10 Abril 2025
"A irracionalidade econômica ocidental que submete a realidade aos critérios da produção de mercadorias e de lucros é, constitutiva e inconscientemente, consequência da inabalável hegemonia do pensamento analítico aristotélico, tanto na física quanto nos princípios que regulam a vida social e a política. E também as teologias", escreve Flavio Lazzarin, padre italiano fidei donum que atua na Diocese de Coroatá, no Maranhão, e agente da Comissão Pastoral da Terra (CPT).
Nunca tive mapas que me orientassem no mundo da física. Nunca me empenhei para estuda-la e continuo incapaz de entender a linguagem das ciências. Sempre tive sérios problemas com matemática. Em suma, não posso esconder minha ignorância e incompetência.
Mas, há um "mas", porque, cerca de trinta anos atrás, não soube resistir à sedução de alguns aspectos da divulgação da física quântica, que me provocaram do ponto de vista filosófico. E, hoje, um amigo, que entende das coisas, despertou reflexões arquivadas, mas não totalmente esquecidas, na memória [i]. Ele me fala sobre as características revolucionárias da física quântica, frisando os seus possíveis impactos conflitivos com a visão cosmológica, religiosa e política, que domina o mundo. E me revela também a convicção de que a quântica constituiria uma renovação radical da espiritualidade.
A irracionalidade econômica ocidental que submete a realidade aos critérios da produção de mercadorias e de lucros é, constitutiva e inconscientemente, consequência da inabalável hegemonia do pensamento analítico aristotélico, tanto na física quanto nos princípios que regulam a vida social e a política. E também as teologias.
Condicionados pela analítica aristotélica, uma vez introjetado o princípio da identidade e da não contradição, analisamos separadamente cada objeto de nossa experiência, fragmentando a realidade em uma miríade de objetos únicos, inertes e isolados.
Pelo contrário, o paradigma quântico, a partir da observação, mostra que átomos e partículas subatômicas não correspondem de forma alguma a objetos que, de acordo com a análise, possuiriam propriedades intrínsecas sem qualquer dependência de sua relação com o contexto. Os átomos, prótons, elétrons, todas as partículas subatômicas, não são sujeitos identitários fixos e incontaminados, mas energia em permanente movimento e comunicação.
Isto simplesmente redefine a matéria como energia.
Esta, em última análise, é incontestavelmente uma redefinição do cosmo, não a partir de especulações e teorias, mas a partir da observação do mundo sensível.
O que continua acontecendo, porém, é que a funcionalidade técnica e econômica, isto é o próprio capitalismo, continua se programando aristotelicamente e, enquanto utiliza tecnologicamente algumas inspirações quânticas, rejeita radicalmente a boa nova da física quântica, que escancara a falsidade científica e política do Ocidente.
Uma civilização a nossa, que não tem mais compromisso com a verdade e o bem, mas somente com a diabólica tessitura do dinheiro, do poder e da guerra.
Cheguei, naquele tempo, a sonhar com a possibilidade de a quântica fazer uma revolução para salvar o mundo. Parece mesmo que não vai dar certo.
Como não deu certo o paradigma poético-filosófico da antropofagia, gerado na Semana de Arte Moderna de 22[ii], visão que tinha a possibilidade de ir além da dimensão literária e transformar o Ocidente canibalizado numa criação do pensamento selvagem, que mudaria o nosso jeito colonizado de pensar e atuar politicamente. Imitando os Tupinambás, que proibidos de comer os inimigos valentes, começaram a comer simbolicamente a cultura dos invasores.
Tudo deu certo somente com os poetas e os filósofos: o Tropicalismo dos Caetano, Gil e Tom Zé e o Cinema Novo de Glauber Rocha [iii] retomaram, na música, na poesia e no cinema, esta abordagem antropofágica, que não agride dialeticamente o que é produzido pelo sistema hegemônico, mais o relativiza incorporando-o, a partir da sua perspectiva existencial, gestando novas identidades e estilos. E seria bom não esquecer o nosso Oscar Niemeyer, que "comeu" Le Corbusier! E o grande Marx brasileiro: Roberto Burle Marx, canibal do concretismo e do construtivismo. Acrescentando Mario de Andrade, que, com Macunaíma, metaboliza dadaísmo futurismo e surrealismo. E Ariano Suassuna, que representa, mergulhado no tradicional Nordeste, a assimilação seletiva da cultura hegemônica e a ruptura com o colonialismo, na recriação da cultura popular regional.
Outro exemplo de antropofagia bem sucedida é o a obra de Enrique Dussel, que canibaliza todo o pensamento filosófico europeu, com um conhecimento incrivelmente pormenorizado da produção das várias tendências filosóficas "continentais" e as reformula criticamente a partir da vivência e da ótica dos pobres colonizados.
Antropofagia: quase uma poética antecipação da mecânica quântica...
E, continuando a pensar no que não deu certo, como não pensar em Jesus de Nazaré e na sua Palavra, rejeitada e manipulada – poderíamos dizer: inevitavelmente – desde o começo. Fundamental a compaixão na práxis de Jesus, que faz vibrar energia, sinergia, empatia no encontro com os banidos e excluídos. Evangelho redescoberto, mais tarde, pelo movimento de Francisco e Clara, que anunciava novamente, no contexto do nascente capitalismo, a boa nova da fraternidade e sororidade de todos os seres vivos. Sabemos que não deu certo também. Ou deu certo como usualmente acontece com a profecia: por um instante, um raio revela a paisagem escondida na escuridão da noite. A noite da história humana...
O que deu certo foi esta a teimosa resistência desta verdade, ocultada pelos donos do mundo, que, apesar de tudo, inspira a nossa vida. Profecia que nos guia a nos relacionarmos com o mundo vivido como um ‘tu” e não como “isto” demolindo o equívoco originário de Parmênides e discípulos, que, em nome do “ser”, nunca reconheceram a beleza e a bondade espiritual da materialidade do universo.
Deu certo, também, com a incrível resistência dos povos indígenas à genocida vontade da Europa de dominar o mundo, depredando, matando, inferiorizando culturas, que, hoje, em tempos sombrios de ameaças de extinção da Vida, insurgem propondo novamente uma visão cosmopolítica da realidade. Visão profética, que Ailton Krenak e Eduardo Viveiros de Castro, numa Conversa na Rede[iv], descrevem como um encontro inevitável entre a ciência e o pensamento selvagem, onde o maracá si afirma como um acelerador de partículas, um propiciador de ritmos de comunicação entre os seres, vividos e contemplados como energia, porta para a acolhida, como pelos yanomamis, dos Xapiri, as entidades espirituais.
Deu certo também com Gilberto Gil, que contribuiu filosoficamente para descrever poeticamente a comunicação que constitui o universo.
Lembro do duplo CD Quanta [v],
“Quanta do latim, plural de quantum
Quando quase não há
Quantidade que se medir
Qualidade que se expressar”,
e, em particular, da música ‘Estrela’ [vi] e os seus “Cântico dos cânticos e quântico dos quânticos”.
Uma imensa contribuição à divulgação do caráter revolucionário da física quântica a devemos ao grande físico Emilio Del Giudice (1940-2014), que usa os achados da evidência biológica para a enfrentar os equívocos da economia política, que constitui e determina as relações entre seres vivos.
Resumindo, para Del Giudice a nossa sociedade é ainda constituída pelas regras da economia, que contradizem as regras da biologia. A Lei da economia exige a competição, o conflito e a guerra: a lei da biologia é a cooperação. “A economia é por isto um fato constitutivamente patológico, que provoca patologias, doenças.”
“Portanto, se o organismo vivo, que é um conjunto de moléculas que realizam muitas ações como um todo, funcionasse de acordo com os princípios da física clássica, teria que pagar uma conta de energia assustadora e não é assim. A física quântica vem em nosso auxílio, cujo fundamento é que o princípio da inércia falha porque qualquer corpo no universo flutua espontaneamente, portanto, é impossível separar a matéria do movimento, pois não é inerte, mas se move, agita. Neste ponto, pode-se perguntar: as flutuações de cada corpo são independentes das flutuações de outro corpo? Não é possível que haja um estado da matéria em que as flutuações são faseadas e a agitação caótica se transforma em um balé, em um concerto?”
Será possível que a lei da cooperação possa reverter a ditadura da economia? Será possível parar o tubarão voraz do capitalismo que ameaça a vida do planeta? Del Giudice responde:
“Isso poderia acontecer se algum fenômeno coletivo fosse estabelecido, às vezes acontece na história da humanidade quando há grandes movimentos sociais em que tantas pessoas ressoam umas com as outras, não importa em que tema. Então milagres realmente acontecem, quando as demandas da luta pela existência são ignoradas e as pessoas estão dispostas a morrer e oferecer suas vidas por uma causa comum. Se isso acontecer um dia, e espero que aconteça, então pode ser que tenhamos uma verdadeira transição de fase para a humanidade” [vii].
Naquele mesmo ano de Quanta, 1997, me interpelavam algumas considerações de Manfredo Araujo de Oliveira [viii], que, em ocasião do Congresso do SOTER – Teologia e Novos Paradigmas - sem desobedecer à metodologia de reflexões estritamente filosóficas, não ocupava indevidamente o campo teológico, mas mostrava com clareza a importância da nova compreensão cientifica da totalidade do real, da nova ontologia surgida da física quântica: ondas de energia em lugar de partículas atômicas inertes; visibilidade das partículas só através dos artifícios da observação; um universo dinâmico em lugar de um universo estático; cosmogênese em lugar de cosmologia; relações em lugar de identidades; energia e razão em lugar da mera materialidade da res extensa; falência da analítica aristotélica; informação, comunicação como linguagem do cosmo.
Percebo, porém que a preciosa contribuição de Manfredo não ecoou suficientemente no debate teológico do Congresso e isto me chamou atenção, porque tenho a impressão de que a física quântica contesta o status quo aristotélico-cartesiano, paradigma que sustenta não só a física clássica, mas também a insanidade da economia capitalista. Assim, cheguei a imaginar que os teólogos da libertação pudessem ser seduzidos por esta radicalidade. Mas, até hoje, salvas exceções preciosas, também em âmbito católico, parece-me que continuamos insistindo no jeito grego de pensar.
[i] Roberto Bernini, março 2025.
[ii] A Semana de Arte Moderna, também chamada de Semana de 22, foi um evento cultural que ocorreu no Teatro Municipal de São Paulo de 13 a 17 de fevereiro de 1922.
[iii] Glauber Rocha: "A cultura brazyleira está com kanzer. Toritoma maligno, Carcinoma embriogênico. Melanina pulverizantyz: os efeitos destrutivos possuíram órgãos, membros e almas dos artistas, dos burocratas, que se ocupam de produzir, realizar e distribuir cultura no Brazyl. A televisão está contaminada pelos enlatados promocionais do FBI e da CIA (órgãos de segurança yankz)", Correio Brasiliense, 27 de setembro de 1977, apud http//www.dopropriobulso.com.br, acessado em 21.06.2015
[iv] Propiciada por uma postagem de Faustino Teixeira no Facebook, em 16.03.2025 https://www.youtube.com/watch?v=wp5NlnNE4BI
[v] Gilberto Gil, Quanta, Gravadora: WEA, Produtor: Liminha (Arnolpho Lima Filho), CD duplo (1997)
[vi] Estrela
Há de surgir
Uma estrela no céu
Cada vez que ocê sorrir
Há de apagar
Uma estrela no céu
Cada vez que ocê chorar
O contrário também
Bem que pode acontecer
De uma estrela brilhar
Quando a lágrima cair
Ou então
De uma estrela cadente se jogar
Só pra ver
A flor do seu sorriso se abrir
Deus fará
Absurdos
Contanto que a vida seja assim
Assim, um altar
Onde a gente celebre
Tudo que Ele consentir
Há de surgir
Uma estrela no céu
Cada vez que oca sorrir
Há de apagar
Uma estrela no céu
Cada vez que coe chorar
O contrário também
Bem que pode acontecer
De uma estrela brilhar
Quando a lágrima cair
Ou então
De uma estrela cadente se jogar
Só pra ver
A flor do seu sorriso se abrir
Deus fará
Absurdos
Contanto que a vida seja assim
Assim, um altar
Onde a gente celebre
Tudo que Ele consentir
[vii] Emilio Del Giudice entrevistado por Valentina Ivana Chiarappa, aqui.
[viii] Oliveira Manfredo Araujo de, A mudança de paradigmas nas ciências contemporâneas, pp. 21-39, in VV.AA. Teologia Aberta ao futuro, SOTER, Edições Loyola, São Paulo, 1997. A publicação, organizada por Márcio Fabri dos Anjos, é a coletânea das contribuições de mais de cem teólogos e teólogas do Brasil, que se encontraram em Belo Horizonte, de 8 a 12 de junho de 1996, para mais um Congresso do SOTER, que teve como tema condutor Teologia e Novos Paradigmas.