01 Março 2025
Ilan Pappé (Haifa, 1954) é um dos mais reconhecidos historiadores israelenses, justamente por ter desmantelado as principais mentiras sobre as quais Israel construiu sua história. Agora, após ser uma das vozes internacionais mais incansáveis na denúncia do genocídio em Gaza, publica Israel vs. Palestina: A Mais Breve História do Conflito (Ideias de Ler, 2025), no qual relembra como a limpeza étnica dos palestinos não começou em 1948, mas nos anos 1920, quando o Mandato Britânico da Palestina permitiu que grupos sionistas se armassem e formassem um grupo paramilitar para expulsar os camponeses palestinos de suas terras, empobrecendo-os e condenando-os a viver em subúrbios como deslocados.
A entrevista é de Patricia Simón, publicada por La Marea, 28-02-2025. A tradução é do Cepat.
Nesse novo livro, essencial para lembrar como a violência sionista desembocou no genocídio, Pappé também explica como a Europa e os Estados Unidos apoiaram a criação do Estado judeu no Oriente Médio, antes do Holocausto, justamente por seu antissemitismo, para esvaziar seu território de judeus. Pappé destaca que a propaganda sionista no final do século XIX já apresentava os palestinos como estrangeiros em uma terra que pertencia aos judeus desde o Antigo Testamento. Mas, sobretudo, o ensaísta desmascara duas das falácias mais difundidas pelo sionismo: que a Palestina não tinha identidade nacional própria antes de 1948 e que o conflito é entre judeus e muçulmanos, sendo que os cristãos palestinos sempre tiveram um papel fundamental no movimento por uma Palestina árabe.
Pappé diferencia o colonialismo clássico, que busca criar súditos leais à metrópole, do assentamento de colonos praticado por Israel, que busca “substituir completamente a sociedade nativa pela do colonizador”. Para isto, força o seu êxodo ou a aniquila: “O processo não se limita à força bruta. Os colonos apagam a história das sociedades nativas e a remontam à época de sua chegada. Os velhos costumes desaparecem e os colonos se apropriam da comida autóctone. Em resumo, a terra não está vazia e por isso os colonos a esvaziam”, escreve. Nesse sentido, lembra que são justamente os fundamentalistas cristãos dos Estados Unidos o grupo de pressão pró-israelense mais importante e o que defende “a anexação e a judaização da Cisjordânia ocupada por Israel”.
Em 2007, Pappé teve que se exilar com sua família para o Reino Unido devido às ameaças que recebia em Israel por causa de seu trabalho. Desde então, é professor na Universidade de Exeter. Ele nos atende por videochamada horas após o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, publicar nas redes sociais um vídeo delirante e criminoso sobre seus planos para a Faixa de Gaza, criado com Inteligência Artificial.
Você dá crédito ao anúncio de Trump de deslocar à força os dois milhões de habitantes de Gaza para outros países e transformar a Faixa em um resort de luxo?
Não considero que seja possível, não acredito que o Egito e a Jordânia o aceitem, nem, é claro, que os palestinos o aceitem. Contudo, o anúncio em si é muito perigoso e causará muito sofrimento porque representa um forte apoio às forças políticas de Israel que acreditam que esta é uma solução ideal. Transmite a elas a sensação de que há um apoio internacional para fazer o que desejavam antes, mas duvidavam se realmente podiam fazer. São as mesmas forças políticas que defenderam junto a Trump a limpeza étnica dos palestinos não só da Faixa de Gaza, mas também da Cisjordânia. Nos últimos dias, Israel realizou uma limpeza étnica de 40.000 pessoas que viviam em campos de refugiados da Cisjordânia. Isto foi possível graças ao apoio de Trump.
Durante os quinze meses em que Israel praticou um genocídio em Gaza, a grande maioria dos meios de comunicação israelenses não mostrou uma única imagem das vítimas da Faixa e os poucos que mostraram, como o Haaretz e a +972, estão sendo perseguidos pelo Executivo de Netanyahu. Mas, para além dos meios de comunicação israelenses, qual é a responsabilidade da imensa maioria dos meios de comunicação ocidentais pela impunidade de Israel e seus crimes contra a humanidade?
Penso que os meios de comunicação ocidentais tiveram um papel crucial ao não cobrir de forma verdadeira e profissional a verdade do que está acontecendo. Sabemos todos os nomes dos reféns israelenses, mas a maioria deles não citou o nome de nenhum dos bebês palestinos assassinados. Isto contribui para a desumanização e a demonização dos palestinos e para a impunidade de Israel em seguir com suas políticas de genocídio, limpeza étnica e opressão. A história julgará os meios de comunicação ocidentais por ser cúmplices dos crimes contra a humanidade cometidos por Israel, por não os denunciar e por ser porta-vozes da narrativa do opressor, usando sua linguagem, suas afirmações e seus argumentos.
Isso fez com que, no Sul Global, acabassem perdendo a confiança nos meios de comunicação ocidentais. Por exemplo, a BBC, que é transmitida em 41 idiomas, o que significa que espera ser respeitada como uma fonte veraz de informação, fez uma cobertura escandalosa sobre o genocídio de Gaza. Por isso, agora é vista com suspeita no mundo árabe e muçulmano. Os meios de comunicação ocidentais pagarão por sua cobertura desastrosa do genocídio de Gaza.
Você sofreu ameaças contra a sua vida e todos os tipos de assédio por causa do seu trabalho. Como está lidando com os ataques contra a Relatora Especial sobre os Territórios Ocupados, Francesca Albanese, incluindo as acusações de antissemitismo?
Francesca é uma boa amiga minha e não é, em absoluto, antissemita. Todas essas acusações se devem ao fato de dizer a verdade sobre o que acontece na Palestina, que é uma realidade muito dura. Não conseguirão impedi-la de realizar o seu trabalho. É muito triste ver que, como não conseguem refutar seus relatórios e análises com provas e fatos, dedicam-se a atacá-la. Isto é algo sofrido por muitos estudiosos, observadores e ativistas corajosos que conhecem a situação na Palestina e sentem o dever de dizer ao mundo o que acontece. Os profissionais que têm talento e êxito são os mais acusados de antissemitismo porque é a única forma que existe de minar a mensagem importante que transmitem.
Eu esperava que a Organização das Nações Unidas protegesse e defendesse mais Francesca Albanese, mas, mesmo assim, não se renderá. Seu trabalho é muito importante, seus relatórios serão ainda mais importantes nos próximos anos e os historiadores os utilizarão para entender o que aconteceu. Francesca Albanese será lembrada como alguém que esteve do lado certo da história.
Como a impunidade de Israel, com a normalização de seus crimes contra a humanidade, o genocídio, a ocupação, o regime de apartheid, a limpeza étnica..., afeta o resto do mundo?
Penso que é uma demonstração, especialmente para as pessoas do Sul Global, da hipocrisia e da dupla medida do Ocidente: se aqueles que cometem crimes contra a humanidade e de guerra são seus aliados, não os critica. A atitude ocidental em relação a Gaza terá um enorme impacto na validade do sistema judicial internacional, das organizações internacionais e na capacidade da comunidade internacional de enfrentar conjuntamente os principais desafios globais, como o aquecimento global, a pobreza, a fome. São assuntos que não podem ser resolvidos sem a cooperação e a justiça internacionais.
Com o genocídio de Gaza, as pessoas agora não acreditam em todo esse sistema de justiça internacional, porque não só deixou de ser empregado para defender os palestinos, como também foi usado como escudo para proteger aqueles que os atacam. É muito preocupante para a cooperação mundial no futuro.
Você explicou que os neonazistas, os neofascistas e a extrema direita são os grandes aliados de Israel porque, ainda que sejam antissemitas, são agora, antes de tudo, islamofóbicos e antiárabes. Levando em consideração que governam nos Estados Unidos e nunca estiveram tão fortes em muitos parlamentos europeus, onde podemos ver a esperança para o povo palestino?
Todos nós devemos almejar a descolonização da Palestina histórica. E devemos promover a construção de um sistema político democrático baseado na igualdade, na democracia e nos direitos humanos e civis, o que não é o caso agora. E a melhor estrutura política para respeitar esses valores é um único Estado democrático. A elite política mundial e muitos políticos palestinos seguem fascinados com a solução dos dois Estados. Não tenho certeza de que isto seja o que a maioria dos palestinos deseja, e não podemos saber, pois atualmente não temos uma organização de libertação democrática. Tenho certeza de que a teremos algum dia.
Não vejo qualquer forma de avançar se não respeitarmos o princípio da igualdade, que inclui o direito de retorno dos refugiados. E a única estrutura política que pode garantir esse tipo de igualdade seria um maravilhoso Estado protetor entre o Rio Jordão e o Mediterrâneo. É nisto que deveríamos nos concentrar porque mesmo os opressores não têm outro futuro a não ser o da guerra e a violência. Um Estado democrático, que acabasse com o apartheid e as opressões, poderia normalizar tanto a vida dos palestinos quanto dos israelenses.
Faz tempo que você alerta que a limpeza étnica que Israel está realizando agora na Cisjordânia, provavelmente, seguirá com uma tentativa de anexar 60% de seu território, a chamada zona C. Além disso, alerta que é possível que a limpeza étnica se estenda aos israelenses palestinos, ou seja, palestinos com cidadania israelense. Que papel este setor da população pode desempenhar nos próximos anos?
Costumam ser os esquecidos e embora não sofram um genocídio como em Gaza, nem sejam alvo de limpeza étnica como os palestinos da Cisjordânia, estão sob um regime muito opressivo. Não possuem liberdade de expressão. Os israelenses permitem que as gangues criminosas os aterrorizem dentro de suas próprias cidades e bairros. Toda vez que demonstram compaixão pelos palestinos – às vezes, seus próprios familiares –, correm o risco de serem demitidos de seus empregos ou presos. E acredito que a situação deles vai piorar porque a elite política atual não quer se livrar apenas dos palestinos da Cisjordânia e da Faixa de Gaza, mas também dos dois milhões de palestinos que vivem em Israel. Acredita que tem uma oportunidade histórica para construir um Estado judeu com quase nenhum palestino. Portanto, é uma comunidade em perigo.
Por outro lado, podem desempenhar um papel muito positivo. Se finalmente formos na direção certa, rumo à reconciliação, serão os únicos palestinos que conhecem bem os israelenses, não apenas em sua condição de soldados ou colonos. São pessoas que vivem com os israelenses há 75 anos. Têm negócios em sociedade e falam hebraico. Podem ser uma ponte muito importante para reconstruir a relação entre as duas comunidades no futuro. Eu gostaria que desempenhassem um papel muito importante na redefinição da Organização para a Libertação da Palestina para criar um órgão mais representativo que possa realmente abrir o caminho para um futuro menos violento, mais estável e mais promissor do que a realidade atual.
Netanyahu está tentando envolver Trump em uma guerra contra o Irã; o Exército sionista segue bombardeando a Síria e violando o cessar-fogo libanês… O primeiro-ministro israelense não vai parar enquanto não incendiar o Oriente Médio?
Seu objetivo não é lançar fogo na região, mas se manter no poder. Se para se manter no poder Netanyahu precisa incendiar a região, assim agirá. E não tem limites sobre até onde pode ir, caso considere que isto permitirá sua manutenção no poder. Se acredita que uma guerra contra o Irã lhe permitirá se livrar do caso de corrupção que há contra ele, assim agirá porque também acredita que isso o restabelecerá como o grande general e o grande líder diante da opinião pública. Por isso, estou muito preocupado que sua ambição pessoal de se manter no poder custe a vida de muitas pessoas.
Considera que estamos diante do início do fim do sionismo. Por quê?
Porque estamos vendo processos que desintegram a sociedade judaica israelense. Em primeiro lugar, há uma grande luta entre judeus seculares e judeus religiosos. Têm muito pouco em comum. Muitos daqueles que acreditavam que a sociedade judaica deveria ao menos ser liberal e democrática estão saindo de Israel e não esperam retornar. E quanto mais direitista e neossionista a política de Israel se tornar, mais isolado o país ficará e mais problemas econômicos terá. Todos os países dependem do resto do mundo. Nenhum pode se manter sozinho.
De fato, seu Exército também não é tão poderoso quanto pensávamos. Lembremos que o Exército sionista luta contra movimentos guerrilheiros, que não têm aviões, nem tanques, e não os derrotou completamente. É um exército que emprega milhares de soldados para derrotar um pequeno número de jovens palestinos na Cisjordânia.
A comunidade internacional está isolando Israel, o que também pode afetar os governos no futuro. Sendo assim, estamos diante de um longo processo, mas parece evidente que não é um Estado viável, caso se baseie na premissa de que, para existir, precisa estar permanentemente em guerra e vencê-la. E muitas pessoas em Israel consideram essa opção muito perigosa e não querem fazer parte dela porque ninguém lhes oferece paz, mas, sim, a promessa política de que sempre venceremos a guerra.
E o que significa vencer? Vemos uma fragilidade do Exército, uma enorme fragilidade econômica, um isolamento, uma divisão entre as comunidades judaicas e o fato de que os palestinos permanecem lá e não abandonarão a sua luta. Todos esses processos destrutivos de Israel acabam terminando em um vazio político. Talvez os jovens pudessem preenchê-lo, quem sabe. O que está claro é que estamos diante do início do fim do sionismo, o que não sabemos é quando e como.
Quais são as estratégias mais eficazes para defender, a partir da sociedade civil, os direitos humanos do povo palestino?
O mais importante é nos livrarmos da ideia de que o papel da comunidade internacional é mediar ou ajudar os dois lados a encontrar uma solução. Não. O papel da comunidade internacional é defender os palestinos porque temos um governo em Israel que quer aniquilá-los. Em especial, a Europa ocidental deve socorrer os palestinos e defendê-los, já que foi ela que criou este problema e permite que continue existindo. Claro, seria útil que outros governos do mundo se unissem, porque para o futuro do mundo precisamos acabar com a violência na Palestina. Precisamos disso para poder avançar e enfrentar outros desafios.