19 Fevereiro 2025
O Jubileu do Mundo das Comunicações evidencia a relevância da comunicação na Igreja hoje, não como mera estratégia, mas como expressão da própria fé cristã. Em meio a essa missão, a esperança, tema central do Jubileu, não se reduz a um otimismo ingênuo diante das transformações culturais e tecnológicas, mas se manifesta no testemunho profético da Igreja em sua comunicação.
O comentário é de Moisés Sbardelotto, professor da PUC Minas, mestre e doutor em Ciências da Comunicação pela Unisinos.
Entre os dias 24 e 26 de janeiro, o “mundo das comunicações” reuniu-se no Vaticano para celebrar o seu Jubileu. Essa celebração, que inaugurou os diversos jubileus previstos para o Ano Santo, reuniu jornalistas e comunicadores do mundo inteiro e, além de promover o diálogo e a reflexão entre os profissionais da área, evidenciou a importância da comunicação no contexto eclesial atual.
Tive a grata oportunidade de participar desse Jubileu, assim como de outro evento inter-relacionado, voltado especificamente para bispos referenciais e diretores nacionais da comunicação eclesial do mundo inteiro. Quero, aqui, compartilhar algumas impressões e reflexões sobre essa significativa e memorável experiência.
A decisão da Igreja de dedicar um Jubileu à comunicação é histórica e inédita. Se a relação entre o catolicismo e a comunicação não é nova – uma vez que o Concílio Vaticano II e os últimos pontífices já dedicaram diversas reflexões a esse respeito –, o reconhecimento formal da comunicação como um eixo central de celebração inclusive espiritual revela muito do modo como a Igreja compreende e se compreende nos processos midiáticos contemporâneos.
A experiência religiosa, hoje, passa por uma transformação à medida que os processos midiáticos não simplesmente “transmitem”, mas reconfiguram e ressignificam os modos de crer e de praticar a fé, naquilo que se costumou chamar de midiatização da religião. Nesse contexto, o Jubileu do Mundo das Comunicações pode ser visto como um sinal do reconhecimento da necessidade da Igreja de reavaliar sua comunicação tanto interna quanto externa.
O próprio Papa Francisco é, em certo sentido, um sintoma e uma consequência desse processo de midiatização. Sua comunicação direta, acessível e repleta de gestos comunicacionais – inclusive as ausências e os silêncios, como neste momento de fragilidade de sua saúde – é amplificada pelas dinâmicas midiáticas, gerando novas possibilidades de recepção e de interpretação de seu pontificado e enfatizando que a Igreja na contemporaneidade vive em uma relação de interdependência com as lógicas do ambiente midiático. Por isso, o reconhecimento da comunicação como um tema central de um Jubileu explicita que, hoje, de modo geral, a religião não pode mais ser entendida nem explicada sem considerar os processos comunicacionais que a embebem.
O Jubileu da Comunicação começou na sexta-feira, 24 de janeiro, com uma liturgia penitencial na Basílica de São João de Latrão, seguida de uma missa em honra a São Francisco de Sales, padroeiro dos jornalistas e dos comunicadores. A programação envolveu ainda uma peregrinação e a travessia da Porta Santa da Basílica de São Pedro. Também foram realizados diversos “diálogos na cidade”, que ocorreram simultaneamente em diferentes locais de Roma, abordando temas como comunicação e esperança, assim como o papel do jornalismo a serviço da democracia e como voz das periferias da humanidade. A programação principal foi encerrada com uma missa celebrada pelo Papa Francisco na Basílica de São Pedro no dia 26.
O ponto alto do Jubileu foi a manhã do sábado, 25. Reunidos na Sala Paulo VI, os participantes vivenciaram um momento formativo-cultural com as conferências principais da jornalista filipino-estadunidense Maria Ressa e do escritor irlandês Colum McCann.
A presença de Maria Ressa no Vaticano foi muito significativa. Ela é cofundadora e diretora-executiva do site jornalístico Rappler e autora do livro “Como enfrentar um ditador” (Ed. Companhia das Letras, 2022). Durante o mandato do presidente filipino Rodrigo Duterte (2016-2022), Ressa e sua equipe investigaram casos de corrupção no governo e o uso estatal de desinformação digital. Devido à sua atuação jornalística, em pouco mais de um ano, o governo de Duterte apresentou dez mandados de captura contra ela, que chegou a ser presa por alguns meses. Em 2021, ela recebeu o Prêmio Nobel da Paz por seus esforços para salvaguardar a liberdade de expressão como pré-condição para a democracia e a paz.
No púlpito da Sala Paulo VI, Ressa denunciou em seu discurso um processo atual de “filipinização da política estadunidense” – que, como sabemos, também foi vivido no Brasil em tempos recentes. Segundo ela, isso foi fruto de uma transformação sociotecnológica recente: “Em busca de poder e dinheiro, a tecnologia permitiu uma manipulação insidiosa no nível celular da democracia, ou seja, no nível de cada um de nós – os eleitores – microdireccionando o medo, a raiva e o ódio; semeando metanarrativas que destruíram a confiança”.
E foi ainda mais direta: “As Big Techs transformaram as mídias sociais de um instrumento de conexão em uma arma de engenharia comportamental de massa”, denunciando que essas plataformas exploram as nossas vulnerabilidades psicológicas mais profundas. “Elas monetizam a nossa indignação e o nosso ódio; amplificam as nossas divisões; e corroem sistematicamente a nossa capacidade de pensar com nuance e a nossa capacidade de empatia.”
Segundo ela, a democracia depende de três elementos interligados – fatos, verdade e confiança: “Sem fatos, não há verdade. Sem verdade, não se pode ter confiança. Sem esses três, não temos uma realidade partilhada, não podemos resolver nenhum problema. Não podemos ter jornalismo, não podemos ter comunicação, não podemos ter democracia”.
Ressa criticou ainda a recente decisão de Mark Zuckerberg, dono e presidente da empresa Meta, de abrir mão da checagem de fatos. A violência online e a violência no mundo real se alimentam mutuamente, disse ela. As guerras hoje, afirmou, não são travadas apenas com mísseis e tanques, mas também com algoritmos, desinformação e a destruição sistemática da verdade e da confiança. “Lembrem-se: o objetivo não é fazer com que vocês acreditem em alguma coisa. O objetivo é fazer com que vocês duvidem de tudo, para que não possam agir.”
Aproveitando sua presença no Vaticano, Ressa salientou que o fato de a tecnologia recompensar a mentira (gerando bilhões de lucros para as Big Techs) vai contra os Dez Mandamentos. Ela reiterou que os homens que controlam essas tecnologias detêm um poder semelhante ao de deuses: “Mas não são Deus. São apenas homens, cuja arrogância, falta de sabedoria e de humildade está levando o mundo por um caminho obscuro”. “É por isso – continuou – que a religião, a fé, a Igreja Católica se tornam hoje mais importantes.”
E apresentou quatro indicações práticas de ação. Primeiro, “colaborar, colaborar, colaborar”, a fim de reconstruir a confiança recíproca. Depois, “dizer a verdade com clareza moral”, pois “o silêncio perante a injustiça é cumplicidade”. E fez um apelo: “As pessoas de fé precisam resgatar sua voz profética”. Em terceiro lugar, “proteger os mais vulneráveis”, a começar pelos jornalistas que defendem os direitos humanos e os ativistas que arriscam as suas vidas. “As redes de vocês [da Igreja] podem ser escudos poderosos para as comunidades marginalizadas. Apoiem os imigrantes, as minorias religiosas, as pessoas LGBTQ+ e outras que enfrentam discriminação. Nossa vigilância coletiva pode impedir a normalização do ódio.”
Por fim, “reconhecer o próprio poder”. “A construção da paz não está reservada aos heróis; é o trabalho coletivo de pessoas que se recusam a aceitar e a viver mentiras. [...] Vocês [Igreja] são poderosos e podem fazer parte de uma onda de mudança para o bem, alimentada pelo amor.”
Ressa concluiu seu discurso reforçando o tema do Jubileu: “Mesmo nos piores momentos, a esperança não é passiva; é ativa, incansável e estratégica. As nossas tradições de fé carregam séculos de resiliência; precisamos partilhar essas histórias de transformação”.
Ao terminar sua conferência, Ressa foi aplaudida de pé por vários minutos.
Após as conferências principais, no momento mais esperado do Jubileu do Mundo da Comunicação, o Papa Francisco adentrou a Sala Paulo VI em cadeira de rodas e encontrou-se com jornalistas e comunicadores. Seu breve discurso improvisado deixou de lado o texto escrito, que, segundo ele, seria uma “tortura” aos participantes antes do almoço. Nas poucas palavras ditas, o pontífice ressaltou que comunicar é sair de si mesmo e ir ao encontro do outro. E convidou os comunicadores a um exame de consciência, afirmando que comunicar não é “dizer coisas verdadeiras”, mas sim “ser verdadeiro” na própria vida, sem duplicidades.
No discurso escrito, Francisco agradece aos profissionais que arriscam suas vidas em busca da verdade e lembra com pesar os jornalistas que “assinaram seu serviço com o próprio sangue” em 2024, um dos anos mais letais para a profissão. O papa também faz um apelo pela libertação de todos os jornalistas presos injustamente: “A liberdade deles é liberdade para cada um de nós!”.
Francisco ressalta que os comunicadores são chamados a promover a esperança, construir pontes e abrir portas, em vez de aprofundar divisões e polarizações. Para isso, convida os comunicadores a se colocarem particularmente ao lado dos “marginalizados, de quem não é visto nem ouvido”.
O papa alerta ainda para os riscos do consumo desenfreado de informações nas redes digitais, particularmente o vício do “scrolling”, a rolagem contínua das telas, que pode levar, segundo ele, a uma “putrefação cerebral”. Por isso, pede uma alfabetização midiática que fomente o pensamento crítico e ensine a “paciência do discernimento necessário ao conhecimento”.
No contexto do Jubileu, Francisco faz um apelo aos comunicadores para que não apenas revelem o mal, mas também visibilizem as “migalhas de bem” e os “brotos” de esperança que despontam em meio às cinzas.
Além da programação principal do Jubileu, outro encontro importante foi o Congresso Internacional de Comunicadores Institucionais Católicos, realizado entre os dias 27 e 29 de janeiro, na Pontifícia Universidade Urbaniana. O evento reuniu mais de 200 presidentes de Comissões Episcopais e diretores de escritórios nacionais de comunicação. Os debates abordaram desafios atuais da comunicação eclesial, como novas plataformas, redes sociais, desinformação, inteligência artificial e influenciadores.
No primeiro dia, antes do início dos trabalhos, o Papa Francisco recebeu os participantes em audiência privada na Sala Clementina. Tive a grata alegria de participar desse momento, assim como de saudar e de abraçar o papa ao término da audiência.
Em seu discurso, Francisco abordou o desafio de “semear esperança no meio de tanto desespero” e de “curar o vírus da divisão”, que ameaça inclusive a Igreja. E perguntou: “A nossa comunicação é acompanhada pela oração? Ou acabamos por comunicar a Igreja adotando somente as regras do marketing empresarial?”. Para Francisco, a comunicação cristã “é mostrar que o Reino de Deus está perto: aqui, agora, e é como um milagre que pode ser vivido por cada pessoa, por cada povo”.
Ele convocou os comunicadores católicos a um “trabalho sinfônico” em sinergia, que envolva todas as pessoas e todas as linguagens. Convidou ainda a construir um modelo de comunicação a partir da “força poética que vem do Evangelho”, uma comunicação alternativa às novas torres de Babel, nas quais “todos falam, e ninguém se entende”.
O papa concluiu seu discurso enfatizando duas palavras: juntos e rede. Para Francisco, a comunicação cristã não é um gesto solitário, mas remete às redes dos pescadores que seguiam Jesus. “Comunicar não é uma tática, não é uma técnica. [...] Comunicar é um ato de amor.” Para ele, o segredo da força comunicativa da Igreja é a confiança uns nos outros e todos juntos em Deus. “Em vez de confiar nas sereias estéreis da autopromoção e na celebração das nossas iniciativas, pensemos em como construir juntos os relatos da nossa esperança!”
Em seguida, Francisco foi mais direto: “Irmãs, irmãos, a nossa rede é para todos. Para todos! A comunicação católica não é algo separado, não é somente para os católicos. Não é um recinto onde nos fecharmos, uma seita para falarmos entre nós, não! A comunicação católica é o espaço aberto de um testemunho que sabe escutar e captar os sinais do Reino”.
A programação do Congresso Internacional contou com conferências de Maria Ressa e Colum McCann, assim como de Eli Pariser, ativista digital e autor do best-seller “O filtro invisível: O que a internet está escondendo de você” (Ed. Zahar, 2012), do frei franciscano Paolo Benanti, especialista em ética da inteligência artificial, e o cardeal filipino Luis Antonio Tagle, prefeito do Dicastério para a Evangelização.
Também foram realizados diversos painéis com convidados dos vários continentes. Tive a alegria de participar de um deles, no primeiro dia do congresso, dividindo a mesa com o Pe. Columba Jordan, da Irlanda, que produz conteúdo religioso no YouTube. A mediação foi da Ir. Nina Krapić, da seção teológico-pastoral do Dicastério para a Comunicação.
Compartilho e aprofundo aqui alguns dos aspectos que apresentei durante a minha fala nessa mesa-redonda.
Um dos temas abordados no painel foi a transformação do paradigma da comunicação, que passou por mudanças profundas com o advento da internet comercial nos anos 1990; as redes sociais digitais, como Orkut e Facebook em 2004; os smartphones com tela touch, como o primeiro iPhone em 2007; o período da pandemia, que demandou novas práticas de interação social; e, mais recentemente, a inteligência artificial generativa (2022).
Com isso, as mídias tradicionais e o jornalismo vêm passando por grande reconfiguração. As fontes de informação mudaram, e os conteúdos institucionais não têm o mesmo peso na vida social. Isso levanta a questão da autoridade na comunicação da fé hoje.
Como afirma o Papa Francisco, a carteira de identidade de toda pessoa cristã é o batismo. No entanto, a “Reforma digital” que a Igreja vem experimentando nestas últimas décadas impulsiona novos processos de institucionalização da autoridade, tanto em sentido sociológico quanto teológico, levantando ainda uma relevante questão eclesiológica.
Em primeiro lugar, a autoridade passa por uma transformação em nível individual. O ambiente digital “autoriza” que qualquer pessoa produza conteúdos públicos – e, assim, confere-lhe uma certa autoridade pública. Se algo me agrada pessoalmente, posso publicá-lo tecnologicamente e validá-lo socialmente junto aos meus seguidores. Assim, o “eu” torna-se critério de veracidade e verdade. O risco dessa dinâmica é que a autoridade pessoal – ou seja, aquela que emerge a partir da relação entre o indivíduo e a comunidade – se transforme em uma autoridade personalista – ou seja, individualista e egocêntrica.
Em nível social, por sua vez, a popularidade se torna critério de verdade e de autoridade. Não é mais necessária uma chancela institucional, pois o engajamento e as métricas digitais promovem uma nova forma de reconhecimento social numericamente quantificável: “Sou autoridade porque muitas pessoas assim me consideram”. O perigo dessa lógica é que uma autoridade popular – ou seja, aquela que emerge pelo fato de uma pessoa ser uma liderança em meio ao povo – acabe se tornando uma autoridade populista, moldada por números e algoritmos.
Já em nível tecnológico, a institucionalização da autoridade hoje passa pelo poder dos algoritmos. Os algoritmos podem reforçar e/ou minar o poder simbólico das autoridades constituídas. A autoridade hoje pertence a quem entende as lógicas e obedece aos protocolos das plataformas digitais. Tais protocolos, por sua vez, obedecem e respondem a padrões sociais captados pelos algoritmos (por meio do engajamento), mas também aos interesses das corporações digitais (de nível político, financeiro etc.). Assim, os algoritmos passam a “normalizar” e a institucionalizar socialmente a autoridade de inúmeros amadores (sujeitos frequentemente não reconhecidos nem pela instituição religiosa nem pelo campo profissional da comunicação), cuja autoridade é muitas vezes “descartável”, instantânea, fugaz, efêmera.
Outro tema debatido foi o catolicismo juvenil, que hoje pode ser exclusivamente online e individual, com pouca ou nenhuma conexão comunitária. Muitas pessoas seguem uma liderança eclesial (bispo, padre, leigo etc.) de outro continente sem conhecer sua liderança local. Outras pessoas podem receber formação teológica por meio de conteúdos digitais, sem necessariamente pertencer a uma comunidade de fé local. Essa mudança levanta questões sobre o significado da comunhão e da pertença eclesial.
O ambiente digital, por outro lado, permite experimentar a diversidade do catolicismo, oferecendo oportunidades de visibilidade aos diferentes “catolicismos” existentes e à atual transculturalidade do catolicismo. Isso marca uma transição do catolicismo entendido como uma única “aldeia global” (uma societas perfecta transnacional com sede em Roma) para uma comunhão de “aldeias globais” plurais e diversificadas.
Ao mesmo tempo, em rede, há o risco de um catolicismo “faça você mesmo”, um fenômeno virtual no sentido de não ter raízes comunitárias e locais. Trata-se de uma questão profundamente eclesiológica, que também aparece no Relatório de Síntese da primeira sessão da XVI Assembleia Geral do Sínodo (cap. 17), que ressalta: “As iniciativas apostólicas online têm um alcance e um raio de ação que se estende para além dos confins territoriais entendidos de forma tradicional. Isto levanta alguns quesitos importantes sobre como poderão ser regulamentadas e qual a autoridade eclesiástica a quem compete a vigilância”.
A questão é: regulamentação e vigilância bastam? O que significam, na prática? O Grupo de Estudo 3, sobre a “Missão no ambiente digital” – um dos 10 grupos convocados pelo papa para dar continuidade à reflexão sobre alguns temas candentes que aparecem no processo sinodal –, segue aprofundando essa questão.
No fundo, a missão digital exige repensar a pastoral local, que precisa ser entendida, hoje, também em sua dimensão digital. E isso em no mínimo três ângulos: a evangelização na rede (uma presença eclesial efetiva em sites, redes sociais digitais, plataformas, aplicativos etc.); a evangelização sobre a rede (com momentos e espaços de formação para e sobre a cultura digital, perpassando todos os âmbitos formativos da Igreja, desde a catequese, até as escolas e universidades, assim como os seminários e casas de formação para a vida religiosa consagrada); e a evangelização a partir da rede (as mudanças demandadas pela atual cultura, em suas lógicas e dinâmicas, do ponto de vista das práticas pastorais locais).
Especificamente do ponto de vista da comunhão, o desafio está em harmonizar as diferenças, em uma bela concepção de comunicação inspirada no magistério do Papa Francisco. É essencial preservar a diversidade católica, evitando a dispersão sectária, que muitas vezes vem à tona em rede. A comunicação, em rede e fora dela, deve ser entendida e praticada como um esforço de construção do “comum” católico, como um saber-fazer comunitário e participativo, como uma verdadeira arte da comunhão.
Outra questão debatida no painel foi justamente a experiência de polarização digital, inclusive entre influenciadores católicos. Frequentemente, tem-se a impressão de um cisma na Igreja, com catolicismos em conflito. Em meio a esse processo, alguns influenciadores ganham popularidade fomentando escândalos ou posições sensacionalistas sobre a fé. Outro fenômeno crescente é o entretenimento religioso, com lideranças católicas midiáticas que oferecem conteúdos leves, pautados pela emoção, que viralizam. Isso gera preocupações sobre o impacto dessas tendências na missão da Igreja.
Embora a polarização faça parte de qualquer processo social – não podemos impedir a existência de no mínimo dois polos em qualquer relação humana –, o problema atual, alimentado pelos protocolos digitais, é a exacerbação e a radicalização das polarizações já existentes. Com isso, a possibilidade de relação se converte em agressão direta, por meio de conflitos e extremismos.
Na vida de fé, contudo, o conflito só pode ser suportado, nunca provocado, pois seria uma traição ao próprio mandamento maior deixado por Jesus. Entretanto, hoje, muitas vezes temos a impressão de que as pessoas não cristãs olham para as nossas interações em rede e afirmam: “Vejam como não se amam...”.
Já o risco da viralização – por meio do entretenimento e da emocionalização – é o mero proselitismo digital, algo que o Papa Francisco (relembrando Bento XVI) sempre denuncia como contrário à evangelização, que passa pela atração. A fé envolve emoção, mas a emoção sozinha não basta. As lágrimas ou o “calor no coração” só têm sentido quando são fruto do encontro com o outro. A fé cristã não se reduz a um “sentir-se bem consigo mesmo” puramente individualista. A fé pode envolver o entretenimento, mas isso também não basta. Fazer as pessoas se divertirem pode ser importante, mas o Evangelho é muito mais do que diversão.
“O povo gosta do que não presta” – afirmação de um grande influenciador digital católico brasileiro – não pode ser um critério pastoral. A questão a ser feita é: a meta é apenas acumular mais seguidores e visualizações em rede ou formar discípulos de Jesus e construtores de seu Reino? À luz do “diálogo da salvação”, uma pessoa cristã é chamada a iniciar um diálogo desinteressado, gratuito, livre, assim como o próprio amor de Deus por nós (cf. São Paulo VI, Ecclesiam suam, n. 42).
Outro ponto levantado foi a educação midiática para discernir a qualidade de conteúdos e produtores. Aqui, é preciso reiterar que as redes digitais visibilizam a diversidade de um catolicismo plural, que, apesar de suas diferenças, permanece em comunhão, como vários membros em um só corpo (cf. Ef 4,25). O risco é quando já não há testemunho de comunhão, mas apenas explicitação de ódio e discórdia entre supostos irmãos e irmãs de fé.
No livro “Infuenciadores digitais católicos” (Ideias e Letras/Paulus, 2024), indicamos três critérios que podem ajudar nesse discernimento. O primeiro é a fidelidade ao Evangelho de Jesus e ao Jesus dos Evangelhos. Em sua mensagem do Dia Mundial das Comunicações Sociais de 2017, Francisco enfatiza que, “para nós, cristãos, as lentes adequadas para decifrar a realidade só podem ser as da Boa Notícia por excelência, ou seja, o Evangelho de Jesus Cristo”.
Em segundo lugar, um critério fundamental é a fidelidade à Tradição da Igreja, entendida como a fé viva de quem nos precedeu na caminhada. Não se trata de fidelidade a meros “tradicionalismos” rígidos do passado, desconectados da realidade, como meras “peças de museu”.
Além disso, a fidelidade ao magistério atual também é indispensável. A comunhão com o papa, a colegialidade episcopal e o bispo local são aspectos basilares da fé católica. Críticas são sempre necessárias e bem-vindas, desde que feitas com respeito, salvaguardando a comunhão e sem causar escândalo.
Junto com esses três critérios, podemos ainda relembrar três filtros presentes no magistério da Igreja: a beleza, a verdade e a bondade. Em sua mensagem para o Dia Mundial das Comunicações Sociais de 2018, o papa afirma que, “para discernir a verdade, é preciso examinar aquilo que favorece a comunhão e promove o bem e aquilo que, ao invés, tende a isolar, dividir e contrapor”. E acrescenta: “Uma argumentação impecável pode basear-se em fatos inegáveis, mas, se for usada para ferir o outro e desacreditá-lo à vista alheia, por mais justa que pareça, não é habitada pela verdade”.
A Igreja, como já dizia São João XXIII, é “mãe e mestra”, buscando guiar seus fiéis no discernimento diante das transformações culturais. Em meio à digitalização e à midiatização da vida, essa missão se revela ainda mais urgente do ponto de vista formativo. No atual ecossistema midiático e comunicacional, é crucial investir na formação para a cultura digital e na educação midiática em todos os ambientes pedagógicos da Igreja (famílias, catequese, escolas, universidades, centros de pesquisa e inovação, seminários, casas de formação...), contribuindo com a humanização de tais processos. Historicamente, isso já foi posto em prática por meio da “leitura crítica da comunicação” e da educomunicação, experiências nascidas no Brasil a partir também de pensadores ligados à Igreja.
Em sua prática local e global, a Igreja tem um papel muito relevante na formação para uma postura crítico-reflexiva em relação às mídias, capaz de questionar, interpretar e transformar a comunicação. O documento “Rumo à plena presença”, publicado pelo Dicastério para a Comunicação, afirma que as redes digitais não estão esculpidas na pedra. “Podemos mudá-las. [...] Juntos, podemos encorajar as empresas de comunicação a reconsiderar suas funções, permitindo que a internet se torne um espaço verdadeiramente público. [...] Por isso, devemos reconstruir os espaços digitais, de tal forma que eles se tornem ambientes mais humanos e mais saudáveis” (n. 58).
Isso exige um olhar crítico para os desafios do presente. Autores como Paolo Benanti falam da necessidade de reinventar o digital diante do que ele chama, em um livro recente, de “queda de Babel e o fim do sonho da internet”, alertando para a fragmentação e o domínio algorítmico das interações humanas. Do mesmo modo, o brasileiro James Görgen defende uma “refundação da internet”, que resgate sua vocação inicial de espaço público e democrático. Essa perspectiva dialoga com a crítica de Geert Lovink em “Extinção da internet” (2023), que argumenta que a internet se tornou disfuncional, dominada por um modelo extrativista de dados e por algoritmos que incentivam a polarização. Esse cenário é aprofundado na obra “Colonialismo de dados: como opera a trincheira algorítmica na guerra neoliberal” (2021), organizada por João Francisco Cassino, Joyce Souza e Sérgio Amadeu da Silveira, que denuncia que a economia digital reproduz estruturas coloniais de poder, transformando dados pessoais em um recurso explorado por corporações e governos. Na mesma linha, Tiziana Terranova, em “After the Internet” (2022), analisa os rumos incertos da era pós-internet, dominada pelas grandes plataformas e pela mercantilização da comunicação digital.
A Igreja não pode ignorar esse debate nem utilizar “lentes cor-de-rosa” para discernir sua presença e missão nas redes digitais. Diante dessas críticas, é urgente construir ambientes digitais baseados em princípios éticos e comunitários, verdadeiramente humanos e humanizados, voltados ao bem comum. À luz do Evangelho, a Igreja tem um papel crucial na defesa da dignidade humana e da justiça social também no ambiente digital.
Portanto, a formação digital e a educação midiática não são apenas necessidades técnicas e teóricas, mas imperativos pastorais e éticos. Para ser “mãe e mestra” na cultura digital, a Igreja precisa preparar e acompanhar seus filhos e filhas a fim de que habitem criticamente esses ambientes, além de contribuir para o desenvolvimento de uma sociedade em rede justa e solidária.
No contexto da missão em ambientes digitais cada vez mais financeirizados e capitalizados, surge uma tensão entre a vida pessoal, a missão eclesial e a monetização em rede. Os chamados “missionários digitais” precisam de um discernimento cuidadoso e constante sobre sua presença online, evitando que as lógicas digitais obscureçam sua vocação missionária.
Para isso, a tradição da Igreja oferece chaves interpretativas valiosas, como o discernimento inaciano das “duas bandeiras”. Nessa meditação, o exercitante é confrontado com a escolha entre a bandeira do inimigo da natureza humana, que tem como insígnias a riqueza, o prestígio e o poder, e a de Jesus, que tem como insígnias a pobreza, a humildade e o serviço.
Essa perspectiva diz muito à cultura digital, marcada pela disputa entre duas lógicas: a do lucro e a da graça. No livro “Missionários no ambiente digital”, destacamos que a lógica do lucro “fomenta uma troca mercantil voltada à monetização, pautada na posse e no consumo individual de conteúdos e produtos. As pessoas são tratadas como meras consumidoras, priorizando a autopromoção e a vantagem individual”. Em contrapartida, o Evangelho faz brotar uma lógica da graça, “que nasce do amor gratuito de Deus e alimenta uma economia do dom e da entrega. Essa lógica promove a doação recíproca, a partilha, a comunhão e o bem comum, fortalecendo o vínculo entre pessoas que se reconhecem como irmãs e irmãos na fé, companheiras e companheiros no seguimento de Jesus” (p. 103).
Em meio a esse contexto, a presença cristã nos ambientes digitais é chamada a ser testemunho de um estilo contracultural. A Igreja não é uma empresa, um partido político, uma marca, uma ONG. A Igreja não é uma Hollywood espiritual, cheia de “estrelas” individuais competindo por brilho e visibilidade: a Igreja apenas reflete uma Luz que não lhe é própria.
Portanto, os critérios para “avaliar” a missão digital da Igreja não podem derivar do mundo corporativo e político, nem do marketing publicitário ou do entretenimento. Métricas como engajamento e alcance, tão relevantes para instituições seculares, têm pouca relevância para a missão da Igreja, que não tem “um produto para vender, mas uma vida para comunicar” (cf. @Pontifex, 2018).
Francisco é muito claro: “Evangelizar é tornar o Reino de Deus presente no mundo” (Evangelii gaudium, n. 176). Por isso, o critério para discernir a presença da Igreja no ambiente digital é a construção e a presença efetiva desse reino de justiça, de paz e de amor dentro e fora da rede. Isso exige um modelo alternativo de presença digital, distante da lógica do marketing, na qual se valorizam a visibilidade, a popularidade, a concorrência, a monetização. Um missionário digital deve ser um “anti-influenciador digital”, rejeitando os “mandamentos” do mercado da comunicação e promovendo um testemunho que vá em sentido oposto aos aspectos antievangélicos da cultura digital.
Essa postura contracultural de um missionário digital se traduz em um estilo de presença não narcisista nem egocêntrica, mas promotora de relações comunitárias em torno de Jesus, pondo-se a serviço como uma “janela” para o Evangelho, e não como um “espelho” voltado para si mesmo, obstaculizando a comunicação divina. Afinal, é Jesus quem evangeliza, e a iniciativa da evangelização é sempre divina (cf. Ecclesiam suam). Um missionário digital é um “prolongador” dessa ação salvífica, favorecendo o diálogo de Deus com o ser humano, agindo como um mediador (e não como um intermediário, segundo a distinção feita pelo Papa Francisco).
Como também escrevemos em “Missionários no ambiente digital”, a missão cristã em rede “é um chamado a ser ‘sinal de contradição’ (Lc 2,34), de ‘escândalo e loucura’ (1Cor 1,23) e até de ‘subversão’ (Lc 23,2), em meio àquilo que impera no mercado da comunicação digital” (p. 105).
O Jubileu do Mundo das Comunicações evidencia a relevância da comunicação na Igreja hoje, não como mera estratégia, mas como expressão da própria fé cristã: um anúncio que convida ao encontro com Jesus e com os irmãos e irmãs, à experiência comunitária e à construção do bem comum. Em meio a essa missão, a esperança, tema central do Jubileu, não se reduz a um otimismo ingênuo diante das transformações culturais e tecnológicas, mas se manifesta no testemunho profético da Igreja em sua comunicação: uma força amorosa que não se impõe pelo espetáculo, mas que transforma o mundo silenciosamente, como fermento na massa (cf. Mt 13,33).