09 Setembro 2020
Além da incerteza estrutural, uma das certezas que temos em meio a esse annus horribilis é a profunda transformação na interpretação de um presente variegado e contraditório. Diante do surgimento do totalitarismo digital, por um lado, a par de controles biopolíticos excepcionais, por outro, acrescenta-se a expropriação dos rituais antropológicos – velar os mortos na companhia de familiares e amigos, visitar os doentes, exercer a liberdade de movimento – que interromperam ordens simbólicas essenciais para a experiência humana como a conhecemos. As novas paisagens políticas em diferentes partes do globo exigem assimilações sem precedentes entre Oriente e Ocidente, a fim de articular um imago mundi que possa explicar a ansiedade em que vivemos.
Nesse contexto, a figura ascendente do filósofo e poliglota Yuk Hui ganhou especial preponderância em alguns dos principais círculos de prestígio intelectual. Formado como programador na Universidade de Hong Kong, estudou filosofia no Goldsmiths College em Londres para posteriormente se especializar no pensamento da técnica, cultura e estética em mídia digital com pós-graduação na França e na Alemanha. Com fortes laços com a Rússia, ele comanda a pesquisa em tecnologia e filosofia nas Universidades Leuphana e Bauhaus e atualmente está baseado em Hong Kong. Nos próximos dias, a editora Caja Negra publicará seu primeiro livro em espanhol com o título “Fragmentar el futuro. Ensaios sobre tecnodiversidad”, por isso Perfil conversou exclusivamente com o autor.
A entrevista é de Rafael Toriz, publicada por Perfil, 06-09-2020. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Gostaria de saber onde você nasceu e recebeu sua primeira instrução, bem como saber sua relação com a sua língua materna e perguntar em que língua você escreve a maioria de seus textos filosóficos.
Cresci em Hong Kong e estudei na Inglaterra, França e Alemanha. Tenho uma relação particular com a minha língua materna. Eu cresci em uma família que falava mandarim, chew chaw (do sul da China) e cantonês. Quando crianças, todos nós estudávamos inglês e, de minha parte, estudei japonês por um tempo, uma língua que retomei na atualidade; depois aprendi francês e alemão. Eu li filosofia escrita em chinês antigo, mas muito raramente escrevia em chinês na última década. Escrevo principalmente em inglês, não apenas porque é uma das línguas imperiais mais populares do mundo, mas também porque é meu meio mais conhecido para comunicar conceitos de diferentes práticas linguísticas.
O que significou para você a vida de migrante?
Na realidade não recordo um período de estabilidade em minha vida: fui nômade desde criança. Um nômade é diferente de um imigrante na medida em que um imigrante quer ter um lar, enquanto um nômade desconhece esse conceito. Apesar de que os nômades estejam sempre em movimento, não significa que não tenham apego à terra, pelo contrário, têm ainda mais que a maioria das pessoas. Os nômades costumam ser melancólicos e nostálgicos. No meu caso, cada vez que deixei um lugar sempre me deprimi. Existe em mim a necessidade de me mover, interna ou externamente.
Em relação aos protestos recentes, como lê a situação de Hong Kong hoje?
Supostamente Hong Kong seria um experimento de novas formas de soberania, o que significa que a política de “um país, dois sistemas” permitiria uma maior descentralização ou pelo menos uma redistribuição do sistema federal. No entanto, demonstrou ser um fracasso. A política mundial está dominada por ideologia do século XX. Recentemente publiquei a tradução de um artigo escrito por Jean-François Lyotard, porém antes de que fosse enviado para impressão, o editor teve que eliminar um parágrafo inteiro que dizia “o marxismo é produto do idealismo alemão e do cristianismo tardio”. É sintomático, porque é uma negação; significa que o partido comunista se nega a entender que o Ocidente que acreditavam entender é apenas fabulação. É por essa mesma razão que os protestos em Hong Kong foram descritos como uma oposição fácil entre autoritarismo e liberalismo no Ocidente e na China como um movimento terrorista anti-governo. As coisas são mais complicadas. Não obstante, a filosofia política do século XX não conseguiu nos dar novos derrotadores. China e os EUA estão dominados por alguns pensadores schmittianos superficiais e por isso se refletem entre si. Quando dois schmittianos se juntam, especulam sobre se deveriam ser amigos ou inimigos. Não pode existir um amor feliz entre eles.
Como crê que será a sociedade global depois dos estragos da covid-19 e o que representou para você o confinamento? Lhe pergunto enquanto a pandemia ainda está ocorrendo e sobretudo em relação a uma poderosa linha de um dos seus ensaios em que defende: “todas as formas de racismo são fundamentalmente imunológicas”.
O confinamento é um momento de suspensão e reflexão, já que muitas atividades “normais” foram canceladas ou realizadas de outra maneira.
Claro, são muitas as questões sociais e políticas que produzem esta suspensão, já que também é uma espécie de “seleção natural” segundo o nível de seguridade social que se tem. A crise poderia ser a possibilidade de outro começo, no sentido de Heidegger. De fato, devemos reconhecer que não há “uma vida normal”, mas sim “normalizações", já que logo o povo estará acostumado a usar máscaras e a manter a distância social.
Provavelmente teremos um confinamento mais prolongado até que se demonstre que a vacina é efetiva e a pandemia chegue ao seu fim. No entanto, se o que simplesmente queremos é voltar à vida normal e tudo isso é parecido a uma pessoa limada que faz um curso de yoga de duas semanas na Índia ou uma viagem de ayahuasca na Amazônia para voltar a trabalhar duro e se limar novamente, então talvez o confinamento não teve muito sentido. Creio que se trata de uma ocasião especial para conceber e empreender algumas mudanças fundamentais, desde os indivíduos aos coletivos e até aos Estados.
Ao revisitar a sua biografia me parece impossível não pensar em outros dois filósofos do presente. Por um lado, Byung-Chul Han e, por outro, Markus Gabriel, com quem compartilha não apenas um temperamento cosmopolita, mas também a condição poliglota que define um novo tipo de filósofo que vocês encarnam, uma espécie de representação holográfica do inconsciente do Google que move a se perguntar o que significa ser um filósofo no presente. O que pensa deles e que relação guarda com suas obras – se há alguma?
Não quero me comparar com as estrelas que menciona, pois não seria uma confirmação do negócio da sofisticação global, que cada vez mais é o caso atual. Somente quero fazer algumas observações. Como asiático, entendo quão difícil é para Byung-Chul Han ser reconhecido como filósofo não orientalista na Alemanha, provavelmente seja mais difícil que ter eleito Obama presidente dos Estados Unidos. Han quase conseguiu isso. O fez não tanto pelos escritos acadêmicos, mas sim através de seus comentários em jornais e panfletos em forma de livros. Creio que a circunstância se explica somente quando reparamos no fato de que sua cátedra não foi renovada tendo 60 anos, enquanto Markus Gabriel teve sua cátedra permanente aos 29 anos. Gosto mais do trabalho anterior de Han, porém não tenho uma relação de proximidade com seu pensamento.
Nestes tempos ominosos, quando o exercício filosófico se torna mais indispensável que nunca, paradoxalmente são poucos os que podem se dedicar à filosofia como uma opção para ganhar a vida, sobretudo na América Latina. Por isso, qual é o lugar do humanismo – profissionais liberais, escolas de artes e humanidades, jornalismo e novos proletariados digitais – em um contexto de esgotamento ecológico, desvalorização do trabalho e sociedades governadas por algoritmos? É possível ser somente filósofo no presente, ou é necessário ao mesmo tempo ser programador?
Primeiro que não fui treinado para ser programador antes de estudar filosofia. Fiz ao contrário. Sem dúvidas o conhecimento computacional é necessário para os filósofos que querem entender o mundo contemporâneo, de outra maneira podem fazer o ridículo dizendo coisas como que a máquina de Turing é mecanicista. Não creio, porém, que todo mundo tenha que se tornar programador, toda vez que devemos conceber um programa que nos permita acomodar a inovação tecnológica no lugar de simplesmente nos deixarmos levar por ela, o que somente redundará em desorientação.
O algoritmo é a externalização do pensamento racional, que é complicado em seu processo de desenvolvimento de uma lógica linear para uma lógica recursiva. E essa é também a razão pela qual Gotthard Günther, o hegeliano e cibernético alemão, afirma que a cibernética que emprega a noção de retroalimentação é a realização da lógica reflexiva de Hegel.
A questão não é como as máquinas vão nos substituir; isso ainda está dentro do âmbito muito limitado da economia política, da qual Marx foi um precursor. A questão é como vamos confirmar essa forma externalizada de racionalidade atual? Qual é a possibilidade da razão? A digitalização é uma “tendência técnica”, no sentido da palavra de André Leroi-Gouhran, mas essa tendência técnica tem que ser estabilizada e incorporada por uma localidade, significados, valores, saberes e relações sociais da comunidade. Cada movimento tem que ser estratégico, para não ser destruído pela ideologia do Vale do Silício.
Acho que isso ainda não foi entendido pelos tecnólogos e nós, os que você mencionou, artistas, humanistas, jornalistas e outros liberais temos que fazer isso. Primeiro, para desenvolver concretamente uma nova economia de base local e, segundo, reformar o sistema educacional para que os estudiosos das humanidades também possam compreender a tecnologia e os tecnólogos também possam ter estudos liberais em seu currículo. Não acho que a interdisciplinaridade seja a chave para o futuro, acho que deveríamos até abolir o conceito de disciplinas e dar às artes liberais uma nova vida após o renascimento.
Uma das principais preocupações de Giorgio Agamben em relação à pandemia era o lugar de viver o pensamento na Universidade, que ele acha absolutamente ausente no ensino online. No seu livro “Fragmentando o futuro”, destaca que essa crise também é uma oportunidade. Que benefícios vê no presente da vida digital?
Em primeiro lugar, acredito que mesmo sem a pandemia, as universidades estão em crise há muitos anos e por vários motivos: comercialização de diplomas, dependência excessiva de financiamento de terceiros, industrialização de teorias críticas, etc. Para acadêmicos da geração de Agamben, o ambiente de ensino ideal seria dedicar um seminário inteiro à leitura de duas páginas de Platão ou Heidegger palavra por palavra, e isso aparentemente será muito difícil quando for feito online, especialmente quando tais plataformas não foram criadas para fins educativos.
Não é um grande insulto que o sucesso do Zoom se deva em grande parte ao fato de nenhuma universidade do planeta ter desenvolvido uma plataforma online apropriada?
As universidades têm que ser reinventadas, são forçadas a isso, mas não da maneira que Agamben sugere, já que ele não entende realmente de tecnologia, o que Heidegger chamou de Gestell. Como o próprio Heidegger disse uma vez: “Pode ser que qualquer salvação que não venha do perigo ainda se encontre dentro do desastre [Unheil]”. Em seu livro “O que é um dispositivo?” quando diz “eis a vaidade do discurso bem intencionado sobre tecnologia, que afirma que o problema dos dispositivos pode ser reduzido à questão do seu uso correto. Aqueles que fazem tais afirmações parecem ignorar um fato simples: se um certo processo de subjetivação (ou, neste caso, dessubjetivação) corresponde a cada dispositivo, então é impossível para o sujeito de um aparato usá-lo 'da maneira certa'”. Acho que ele não estava errado.
No entanto, a chave é criar tecnologias alternativas a esses modos de “subjetivação”. Por exemplo, podemos imaginar plataformas de educação colaborativa baseadas em diferentes grupos de zoom. E, de fato, acredito que o que Agamben chamou de indigência só pode ser feito apropriando-se da tecnologia, pois a rua exige novas instituições que ainda temos que pensar e construir juntos.
“O coronavírus destruirá muitas instituições já ameaçadas pelas tecnologias digitais. Também fará necessário um aumento da vigilância”. O cenário que descreve, e no qual já vivemos, deixa pouco espaço para respirar, por isso você faz um chamado à solidariedade concreta, contra a cultura monotecnológica após uma tecnodiversidade com tecnologias alternativas e seus correspondentes modos de vida, o que se torna necessário, porém, tampouco parece simples. O que o Oriente pode dizer ao Ocidente para imaginar uma resistência global articulada?
Se a solução fosse simples não haveria nenhum problema. Como não existe uma solução simples disponível, devemos experimentar diferentes tentativas, mas sem depender de uma única autoridade para dar instruções. Acredito que durante a pandemia muitas pessoas perceberam que a política nada mais é do que um monte de mentiras, e o capitalismo não perderá nenhuma oportunidade que as catástrofes lhe proporcionam: a pandemia não interrompeu de fato a operação do mal. Na verdade, a pandemia apenas o acelerou, produzindo uma sensação de desesperança, de niilismo. O Oriente que conhecemos hoje não é fundamentalmente diferente do Ocidente, em termos de meios de exploração e formas de engano. Na verdade, apenas uma coisa é certa: não estamos sendo levados a lugar nenhum pela gigantesca força da tecnologia, e se não tentarmos entendê-la e transformá-la agora, teremos que estar preparados para a chegada constante de catástrofes, se ainda não é o fim da humanidade.
"Fragmentar el futuro. Ensaios sobre tecnodiversidad",
de Yuk Hui.
Editora Caja Negra, 2020
Os ensaios que compõem este volume podem ser organizados sob a rúbrica da tecnodiversidade, conceito que apresentei em meu segundo livro “The Question Concerning Technology in China: An Essay in Cosmotechnics” publicado em 2016 e que continuo a desenvolver. A busca pela tecnodiversidade propõe uma reabertura da questão da técnica: ao invés de entender a tecnologia como um universal antropológico, ela pede redescobrir uma multiplicidade de cosmotécnicas junto a suas respectivas histórias e com as possibilidades que oferecem para enfrentar a tecnologia moderna hoje. O conceito de cosmotécnica visa, acima de tudo, desafiar a forma como a tecnologia foi entendida durante o século 20 na filosofia, antropologia e história. Eu ofereci uma definição preliminar de cosmotécnica como uma unificação das ordens do cosmos e da moral por meio de atividades técnicas com o propósito de sugerir que a tecnologia deve ser reposicionada em uma realidade mais ampla que a torna possível ao mesmo tempo que a restringe. Em “The Question Concerning Technology in China”, procurei formular o pensamento tecnológico na China estudando a dinâmica histórica da relação entre duas categorias filosóficas importantes, tao e qi (literalmente, “utensílio”), e examinando como eles se desconectam da modernização que segue as Guerras do Ópio, em que a China é derrotada pelo Império Britânico. Que a tecnologia desligada da realidade que é o seu fundamento é fruto do desejo de ser universal e de se tornar o fundamento de tudo. Por trás desse desejo, como sua condição de possibilidade, está a história da colonização, da modernização e da globalização que, a par do crescimento econômico e da expansão militar, deu origem a uma cultura monotecnológica em que a tecnologia moderna se torna a principal força produtiva e determina em grande parte a relação entre os seres humanos e não humanos, o ser humano e o cosmos, a natureza e a cultura.
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Um pensamento nômade. Entrevista com Yuk Hui - Instituto Humanitas Unisinos - IHU