10 Julho 2020
“Proponho uma visita a quatro jovens filósofos [Markus Gabriel, Yuk Hui, Helen Hester e Srecko Horvat] que pensam no futuro a partir de interseções com a tecnologia. Sob diferentes perspectivas, os estudos coincidem em algo: o mundo como está é insustentável. É preciso fazer mudanças urgentes, sobretudo no cuidado com o meio ambiente”, escreve Tomás Pérez Vizzón, jornalista especializado em cultura digital, em artigo publicado por Infobae, 07-07-2020. A tradução é do Cepat.
Já não é nenhuma novidade dizer que o coronavírus transformou nossas vidas. Desde o início da pandemia, se modificaram as formas de trabalhar, de nos comunicar e de nos vincularmos. Mudaram nossos imaginários e as maneiras de pensar o mundo.
Foram publicadas centenas de análises sobre o “novo normal” em termos econômicos, sociais e culturais. A filosofia, mais uma vez, reaparece como a disciplina que nos abre perguntas diante de um futuro incerto. E a tecnologia como o grande dispositivo de dois gumes: é o serviço essencial que garantirá o teletrabalho e a educação a distância para todos e rastreará contatos com as pessoas infectadas para nos defender contra outro vírus? Ou o conglomerado de corporações globais está apenas interessado em maximizar lucros à custa de nossos dados?
Neste artigo, proponho uma visita a quatro jovens filósofos que pensam no futuro a partir de interseções com a tecnologia. Sob diferentes perspectivas, os estudos coincidem em algo: o mundo como está é insustentável. É preciso fazer mudanças urgentes, sobretudo no cuidado com o meio ambiente.
Markus Gabriel é um filósofo e escritor alemão, diretor do Centro Internacional de Filosofia (IZPh) e um dos representantes do Novo Realismo, uma corrente filosófica que problematiza a metafísica. Suas publicações e entrevistas são geralmente de alto impacto. Não tem problemas em dizer que a inteligência artificial não existe, que o Facebook é o novo Deus ou que as redes sociais são grandes criminosas. Crítico das teorias tecnológicas nascidas no Vale do Silício, explica que a crença de que estamos caminhando para um mundo automatizado, no qual máquinas inteligentes operam autonomamente, é puro marketing californiano.
“Somos proletários digitais: trabalhamos gratuitamente para produzir dados para grandes empresas e ninguém nos paga por isso”, disse-me, no ano passado, no ‘Todo es Fake’, o podcast sobre cultura digital que eu faço na Anfibia. Exige regulamentações mais fortes para as redes sociais e até afirma que as empresas de tecnologia - grandes ganhadoras da pandemia como Amazon, Microsoft e Facebook - são as que têm que garantir uma renda universal.
Markus aponta a falsa neutralidade das tecnologias: os sistemas de inteligência artificial são desenvolvidos por pessoas e corporações que têm interesses, são programas codificados e pensados pelos seres humanos “para explorar outros seres humanos”. O mito de que os sistemas de inteligência artificial são o nosso espelho não passa de uma ideologia a serviço da exploração digital.
“O coronavírus manifesta as fragilidades sistêmicas da ideologia dominante do século XXI. Uma delas é a crença errônea de que o progresso científico e tecnológico por si só pode impulsionar o progresso humano e moral”, disse em um texto, poucos dias após a declaração da pandemia global. E em outro mais recente: “Vejo essa crise como uma preparação para a crise ecológica. Isso não é nada comparado à crise ecológica, nada”.
Yuk Hui nasceu na China, estudou engenharia da computação e filosofia na Universidade de Hong Kong e no Goldsmiths College, em Londres, com foco em tecnologia.
Seu trabalho nos últimos anos é uma crítica ao que chama de “cultura monotecnológica”, que concebe a tecnologia como uma mera força produtiva e mecanismo capitalista para maximizar os lucros. Diz que o modelo de produção global apaga as contribuições que as diferentes culturas poderiam fazer e faz com que diferentes países desenvolvam a mesma tecnologia com diferente branding.
“Os problemas causados por essa cultura monotecnológica estão levando ao esgotamento dos recursos naturais, à degradação da vida na Terra e à destruição do meio ambiente... Se não mudarmos nossas tecnologias e atitudes, apenas preservaremos a biodiversidade como um caso excepcional, mas não garantiremos sua sustentabilidade. O coronavírus não é a vingança da natureza, mas o resultado de uma cultura monotecnológica em que a própria tecnologia simultaneamente perde seus fundamentos e quer se tornar o fundamento de tudo”, diz em um de seus ensaios recentes.
Hui propõe a ideia de ir em direção a uma tecnodiversidade, para uma multiplicidade de cosmotécnicas que difiram entre si em termos de valores, epistemologias e modos de existência. Seria possível pensar em uma tecnologia latino-americana, amazônica, inca ou maia? Poderia existir uma alternativa tecnológica à atual crise global que não seja um retorno à natureza primitiva? São algumas das perguntas desencadeadas por esse autor, que será traduzido pela primeira vez ao espanhol pela editora Caja Negra, em 2020, em um livro chamado Fragmentar el futuro.
Em 2015, o coletivo feminista internacional Laboria Cuboniks lançou seu manifesto “Xenofeminismo: uma política pela alienação” com uma aposta central: se o mundo atual (e o futuro) está estruturado pela tecnologia, é necessário fazer com que essa tecnologia seja feminista. Uma das seis fundadoras desse coletivo foi a filósofa britânica Helen Hester. Anos mais tarde, publicou seu próprio Xenofeminismo, onde aprofunda algumas de suas pesquisas relacionadas às tecnologias digitais, a reprodução social e as políticas de cuidado.
Nos últimos tempos, Hester tem trabalhado junto com seu parceiro Nick Srnicek na encruzilhada entre tecnologia, trabalho e a crise dos cuidados. Srnicek é outra celebridade intelectual tech, reconhecido por sua publicação “Capitalismo de plataformas”, na qual faz uma radiografia da chamada economia colaborativa ou economia de plataformas.
“Entendemos a crise do trabalho e a crise dos cuidados como dois lados da mesma moeda”, explica Hester em uma das conferências que costumam dar juntos. “Nossa proposta de modelo pós-trabalho inclui três pontos essenciais: a automação do trabalho doméstico, uma redução de nossos padrões no âmbito doméstico - ter uma casa limpa, passar tempo com nossos filhos, ser hospitaleiro com nossos hóspedes... - que nos permita distribuir o tempo de acordo com a nossa vontade e, finalmente, repensar a organização da moradia”, diz enquanto o parceiro a observa da primeira fila com seu filho. O estudo de Hester e Srnicek visa revisar a organização do espaço doméstico: uma das ideias é a formação de comunidades onde os cuidados sejam compartilhados, sem distinção de gênero.
“Precisamos de tecnologia descentralizada, o contrário nos faz perder a capacidade de conduta e nos leva a uma sociedade da vigilância”, diz o filósofo croata Srecko Horvat, um dos intelectuais e ativistas mais jovens e proeminentes da nova esquerda europeia. É discípulo de Zizek e cofundador do DIEM25, um movimento pan-europeu de democratas, unidos sob a conclusão de que a União Europeia só sobreviverá se for radicalmente transformada.
Com nossas casas, carros e vidas conectados à mesma rede, a nova vigilância pelas corporações será total. “Todos esses campos de investimento e inovação exponencial estão transformando nosso mundo de maneira tão profunda que, em breve, todos os aspectos de nossas vidas serão integrados a uma rede ou estrutura digital e global”, diz em um de seus ensaios.
E chama as consequências dessa situação de servidão maquínica. “É um conceito que tomo emprestado do filósofo italiano Maurizio Lazzarato e que tem a ver com o medo que muitos de nós temos: a tecnologia está nos levando a uma nova forma de totalitarismo. Falo de servidão porque estamos em uma situação em que nem sabemos mais que não somos livres. A maioria das pessoas não está consciente de como estão imersas em diferentes tipos de tecnologias e como isso modula sua existência”, disse em uma entrevista recente.
Seu último livro, Poesía del futuro, reúne uma série de artigos que apontam a necessidade de mudar o sistema para salvar uma civilização que está a caminho do apocalipse e de nos desprender de ideias obsoletas como as fronteiras, as identidades nacionais e o liberalismo econômico. Durante o isolamento, fez uma série de entrevistas sobre a “nova normalidade”, pelo Zoom, com celebridades que iam de Noam Chomsky a Pamela Anderson e Gael García Bernal.
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O dilema da filosofia tech: pensar em um mundo melhor ou explorar o humano como nunca antes - Instituto Humanitas Unisinos - IHU