17 Dezembro 2024
A Relatora Especial sobre a situação dos direitos humanos nos territórios palestinos ocupados desde 1967, Francesca Albanese, reage nesta entrevista à decisão do Tribunal Penal Internacional de emitir ordens de prisão contra autoridades israelenses.
A reportagem é de Frank Barat, publicada por El Salto, 16-12-2024.
No dia 22 de novembro, Frank Barat manteve esta conversa com Francesca Albanese, relatora especial das Nações Unidas sobre os territórios palestinos, em torno das recentes ordens de prisão emitidas pelo Tribunal Penal Internacional contra Benjamin Netanyahu, Yoav Gallant e Mohammed Deif.
Esta entrevista faz parte de uma série de diálogos que Frank Barat vem conduzindo desde outubro de 2023, disponíveis em seu canal no YouTube, com legendas em espanhol feitas pelo coletivo Viva Palestina Libre - Subtítulos contra a ocupação, que também se encarrega de editar os diálogos em formato de texto para este meio.
É realmente ótimo tê-la aqui hoje. Sei o quão ocupada você está, e por isso agradeço muito. Queria falar com você, obviamente, sobre o Tribunal Penal Internacional, que voltou à cena depois de meses e meses, com ordens de prisão contra Benjamin Netanyahu, Yoav Gallant e Mohammed Deif, líder do Hamas. Israel afirmou que assassinou Mohammed Deif em agosto, então não temos certeza se ele está vivo ou não. Mas, obviamente, vou focar mais no que isso significa em relação a Netanyahu e Gallant. Vou fazer uma breve recapitulação. No dia 21 de maio, Karim Khan, promotor do Tribunal Penal Internacional, pediu ao Tribunal que emitisse ordens de prisão contra Netanyahu, Gallant, Haniyeh, Deif e Sinwar. Haniyeh foi assassinado no Irã. Sinwar morreu recentemente em Gaza. E, novamente, não sabemos se Deif está vivo ou não. Após o pedido de Karim Khan em maio, sabemos que o Tribunal e alguns juízes e juízas foram submetidos a enormes pressões de diversos atores. De fato, uma das juízas, a romena, teve que deixar o Tribunal. Isso é muito incomum. Então, em agosto, Karim Khan pediu ao Tribunal uma resposta urgente ao seu pedido porque, entre maio e agosto, não soubemos nada do Tribunal. E, finalmente, ontem, sinceramente, eu não esperava mais. Já estava pensando: "Isso acabou. Não sei o que vai acontecer com o TPI, o direito internacional está morto, a justiça internacional está morta". Mas ontem — para mim, de forma inesperada — recebemos a notícia de que o Tribunal Penal Internacional voltou com as ordens de prisão contra Netanyahu, Gallant e Deif. Como você reagiu à notícia e por que isso é importante, na sua opinião?
Tenho que dizer que compartilho seus sentimentos. Quero dizer, como muitos, senti-me desanimada com o atraso, porque Israel tem sistematicamente evitado a responsabilidade durante décadas. A pressão exercida sobre a justiça internacional, e em particular sobre o TPI, levou muitos, inclusive eu, a pensar que a decisão de ontem nunca veria a luz do dia. Então, reagi — por um momento, senti-me eufórica. Houve um momento de alegria, de satisfação, pensando no que isso significa em termos de prestação de contas, embora os problemas no terreno sejam muitos. E não acredito que este passo em particular, embora necessário, vá melhorar a vida das pessoas palestinas em Gaza no curto prazo. Quero dizer, nas últimas 24 horas, os ataques contra a população de Gaza se intensificaram. Mas esta decisão representa um passo histórico e há muito esperado para o desmantelamento das décadas de impunidade de que Israel tem desfrutado. É um momento que assinala um ponto de inflexão fundamental na busca global por justiça, responsabilizando os líderes israelenses e também o aparato estatal que permitiu essas décadas de impunidade, incluindo o que, para mim, é sem nenhuma dúvida, um genocídio. Assim, é uma oportunidade para responsabilizar este Estado, enquanto estrutura, por orquestrar e perpetuar os crimes internacionais mais graves.
E o que acontece agora? Como você sabe, após um ano de genocídio, houve muito pouca ação para realmente condenar Israel. Quero dizer, Israel foi condenado, mas foram tomadas pouquíssimas medidas concretas para deter o genocídio. Muitas pessoas, incluindo eu, perderam a confiança na justiça internacional, no direito internacional, no direito internacional humanitário. Mas com o TPI é diferente, não é? É uma decisão vinculante. O que isso significa agora para os 124 Estados que são signatários do TPI e do Estatuto de Roma? Eles têm a obrigação vinculante de agir?
Sim. Bem, permita-me dizer que, quando falamos sobre o direito à autodeterminação do povo palestino, este foi reafirmado de maneira crucial pela Corte Internacional de Justiça este ano, ordenando o imediato — quero dizer, o mais rápido possível — desmantelamento da ocupação, do aparato militar na Cisjordânia, na Faixa de Gaza e em Jerusalém Oriental, o desmantelamento dos assentamentos e o fim do controle de Israel sobre os recursos naturais palestinos. Tudo isso é vinculante porque se baseia em obrigações erga omnes dos Estados membros. Há um elemento crítico da lei de responsabilidade estatal que foi violado. Mas também as medidas provisórias ordenadas pela Corte Internacional de Justiça este ano no caso de genocídio iniciado pela África do Sul são vinculantes.
Mas você tem razão, isso adiciona algo mais porque impõe uma obrigação a todos os Estados signatários do Estatuto de Roma de prender os responsáveis identificados, ou seja, os dois líderes israelenses e o líder do Hamas.
Este é um passo crucial para pôr fim a décadas de sofrimento e garantir a responsabilização. Em particular, trata-se de um teste para o mundo ocidental, porque — e aqui discordo de você — não é que todos os Estados signatários tenham feito muito pouco. Os Estados do Sul Global têm feito mais do que qualquer outro, especialmente a África do Sul. Mas este é um teste para o mundo ocidental, em especial os Estados Parte do Estatuto de Roma, para demonstrar seu compromisso com a justiça internacional, com o direito internacional. E aqui, como já disse várias vezes, o sistema encontra-se em um ponto de ruptura. Ou ele se fortalece por meio da responsabilização e do respeito aos princípios fundamentais do direito internacional, ou ele colapsará.
Concretamente, digamos que, se Netanyahu, Gallant ou Mohammed Deif viajarem amanhã para a Espanha, o que as autoridades espanholas estão obrigadas a fazer?
Detê-los. Prendê-los e garantir que sejam transferidos para Haia, para que o julgamento comece. Portanto, veja, as leis internacionais que foram violadas são muito claras, e as provas de crimes e violações são esmagadoras além do que foi usado, dentro do escopo e dos limites da investigação em curso iniciada pela Promotoria. Mas sabemos que o TPI não tem poder para executar as ordens de prisão por si mesmo. Esse poder cabe aos governos do mundo. Sim, existe a obrigação de prender.
São muito interessantes as reações dos estados membros. É um claro preto no branco. Há estados membros que disseram que cumpririam as ordens de prisão do TPI, o que para mim é totalmente óbvio. Há estados membros que realmente afirmaram o insustentável, que usaram argumentos que não se sustentam; acusando o Tribunal de ser antissemita, acusando o Tribunal de ter feito uma comparação entre líderes israelenses e terroristas. Novamente, isso denota o imenso viés que recai sobre esses países. Mas, novamente, quero sublinhar que os governos estão moral e legalmente obrigados a garantir que os criminosos de guerra não fiquem impunes.
Permita-me dizer que existe o outro lado da moeda. O que faz o Tribunal Penal Internacional é operar, administrar justiça sobre crimes internacionais com base na complementaridade. Isso não absolve os estados membros de sua responsabilidade de investigar e julgar os crimes internacionais, incluindo o crime de genocídio. Portanto, espero que os estados membros iniciem suas próprias investigações sobre crimes de guerra, crimes contra a humanidade, incluindo o crime de apartheid e o crime de genocídio cometidos nos territórios palestinos ocupados. E há uma responsabilidade ainda mais estrita porque várias pessoas, supostamente responsáveis, aparentemente envolvidas nesses crimes, têm dupla nacionalidade. Várias dessas pessoas têm nacionalidade do Reino Unido, França, Bélgica, Itália — descobri que até de países árabes —, Austrália, Canadá, Estados Unidos. É uma responsabilidade ainda maior a que esses estados têm com a justiça, assegurando que seus cidadãos sejam levados à justiça se cometeram ou são suspeitos de ter cometido crimes.
De fato, queria perguntar sobre isso. É de alguma forma o início da investigação ou o fim? O que quero dizer com isso é: o TPI poderia agora emitir mais ordens de detenção? Por exemplo, seu recente relatório, O Genocídio como Supressão Colonial, focava muito também no que está ocorrendo na Cisjordânia. Então, o TPI poderia voltar com ordens de prisão para os colonos e para outras pessoas, como é o caso de altos cargos?
Sim, acredito que não há dúvida de que este é o começo de um processo de responsabilização potencialmente muito mais amplo, por uma série de razões. Em primeiro lugar, porque é isso que o escritório do procurador, por meio do próprio procurador, declarou meses atrás, quando foram solicitadas as ordens de detenção. Isso deixa espaço para mais ordens de detenção, mas também para mais crimes. No início, fiquei... não decepcionada, mas surpresa pelo alcance limitado da investigação iniciada pela Procuradoria porque observou apenas o que ocorreu no território palestino ocupado, em Gaza em particular, após 7 de outubro. Mas e o que aconteceu antes, que equivale a crimes de guerra e crimes contra a humanidade? Assim, sem dúvida, deveria ser ampliado. Mas também acredito que há questões sobre os crimes sobre os quais as atuais ordens de prisão foram emitidas, porque temos o crime de submeter civis à fome como método de guerra e como crime de guerra. O crime de extermínio não foi identificado, não aparece nas ordens de prisão.
Isso significa que o Tribunal não está investigando o extermínio, como alguém afirmou? Não acredito, porque entendo que o escritório do Procurador relacionou o extermínio principalmente à fome e à falta de ajuda humanitária. Mas, de fato, em minha opinião, e ali a evidência do extermínio ainda é limitada porque, naquela época, até a data em que a investigação foi encerrada, que é maio deste ano, apenas 46 pessoas... “apenas” 46 pessoas haviam morrido de fome, de acordo com os relatórios. Mas há extermínio, e os números são aterrorizantes. Estamos falando de quase 45 mil pessoas assassinadas, das quais há registro, principalmente por bombardeios e tiros de franco-atiradores, incluindo 17 mil meninas e meninos. Assim, o crime de extermínio ainda deve ser investigado e levado a julgamento, novamente conectado a outro tipo de provas, não vinculado à fome em si.
Li o comunicado de imprensa que o Tribunal emitiu em 21 de novembro. O Tribunal disse que acredita firmemente que esses crimes continuam neste momento. E também, acredito que mencionaram algo muito importante. Mencionaram o ataque intencional à população civil. Porque ouvimos uma e outra vez, do escritório de imprensa israelense, do primeiro-ministro israelense, dos EUA, de muitas pessoas nos principais meios de comunicação: “Sim, muitas pessoas civis morreram, mas pobres delas, são danos colaterais”. Mas agora o Tribunal diz que é intencional. Isso é algo muito sério, certo?
Absolutamente. Há muitos elementos que me surpreenderam nas ordens de detenção, e gostaria de voltar particularmente a alguns deles. Mas definitivamente, sem dizê-lo, há o reconhecimento do que denunciei como camuflagem humanitária, o fato de que Israel usou o conceito de direito internacional humanitário que, se tivesse sido observado, teria evitado essa quantidade de pessoas assassinadas. Por exemplo, Israel não negou o número de pessoas mortas. Sim, pode ser que às vezes tenha reclamado que estavam inflados, mas como agora foram comprovados e verificados com sobrenomes, números de identidade, foram vinculados às suas famílias, não se pode negar.
Contudo, Israel justificou essas mortes culpando o Hamas, dizendo que o Hamas se escondia e utilizava a população de Gaza como escudos humanos. Isso não foi demonstrado. Não digo que isso não tenha ocorrido. Mas não apenas não há provas de que o Hamas tenha utilizado a população palestina como escudos humanos como método de guerra, mas há provas de que Israel utilizou a população palestina como escudos humanos.
Além disso, no direito internacional, não é permitido interpretar o uso de escudos humanos como um argumento geral para obscurecer o fato de que a guerra de guerrilhas implica o movimento de combatentes em zonas densamente povoadas, o que exige que as partes beligerantes tomem mais precauções. Outro elemento são os danos colaterais. Isso é um insulto ao significado puro dos princípios de distinção, precaução e proporcionalidade na condução militar. Também há a maneira como Israel utilizou o conceito de ordens de evacuação e zonas seguras. Sabemos que as ordens de evacuação emitidas não cumprem o direito internacional porque violam o princípio de distinção e o princípio de necessidade militar. Mas, além disso, que precauções foram tomadas? Como foi assegurada a segurança das palestinas deslocadas à força? Essas pessoas não foram evacuadas; foram deslocadas à força. Onde estavam os abrigos? Onde estava a ajuda humanitária, os alimentos, a assistência médica fornecida a essas pessoas? Além disso, as zonas seguras foram bombardeadas. Há relatos de pessoas que foram queimadas vivas em tendas de campanha.
Veja, isso é insustentável. E fico muito satisfeita que o Tribunal tenha tratado disso.
Termino com duas perguntas em uma. A primeira é: você se preocupa que Israel realmente reaja de forma ainda mais feroz em Gaza? E a segunda parte é: por que você achou importante escrever este relatório, O Genocídio como Supressão Colonial?
Em primeiro lugar, este é o segundo relatório que escrevo sobre o tema do genocídio. É um relatório que claramente não estava em minha mente quando comecei e nos primeiros meses de meu mandato como relatora especial. Quando escrevi Anatomia de um Genocídio, destacando que havia motivos razoáveis para acreditar que Israel havia cometido atos de genocídio e que, de fato, havia utilizado o direito internacional humanitário como camuflagem para seus crimes e conduta, pensei que isso contribuiria, por um lado, para o trabalho do Tribunal. E, de certa forma, contribuiu, porque a equipe jurídica sul-africana utilizou alguns dos argumentos que apresentei.
Mas também, eu esperava uma resposta maior dos estados membros, uma pressão mais significativa, especialmente porque há uma obrigação mencionada pelo Tribunal para os estados membros: não transferir armas para um estado que possa estar cometendo atrocidades. Isso foi estabelecido no caso Nicarágua contra Alemanha. Após a publicação de meu relatório, Anatomia de um Genocídio, percebi — e isso se conecta à primeira pergunta que você fez — que, em cada desenvolvimento legal no nível da justiça internacional, houve uma aparente retaliação contra a Faixa de Gaza. Certos massacres ocorreram imediatamente após medidas provisórias da Corte Internacional de Justiça ou das ordens de prisão do Tribunal Penal Internacional. O mesmo aconteceu ontem. Como mencionei, ainda preciso revisar todas as evidências que estão surgindo. Mas, nas últimas 24 horas, recebi notícias de nove massacres que foram realizados. Estou realmente assustada com o impacto que esse importante acontecimento possa ter sobre a população de Gaza.
Quanto ao meu relatório, por que escrevi um segundo relatório? Porque o genocídio continuava. E continuava como parte de uma longa trajetória de eliminação do povo palestino. Especialmente nos últimos seis ou sete meses, os elementos de vingança e eliminação se intensificaram. Por exemplo, o discurso de líderes israelenses que querem voltar a colonizar Gaza, começando pelo norte da região. Isso está alinhado com as evidências no terreno e as recentes declarações de militares de que não permitirão que a população deslocada à força do norte de Gaza retorne. O fato de que colonos visitaram várias vezes o norte de Gaza e até fizeram planos sobre como reconstruir os assentamentos, o contínuo apelo ao deslocamento forçado e à limpeza étnica de todo o território palestino ocupado, e a constante apropriação de terras na Cisjordânia.
Tomei distância de tudo isso e me perguntei: qual é o plano aqui? Porque a intenção genocida é bastante clara, mas precisa ser entendida além de qualquer dúvida razoável. Por isso me refiro ao Grande Israel. O Grande Israel tem sido buscado desde a fundação do Estado de Israel e desde o início da ocupação do que restava da Palestina histórica. Entendo que houve oposição a isso dentro de Israel, entre muitas pessoas, incluindo no sistema militar. No entanto, os fatos no terreno revelam que esse plano continuou. Hoje, 60% da Faixa de Gaza está completamente sob controle de Israel. Jerusalém Oriental está completamente anexada, o que é um crime. O que está acontecendo em Gaza... acredito que, em linha com o que ocorreu em outros casos de genocídio, especialmente o genocídio colonial de assentamento, este genocídio está ocorrendo como um meio para um fim: para avançar o plano colonial de assentamento de Israel. Portanto, a intenção é clara e não deve ser confundida com os motivos.
Sei que os líderes israelenses disseram: “Estamos aqui para erradicar o Hamas” — seja lá o que isso signifique —, “Estamos aqui para libertar os reféns e simplesmente derrotar o Hamas”. Isso não corresponde à realidade no terreno. Esses podem ser os motivos, mas nada disso refuta a intenção principal: a determinação de apagar e desestruturar, algo que foi dito, pregado e promulgado. É uma escalada constante de violência contra os palestinos, que dura, especialmente, 57 anos de ocupação, ora em ritmo rápido, ora lento, em diferentes momentos da história. Mas, novamente, não podemos permitir que as árvores nos impeçam de ver a floresta.
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Francesca Albanese: "Os Estados devem iniciar suas próprias investigações sobre os crimes na Palestina" - Instituto Humanitas Unisinos - IHU