15 Mai 2020
O filósofo alemão Markus Gabriel é uma chuva de ideias que se atropelam entre si. Tem 40 anos e é diretor do Centro Internacional de Filosofia de Bonn, mas é sobretudo um pensador que palpita com a atualidade, com o presente sociopolítico e com os equilíbrios de poder, desgastados nesses dias.
A crise do coronavírus é uma que pede a filosofia aos gritos, ao menos para começar a compreender e ordenar as descomunais mudanças e o novo mundo que se aproxima. Gabriel acredita que a covid-19 é apenas o início de uma cadeia de crises sucessivas, com as quais precisaremos aprender a conviver. Mas, ao mesmo tempo, uma nova moralidade emergirá da transformação de um sistema insustentável, segundo este jovem pensador, provocador e que pula de um tema para outro com profundidade e ecletismo.
A entrevista é de Ana Carbajosa, publicada por El País, 01-05-2020. A tradução é do Cepat.
Há quem pense que desta pandemia emergirá uma sociedade melhor, mais moral. Outros pensam que continuaremos sendo medíocres e egoístas.
Acredito que seremos uma sociedade mais moral. Vejo esta crise como uma preparação para a crise ecológica. Isto não é nada comparado à crise ecológica, nada. Os Governos de todo o mundo sabem que a crise ecológica matará centenas de milhares de pessoas, nos próximos 100 ou 200 anos, e este é um perigo real. Sabemos disso porque os modelos climáticos são melhores que os do coronavírus. Temos mais dados, estudamos há 50 anos. Sabemos que haverá mais vírus e é possível escutar na União Europeia as vozes a favor de um novo Green Deal. Veremos um novo modelo de economia global e não será parecido com a globalização.
Com o que será parecido?
Não há caminho de volta, as cadeias de produção já estão destroçadas, só existem porque as pessoas, ou seja, os donos das empresas, as automobilísticas, por exemplo, na Alemanha, querem que existam. E eles também estão ameaçados pelo vírus, assim como qualquer um. São pessoas com muito dinheiro, normalmente muito paranoicas sobre sua própria saúde. Agora, estão conscientes de que isto não continuará assim. Não se deve mais olhar para a China e considerar que não é um parceiro confiável. A China está se vingando de agressões anteriores. Precisamos encontrar uma maneira de estabelecer uma nova amizade com a China, mas não pode ser por meio da globalização e o tratamento injusto. Por que as empresas europeias têm fábricas na China? Para pagar salários baixos.
Você defende que é preciso romper a cadeia de infecção do capitalismo. O que quer dizer com isso?
Nas transações da vida cotidiana, como comprar um brinquedo para seu filho, um paracetamol ou um carro, em muitos momentos, alguém precisou sofrer pela mera existência dessa cadeia. Todos somos responsáveis pelo sofrimento de outros. Estas cadeias interconectadas criaram sistemas maléficos e, no final dessas cadeias, sempre há alguém que morre por falta de água limpa, por não ter colheitas, pelas condições de exploração. Essa é a cadeia de infecção de uma doença, que é o comportamento imoral. Se você faz o incorreto moralmente, faz com que a realidade seja um lugar pior. O neoliberalismo global se converteu em um modo de destruição hiper-rápido.
E isso mudará?
Se pensamos em como era a vida há um mês ou dois, claramente era muito agitada, tinha uma velocidade que já é inimaginável. Essa dinâmica é malvada por seus resultados e parou. Agora, levamos uma vida mais moral, simplesmente pelo fato de ter menos. Isto é parte da explicação do motivo pelo qual paradoxalmente nos sentimos, de alguma maneira, bem na nova situação. Há um aspecto de solidariedade, de estar protegendo os idosos, e isso gera um bom sentimento, mas também estamos deixando de fazer coisas que são prejudiciais para outros e há uma consciência subliminar nisso. Agora que tudo parou, há uma certa sensação de alívio, junto com a sensação de ameaça. Se tratarmos de voltar à normalidade de antes, veremos novas ondas deste vírus, que ficará aí até que encontremos uma maneira sustentável de fazer negócios.
Ao mesmo tempo, espalha-se o medo de que a recessão reforce as forças populistas, que se alimentam da frustração popular.
Haverá mais ondas de coronavírus e haverá aberturas e depois mais confinamentos e nos acostumaremos. Meu grande medo é que Trump vença outra vez as eleições. Se há uma recuperação da economia rápida, ele se erguerá como o grande gestor e será a prova de que os populistas também são capazes de governar e um exemplo para Governos autocráticos. Essa é uma ameaça real.
Você rejeita a linguagem belicista. Não acredita que lutar contra a covid-19 equivale a travar uma guerra.
Claramente não estamos em uma guerra. Não há exército, nem terroristas, nem nada parecido atacando a um Estado. O vírus não é o inimigo. Em sua perspectiva, somos um amigo, um restaurante, um bordel. O vírus entra em nossos corpos e se replica. Não há ataque, nem intencionalidade. A justificativa para o estado de exceção, baseando-se em um estado de guerra, é uma mentira política.
Inclusive na guerra há leis, limites. Onde estão os da luta contra a pandemia?
Se vemos as medidas na Europa, são parecidas. Criam um estado de exceção e sabemos pela teoria política e a filosofia que é temporal. É uma pausa do que valorizamos na democracia. Ou seja, valorizamos que a democracia prioriza a liberdade, inclusive acima da vida. O Estado de direito foi implantado por meio de revoluções, de heróis que preferiam morrer, antes que viver na servidão. O que agora vemos é que os instrumentos do Estado de direito democrático são utilizados para tomar a decisão oposta. A vida e a sobrevivência são mais valorizadas que a liberdade. Nunca tivemos tão pouca liberdade como agora. É momentâneo, mas ninguém nos diz quanto tempo irá durar.
Existem outras opções?
Não temos a certeza de que haverá uma vacina segura e não sabemos a letalidade real do vírus. A razão pela qual os Governos são tão cautelosos é a incerteza. A justificativa das medidas depende totalmente de fatos sobre o vírus que desconhecemos. O que os Governos fazem é se apoiar em uma interpretação pessimista da situação, porque seria muito arriscado assumir o cenário otimista. O paradoxo atual é que nossa política se baseia em uma ficção, não nos fatos, porque não os conhecemos. Conhecemos um espaço de possibilidades, que se estreita graças à virologia e às simulações informáticas. Vivemos em uma simulação.
Nesse momento, os virologistas passaram a ser máximas autoridades. Na Alemanha, o Governo também ouviu equipes multidisciplinares. Como os mandatários devem tomar as decisões, nos dias atuais?
É necessária uma pesquisa multidisciplinar para vislumbrar um plano para uma nova sociedade do dia seguinte. Isso nos garantiria um futuro mais sustentável. Onde está a ciência política pesquisando o papel da China, dos Estados Unidos e da União Europeia? O que acontece com a social-democracia europeia? Como é possível que Scholz [ministro das Finanças alemão] traia seus colegas na Itália e na Espanha? São necessários sociólogos, feministas e especialistas em diversidade, economistas, jornalistas, filósofos, historiadores e professores de literatura que analisem a narrativa do desastre. É parecido com o terremoto de Lisboa? É um tsunami? Sou moderadamente otimista, mas as possibilidades são menores, caso não comecemos a planejar esse futuro, incluindo os especialistas em humanidades.
Mencionou os jornalistas. Uma das consequências desta crise é que a recessão econômica tornará inviável a sobrevivência de muitos meios de comunicação. O que isto significa para a sociedade?
É óbvio que nesta crise se trabalha mais online, ou seja, dependemos dos Estados Unidos mais que antes. Os europeus estão produzindo valor agregado para os estadunidenses. Cada conferência na rede Zoom, Skype, Facebook, Netflix é consumo, mas não é europeu. Uma medida razoável seria fechar as redes sociais estadunidenses na União Europeia para relançar nossas redes baseadas no jornalismo de qualidade. Por exemplo, uma rede social do El País, ou seja, com todas as vantagens de uma rede social, mas gerida por jornalistas especialistas.
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“Planejar o futuro incluindo os especialistas em humanidades”. Entrevista com Markus Gabriel - Instituto Humanitas Unisinos - IHU