28 Janeiro 2025
"Acredito que a sua experiência, forjada nas loucuras do século passado, tenha um papel fundamental e insubstituível na atualidade, em que assistimos impotentes à reproposição de ódios, guerras, genocídios e à insensatez que ameaça a continuidade da própria vida do planeta Terra", escreve Flavio Lazzarin, padre italiano fidei donum que atua na Diocese de Coroatá, no Maranhão, e agente da Comissão Pastoral da Terra (CPT).
Nestes últimos dias, Etty Hillesum me obrigou a fazer memória de uma leitura do tempo da juventude. Trata-se do livro de Elie Wiesel, A noite[1], em que é narrado um trágico momento vivido pelo autor no campo de extermínio nazista de Auschwitz II-Birkenau. Ele conta a execução de dois adultos e uma criança. Os três judeus foram amarrados, com as cordas no pescoço, sobre três cadeiras, de baixo da forca:
“Vida longa à liberdade, gritaram os dois adultos.
A criança continuou silenciosa.
Onde está Deus? Onde está ele, alguém perguntou atrás de mim.
Ao sinal do chefe do campo, as três cadeiras tombaram.
Total silêncio atravessou o campo. Sobre o horizonte, o sol se punha.
Então o desfile começou. Os dois adultos não estavam mais vivos. Suas línguas inchadas penduradas, tingidas de azul. Mas a terceira corda continuava se movendo; sendo tão leve, a criança continuava viva…
Por mais meia hora ele continuou lá, lutando entre a vida e a morte, morrendo em lenta agonia sob nossos olhos. E nós tivemos que olhá-lo de cheio em sua face.
Ele ainda estava vivo quando passei em frente dele. Sua língua continuava vermelha, seus olhos ainda não estavam vidrados.
Atrás de mim, escutei o mesmo homem perguntando:
Onde está Deus agora?
Onde está ele? Aqui está Ele – Ele está pendurado aqui na forca…
Naquela noite a sopa tinha gosto de cadáveres.”
Que Deus estivesse presente no menino agonizante na forca, para mim era uma evidência cristológica da companhia de Deus, que se revela solidário com todas as vítimas da história humana, antes e depois da sua Sexta-feira Santa. Cada vítima tem a proximidade do Crucificado. Obviamente, sabia de estar em contradição com a incomparável, dramática experiência teológica do judeu Wiesel, que processa e condena este Deus, que se mostra fraco e irresponsável, abandonando seu povo eleito à crueldade genocida do inimigo. Para Wiesel sobra apenas a revolta: não tem mais HaShem e não tem mais Aliança. Deus não existe, está morto em Auschwitz - além do Gólgota e além da profecia nietzschiana -, no absurdo da violência e da desumanização. Assim Wiesel se apropria do famoso grafite de Auschwitz: “Se existe um deus, ele tem que me pedir perdão de joelhos.”
Nem todos os pensadores judeus compartilham a leitura que Wiesel faz da Shoah, este evento di indizível desumanidade que ele, primeiro, chamou, de forma discutível, de Holocausto. Por exemplo, Eliezer Berkovits afirma que os seis milhões de judeus exterminados nos campos de concentração teriam realizado, com seu martírio, o Kidush HaShem, a santificação do Nome.
E se contam casos de judeus, que, na frente dos SS, na iminência de serem executados, dançaram, em um estado de exaltação mística, a sua indefectível fidelidade a HaShem.
Etty Hillesum, numa atitude mística inédita, testemunhando uma santidade sem nenhuma ligação com instituições religiosas, vai além da morte de Deus dramaticamente narrada por Wiesel e nos mostra uma vereda espiritual para viver em tempos sombrios e infernais.
Tenho a forte impressão que, nas circunstâncias limitadas da sua vida, ela testemunhou a atemporal descida de Jesus aos infernos. Ela não cita sequer uma vez o nome de Jesus no seu diário, mas, é para mim inevitável vê-la como testemunha do mistério escondido na aniquilação da crucificação. Ela vive um fragmento, um reflexo, do Amor de Jesus escondido na Cruz. E vai além da Sexta-feira-Santa descobrindo o segredo, ainda marcado pela Cruz, do Sábado Santo, em que o Amor de Deus desce ao inferno e toma posse agápica e definitiva de qualquer desgraça que possa acontecer aos seus irmãos e irmãs.
Uma vida que se caracteriza como sequela, imitação, impelente necessidade de se responsabilizar pela causa de Deus. Atraída por este Deus amoroso, aproxima-se dele e, nessa busca cotidiana, na oração, descobre que Deus só se revela através da sua humaníssima mediação. Deus precisa da nossa ajuda.
“Vou ajudar-te, Deus, a não me abandonares, apesar de eu não poder garantir nada com antecedência. Mas torna-se cada vez mais claro o seguinte: que tu não nos podes ajudar, que nós é que temos de te ajudar, e ajudando-te, ajudamo-nos a nós próprios. E esta é a única coisa que podemos preservar nestes tempos, e também a única que importa: uma parte de ti em nós, Deus”
E Etty é uma mulher, por sua própria admissão, complexa, contraditória, confusa, incoerente, porém sempre inquieta, corajosa, em busca de definição, capaz de devoção, de responsabilidade, de assumir riscos mortais, de abandono à beleza da vida e de enfrentamento das ameaças de uma época sombria e infernal.
Em suma, ela é o exato contrário das biografias imaculadas dos santos e santas católicos. Bem perto de nós, gerações desta modernidade ao crepúsculo, que não pudemos nos esconder das legitimas suspeitas sobre os nossos limites, fragilidades, compulsões, que pertença a nenhuma religião consegue mais ocultar e maquiar.
A descida de Jesus aos infernos (em grego, κατελθόντα εἰς τὰ κατώτατα, katelthonta eis ta katôtata, e, em latim, descendit ad inferos) é uma doutrina e um locus teologico, sem referência bíblica, a não ser alguns acenos na primeira carta de Pedro[2], presente no Credo dos Apóstolos e no Credo de Atanásio (Quicumque vult), “Ele sofreu a morte por nossa salvação, desceu aos infernos e ao terceiro dia ressuscitou dos mortos.”
A descida de Jesus ao Sheol é memoria de catolicos e ortodoxos celebrada no Sábato Santo. Mas também Lutero numa homília em Torgau, 1533, afirmou que Jesus desceu ao inferno e, na Fórmula da Concórdia se diz: “cremos que, depois do sepultamento, a pessoa toda, Deus e homem, desceu ao inferno, venceu o diabo, destruiu o poder do inferno e tirou ao diabo todo o seu poder.”[3]
Tem teólogos que interpretam a descida de Jesus à mansão dos mortos, como o apropriar-se de Jesus da plenitude do morrer humano, que comporta a situação do estar morto. Vitória definitiva do Crucificado sobre a morte, o morrer e o estar morto. Uma homilia do IV século nos fala deste silêncio, desta solidão:
“Que está acontecendo hoje? Um grande silêncio reina sobre a terra. Um grande silêncio e uma grande solidão. Um grande silêncio, porque o Rei está dormindo; a terra estremeceu e ficou silenciosa, porque o Deus feito homem adormeceu e acordou os que dormiam há séculos. Deus morreu na carne e despertou a mansão dos mortos.”[4]
Outros, a partir de Agostinho, interpretam a descida ao inferno como libertação do limbo em que estava preso Adão, os patriarcas, os profetas até João Batista.
Recentemente, Bento XVI, que com frequência comentava o mistério do Sábado de Aleluia, disse: “Naquele "tempo-além-do-tempo" Jesus Cristo "desceu à mansão dos mortos". O que significa esta expressão? Quer dizer que Deus, feito homem, chegou até ao ponto de entrar na solidão extrema e absoluta do homem, onde não chega raio de amor algum, onde reina o abandono total sem palavra de conforto alguma: "mansão dos mortos". Jesus Cristo, permanecendo na morte, ultrapassou a porta desta solidão última para nos guiar também a nós a ultrapassá-la com Ele.... Depois de duas guerras mundiais, os lager e os gulag, Hiroshima e Nagasaki, a nossa época tornou-se um Sábado Santo em medida cada vez maior: a escuridão desse dia interpela todos os que se questionam sobre a vida, de modo particular interpela a nós, crentes. Também nós somos responsáveis por esta escuridão.”[5]
As homilias de Ratzinger são evidentemente devedoras à teologia de Von Balthasar[6] e às visões de Adrienne Von Speyr[7], que viu o inferno como a experiência de ter perdido Deus para sempre.
No entanto, encontramos na descida ao báratro do lager de Etty algo inédito: não são prioritárias as experiência s e as leituras conjunturais do pecado e do inferno, mas o que importa é a íntima busca da familiaridade com Deus, que, apesar de tudo, pode semear amor. Deus que vence o inferno com o amor solidário da Cruz. Estamos bem longe do terrorismo medieval, que insistindo no terror e no medo, acaba ocultando a vitória definitiva da Ressureição. E estamos além do imenso e inesquecível discurso teológico de Balthasar, que nos oferece o “mapa” do Tríduo da Páscoa e além das experiência s místicas de Adrienne. Estamos na tradução existencial, corporal, profética, de um fragmento do Sábado Santo de Jesus de Nazaré. Ela nos diz que com Jesus podemos encontrar Deus onde nunca poderíamos imaginar de encontra-lo e que não existe geografia espiritual e histórica em que Ele não esteja presente como Ágape derrotado e vitorioso. .
Etty encontrou um método, um estilo espiritual inédito, para enfrentar os tempos apocalípticos da Shoah: a aceitação da coexistência da maldade e da beleza, da tragédia e da poesia, na luta vitoriosa do Amor.
“É no meio do inferno, é no teto em chamas que eu vou olhar para as flores, que eu vou cuidar de flores. É na latrina do campo de concentração que eu me vou ajoelhar e rezar, é na caserna mais imunda, mais sitiada pela dor que eu vou tratar das flores” .
Escolheu não se salvar sozinha e mergulhou com o seu povo naquele inferno de aniquilação e extermínio. E naquele inferno, em companhia do amoroso silêncio divino, viveu uma mística, que nos surpreende pela sua novidade: uma mística mergulhada na materialidade do mundo, que contempla a beleza do mundo, sem fugir da corporeidade e das trágicas e cíclicas repetições da história humana. Um universo interior livre, inatingível e invencível diante dos poderes do mundo. Ela escolhe a proximidade com os oprimidos e perseguidos, porque crê firmemente no poder salvífico do amor, aquele fragmento do coração de Deus, que habita no seu coração e pode transformar todos os corações. Uma escandalosa alegria num contexto trágico, em que ela escolhe a escuta e o cuidado dos sofredores.
“Gostaria muito de viver como os lírios do campo. Se as pessoas entendessem esta época, seriam capazes de aprender com ela a viver como os lírios do campo.”
Etty não era ingênua e, tampouco, livre das dúvidas. Lembro um fragmento do diário em que ela descreve um dia trágico de deportações, no campo de Westerbork: “Se eu pensar nos rostos da escolta armada em uniforme verde, meu Deus, esses rostos! Eu os observei um por um, da minha posição escondida atrás de uma janela, nunca tive tanto medo quanto por aqueles rostos. Encontrei-me em apuros com a Palavra que é o tema fundamental da minha vida: "E Deus criou o homem à sua imagem". Esta Palavra viveu comigo uma manhã difícil.”
Precisamos voltar à meditação das palavras de Etty Hillesum e à imitação de suas atitudes. Pensamos, por exemplo, a profunda reflexão que nos oferece sobre os sobreviventes dos campos de concentração nazifascistas: “Se salvarmos nossos corpos e nada mais dos campos de prisioneiros, onde quer que estejam, será muito pouco. (…) Se não pudermos oferecer ao mundo empobrecido do pós-guerra nada além de nossos corpos salvos a todo custo – e não um novo sentido das coisas, extraído dos poços mais profundos de nossa miséria e desespero – então não será suficiente.” (Cartas, 45)
Acredito que a sua experiência, forjada nas loucuras do século passado, tenha um papel fundamental e insubstituível na atualidade, em que assistimos impotentes à reproposição de ódios, guerras, genocídios e à insensatez que ameaça a continuidade da própria vida do planeta Terra.
[1] Wiesel Elie, La notte, Giuntina, Firenze, 1980, pp. 102-105
[2] “no qual também foi pregar aos espíritos em prisão, os quais noutro tempo foram desobedientes, quando Deus pacientemente esperava nos dias de Noé...”(I Pedro 3,19–20) “Pois por isto foi o Evangelho pregado até aos mortos...”(I Pedro 4,6)
[3] Livro De Concórdia, As Confissões da Igreja Evangélica Luterana, Editora Sinodal Concordia, São Leopoldo, Porto Alegre, 2006, p.654, em Internet Archive: Digital Library of Free & Borrowable
[4] De uma antiga Homilia no grande Sábado Santo (Séc. IV)
Patrologia Gregoriana (PG), Jacques-Paul Migne. (PG43,439.451.462-463)
[5] Bento XVI, 02 de maio de 2010, em Turim, por ocasião de sua visita ao Santo Sudário
[6] Von Balthasar Hans Urs, Mysterium paschale, vol. VI Mysterium salutis, Ed. Queriniana, Brescia, 1971
[7] Von Balthasar Hans Urs, Teologia della discesa agli inferi, in La missione ecclesiale di Adrienne von Speyr. Atti del II Colloquio Internazionale del pensiero cristiano, Jaca Book, Milano 1986, pp. 143-154 (orig. Theologie des Abstiegs zur Hölle, 1985)