13 Agosto 2020
“Existem muitas interfaces projetadas para a sociedade industrial que devem ser redesenhadas. Instituições nascidas na Modernidade, como parlamentos e partidos políticos, também fazem parte dessa lista. A covid-19 destacou as limitações dos sistemas de representação e tomada de decisão. Não fico feliz em dizê-lo e não estou interessado em abrir uma polêmica, mas estou quase convencido de que certas decisões – como o confinamento de algumas áreas do território no início da pandemia ou durante surtos – teriam tido mais sucesso nas mãos de uma inteligência artificial alimentada com bons dados”, escreve Carlos A. Scolari, pesquisador de interativos digitais, transmídia e ecologia dos meios de comunicação.
Carlos Scolari é professor catedrático em Teoria e Análise da Comunicação Digital Interativa no Departamento de Comunicação da Universidade Pompeu Fabra, em Barcelona, Espanha, e coordenador do Programa de Doutorado em Comunicação, da mesma universidade. Sua última publicação é “Media Evolution. Sobre el origen das especies mediáticas” (Buenos Aires: La Marca, 2019).
O artigo é publicado por Hipermediaciones, 08-08-2020. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
A maior parte das interfaces das quais participamos está demonstrando sua obsolescência e incapacidade para se adaptar à brutal transformação causada pela pandemia. Se, como escrevi em Las leyes de la interfaz (2018), uma interface é uma rede de atores humanos, institucionais e tecnológicos que mantém uma série de relações, então está ficando cada vez mais claro que essas redes apenas suportam o embate de uma realidade implacável. Estamos na mesma situação que mencionava Jesús Martín-Barbero na primeira página do seu clássico De los medios a las mediaciones (1987):
"Não foram apenas as limitações do modelo hegemônico que nos forçaram a mudar paradigmas; foram os “teimosos fatos” e os agudos processos sociais da América Latina os que mudaram os objetos de estudo aos pesquisadores da comunicação".
Mais uma vez, são os “teimosos fatos” os que nos levam a colocar em discussão nossos conceitos, teorias e modelos de análises. Esta entrada está dedicada a algumas interfaces que, desde antes da pandemia, começavam a mostrar suas limitações e agora, frente ao tsunami viral, tiveram que fazer um curso acelerado de adaptação para gerir a mudança.
Em breve é muito provável que a escola que conhecemos durante os dois últimos séculos, essa linha de (re)produção industrial do conhecimento, seja substituída pelo âmbito onde pequenos grupos alternaram-se na sala para desenvolver trabalhos práticos e comentar conteúdos que foram vistos antes on-line em alguma plataforma. Apesar dos especialistas em inovação educativa estarem há décadas propondo o “learning by doing” e o “trabalho por projetos”, foi um microscópico e mortal vírus o acelerador desta transição.
Como qualquer outro processo de mudança, também neste caso deverá ser enfrentada uma infinidade de conflitos e tensões. Se algo ficou claro durante as primeiras semanas de quarentena é que nenhum dos atores da interface educativa estava preparado para enfrentar o desafio: ministérios e escolas sem planos de contingência, professores que não sabiam gerir uma videoconferência, lares sem a conectividade adequada, pais e mães que deveriam se dedicar à docência em casa enquanto teletrabalhavam, etc. O abismo digital se intensificou de maneira brutal.
O redesenho da interface educativa em todos os seus níveis, desde o pré-escolar ao universitário, deverá partir da traumática experiência que vivemos em 2020. Falta muito a ser feito: tudo indica que vamos rumo a um sistema educativo semipresencial onde as atividades desenvolver-se-ão tanto na aula como nas diferentes plataformas. Não descartemos que a oposição educação presencial / não presencial perca o sentido daqui a alguns anos. No artigo A obsolescência das interfaces, publicado por CCCB (e traduzido para o português pela IHU On-Line) encontram-se mais reflexões sobre as interfaces educativas.
Durante o século XX os escritórios deixaram de ser uma prolongação das fábricas para se converterem em extensões dos lares, já que incluíam lugares para comer, máquinas de café e, com um pouco de sorte, alguns privilegiados como Don Draper (Mad Men) inclusive podiam tirar uma sesta. Se a revolução industrial moveu a força de trabalho do campo para a linha de montagem, a revolução dos serviços os deslocou da fábrica para os escritórios. Em 1956, William Whyte, autor de The Organization Man, definiu o emprego como “alguém que havia deixado seu lar, tanto espiritual quanto fisicamente”.
Nos últimos anos, as corporações da West Coast estadunidense levaram esta substituição até suas últimas consequências, convertendo seus escritórios no “primeiro lar” da força de trabalho digital (Google como paradigma do novo entorno laboral multitasking e cool). A covid-19 está mudando essa concepção dos entornos laborais. Na atualidade, as grandes corporações digitais estão apostando no teletrabalho e o Financial Times fala inclusive de “the rise and fall of the office” (ascensão e queda dos escritórios). Tal como acabamos de ver sobre a educação, é muito provável que certos âmbitos do trabalho administrativo também se direcionem a um regime misto onde alterne-se o teletrabalho com momentos pontuais nos escritórios.
No artigo “Covid-19: Is this what the office of the future will look like?”, publicado por World Economic Forum, anteciparam-se vários possíveis cenários, desde a criação de estações de trabalho virtuais até a identificação de “zonas de exclusão” em torno de cada escritório. As dúvidas e incertezas, mais uma vez, não são poucas: até onde o desejo de vigiar a força de trabalho não terminará gerando dispositivos de controle à distância que fariam Frederick Taylor empalidecer? O que acontecerá com os mitificados espaços de co-working, criados precisamente para uma interação próxima entre os sujeitos? Afinal de contas, os irrespiráveis e claustrofóbicos escritórios do passado (o “cubo” do qual nos fala Nikil Saval em Cubed: A secret history of the workplace) são talvez os lugares mais assépticos e seguros em tempos de pandemia...
Por “interfaces culturais” entendo diferentes redes de atores que têm como função principal a distribuição de bens e a realização de atividades artísticas e culturais no sentido mais amplo, desde bibliotecas até cinemas, livrarias e museus. Todas estas interfaces foram desenhadas há séculos (o cinema um pouco depois) para dar respostas a certas necessidades da sociedade como o acesso democrático ao conhecimento, consolidação de um relato nacional nas artes, prestígio das grandes capitais, etc. Igualmente as escolas, as bibliotecas e as livrarias vêm há anos sofrendo a perda da centralidade do livro impresso nos processos educativos e culturais. Além da ameaçadora presença da Amazon, foi preciso que a covid-19 chegasse para que muitas livrarias se organizassem em sistema de vendas on-line e distribuição a domicílio. O redesenho destes espaços book-centred é um imperativo se desejam sobreviver na nova ecologia midiática.
Em relação aos museus, nas últimas décadas grandes instituições optaram pela massificação e organização de eventos de impacto planetário, como a exposição Leonardo da Vinci no Louvre. O confinamento imposto pela covid-19 significou um golpe para os grandes museus. Segundo Miguel Falomir, diretor do museu de El Prado, estima-se que as perdas com a pausa na venda de ingressos cheguem a dois milhões de euros por mês. Assim que fechou as portas, a 12 de março, o museu aumentou a sua presença nas redes ao atingir mais de 12 milhões de visitas em menos de dois meses (+ 232% face ao mesmo período do ano anterior). Vale destacar que El Prado já vinha explorando novas formas de apresentar seu acervo, por exemplo, convidar o artista italiano Rino Stefano Tagliafierro para animar suas pinturas.
Em Las Leyes de la interfaz (2018) propus o seguinte princípio: “as interfaces não se apagam, elas se transformam” (6ª Lei). Esta lei é obviamente inspirada por um dos aforismos de Marshall McLuhan (“O conteúdo de um novo meio é um meio antigo”). Isso significa que as novas interfaces recuperarão atores ou conjuntos de atores das interfaces anteriores. A volta do cinema drive-in, lugar clássico na cultura de massa de meados do século XX, é um bom exemplo desses processos de recuperação. Esses espaços ao ar livre poderiam ser usados para exibir não apenas longas-metragens, mas também para receber shows ao vivo, sem colocar em risco a saúde do público.
Resumindo: cinemas e museus, assim como interfaces educacionais, terão que superar a oposição entre presencial / não presencial para considerar um modelo híbrido de gestão de seus processos e ativos.
Esta entrada poderia continuar por páginas e páginas. Existem muitas interfaces projetadas para a sociedade industrial que devem ser redesenhadas. Instituições nascidas na Modernidade, como parlamentos e partidos políticos, também fazem parte dessa lista. A covid-19 destacou as limitações dos sistemas de representação e tomada de decisão. Não fico feliz em dizê-lo e não estou interessado em abrir uma polêmica, mas estou quase convencido de que certas decisões – como o confinamento de algumas áreas do território no início da pandemia ou durante surtos – teriam tido mais sucesso nas mãos de uma inteligência artificial alimentada com bons dados (nem toda IA é uma Skynet do mal que quer nos eliminar...).
Mas não saiamos do assunto: interfaces políticas, como as educacionais ou culturais, também devem ser redesenhadas e adaptadas a uma sociedade muito diferente daquela que as gerou. E quando falamos em redesenhar interfaces políticas, não nos referimos apenas a montar uma parede com telas dentro de um parlamento: trata-se de repensar seus atores, relações e processos de forma radical. Nenhuma das interfaces mencionadas até agora, sejam elas educacionais, culturais, laborais ou políticas, mudará simplesmente com a incorporação de um ator tecnológico (digital?) à rede de atores. O importante é transformar relações e processos, e para isso os atores tecnológicos podem ajudar em algumas coisas, mas, em geral, não são tão importantes como costumamos acreditar.
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Novas interfaces para um mundo pós-pandemia. Artigo de Carlos Scolari - Instituto Humanitas Unisinos - IHU