zona de San Fernando me dizia, há pouco, perplexo diante do desempenho do clero: “Não se responsabilizam por nada”.
O caso chileno é ilustrativo. Francisco repreende desafortunadamente os osorninos por não aceitarem a nomeação do bispo Barros. Depois, pede perdão às vítimas por suas palavras talhantes em Iquique [Chile]. Em correção seguida, em razão da gravidade da situação e dos muitos problemas, Francisco chama a Roma os 31 bispos da Conferência Episcopal, pede a renúncia de todos igualmente e os devolve ao país completamente desautorizados. Os bispos partiram humilhados e voltarem humilhados. Na Catedral, Francisco lhes havia advertido contra o flagelo do “clericalismo”. Mas, o Comitê Permanente dos bispos não havia pedido ao Papa que não nomeasse a Barros?
Um segundo exemplo é de ordem doutrinal. O caso da proibição do uso de meios artificiais de anticoncepção, há 50 anos atrás, com a encíclica Humanae vitae (1968) é tão emblemático como a condenação a Galileu. O estamento eclesiástico patriarcal e androcêntrico condenou as mulheres a ir, em nome da fé católica, contra sua razão e seu sentido de responsabilidade. Para as católicas que não fugiram em debandada da Igreja, esta as convida a confessar regularmente o pecado de usar a “pílula”. Resultado: Há muito tempo que a instituição eclesiástica não tem competência reconhecida para ensinar em matérias de sexualidade, mas parece não se dar conta.
Em seu momento, Paulo VI fez uma importante tentativa de diálogo com a modernidade. Formou comissões para abordar o tema da contracepção. Delas participaram cardeais, bispos, padres, teólogos, mas também leigos e leigas, especialistas em temas de família e demografia. O Papa, no entanto, considerou o voto da minoria, que refletia a opinião dos varões celibatários, entre estes o muito influente João Paulo II.
Em nosso caso chileno, então, com que autoridade os bispos podem se opor à lei que permite o aborto em três causas, se eles próprios, forçados pela encíclica, precisaram ensinar às mães que devem ter tantos filhos quanto Deus queira lhes mandar? Nossa hierarquia eclesiástica – é inevitável recordar – se opôs à lei de filiação das crianças nascidas fora do matrimônio, às diretrizes do MINEDUC sobre a educação sexual nas escolas e colégios (JOCAS), à lei do matrimônio civil que torna possível o divórcio, à lei do acordo de vida em casal e à possibilidade de distribuir preservativos para impedir a propagação da SIDA.
A doutrina da Humanae vitae, que restringe a legitimidade dos atos sexuais àqueles abertos à procriação, como é de imaginar, tem amarrado os pés e as mãos do próprio magistério no momento de dizer uma palavra orientadora aos jovens que se relacionam antes de se casar e às pessoas homossexuais.
Nestas circunstâncias, que autoridade um sacerdote celibatário, que já não espera que valorizem seu voto de castidade, pode ter hoje? Um sacerdote a quem a doutrina da Igreja não convence nem a ele próprio? E que não sabe se relacionar com os leigos e as comunidades, a não ser de um modo autoritário?
Esta Igreja, em que a instituição eclesiástica não soube discernir no advento da modernidade um grande sinal dos tempos, está com graves problemas, justamente por não ter dialogado com a modernidade, para discernir outros sinais dos tempos e se somar à ação de Deus na história. Neste contexto, a hierarquia e também os pais e mães de família, agentes pastorais e catequistas têm hoje uma enorme dificuldade para transmitir a fé às gerações seguintes.
Como resultado desta grave desconexão das autoridades eclesiásticas com a época, a Igreja sofre uma profunda falta de comunicação entre seus dirigentes e os batizados e batizadas. Como consequência de mudanças culturais múltiplas, imprevisíveis, globais e cada vez mais aceleradas, os católicos vivem em duas velocidades: a da cultura(s) atual e a de uma tradição traída pelo tradicionalismo de líderes representantes de um fideísmo institucionalizado. Os leigos, e inclusive muitos sacerdotes, anseiam um catolicismo de adultos, diria Kant. Se a hierarquia eclesiástica não começar a aprender do esforço dos fiéis em integrar fé e razão, se não basear seu ensinamento nesta experiência espiritual, a melhor coisa que os católicos podem fazer é não lhe considerar. O fideísmo é um erro que provoca dano.
À frente, os católicos poderão avançar sozinhos com sua fé e seu sentido comum. Mas eles, e também os sacerdotes, devem reconhecer que seu cristianismo, por causa do atrofiamento do catolicismo romano, não tem entusiasmo, nem convicção, nem ideias, nem perseguições, nem mártires. Sendo assim as coisas, o que fará a Igreja católica ocidental e chilena para examinar, tão fragilizada como está, um dos maiores sinais dos tempos na história da humanidade? Esta enfrenta a possibilidade der desaparecer. O panorama do desastre ecológico é assustador. Hoje, nada torna mais necessária a Igreja que o desafio da sobrevivência de um planeta que, para os cristãos, é criação de Deus. Mas, poderá a Igreja se repor e aceitar este desafio?
Parece-me que são duas as condições que tornariam isso possível: Primeiro, que acabe de desmoronar esta figura de Igreja monárquica impedida de processar as mudanças da vida humana, regida por sacerdotes celibatários, incapaz de se reformar a si mesma, ao menos na velocidade que se requer. E, segundo, que novas gerações de cristãos redescubram o Deus de Jesus, que entendeu que o poder é para servir, que ensinou que o grande se encontra no pequeno e que a fé autêntica coabita com a razão.
Entretanto, sempre é possível o fundamental: viver o Evangelho no presente. Os cristãos podem, em tais momentos, imaginar um mundo distinto e o construir com um amor inteligente. De momento, a pirâmide eclesiástica lhes ajudará pouco ou nada. Contudo, isto não pode ser uma desculpa. Sempre é possível viver sub specie aeternitatis. Tampouco o panorama do cataclismo socioambiental pode lhes impedir de amar com lucidez e esperar contra o pior dos prognósticos.
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A profundidade da crise da Igreja - Instituto Humanitas Unisinos - IHU