23 Janeiro 2025
"Portanto, não se trata de reinventar a Igreja, mas de continuar a reforma a partir do governo central, descendo aos governos locais. Isso significa repensar o exercício do poder como serviço, sem arrogâncias pagãs do poder sagrado, sem as tiranias monárquicas e sem os pragmatismos dos governos modernos", escreve Eliseu Wisniewski, presbítero da Congregação da Missão (padres vicentinos) Província do Sul, mestre em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR), em resenha do livro A reforma do papado (Paulinas, 2024, 224 p.), 22-01-2025.
As reformas do papado aconteceram ao longo da história da Igreja. Condicionado pelos contextos socioculturais e políticos, o papado foi sendo construído e reconstruído não somente em seu modo de agir, mas também na sua própria autoimagem. Mais recentemente, desde Paulo VI (1963-1978), os próprios papas têm reconhecido que o modus operandi do ministério papal precisa de uma revisão, de modo que o papa seja mais fiel à sua missão. O papa João Paulo II (1978-2005) fez um apelo explícito neste sentido no número 95 da encíclica Ut Unum Sint. Por sua vez, o papa Francisco no número 32 da Exortação Evangelli Gaudium afirma que: “Dado que sou chamado a viver aquilo que peço aos outros, devo pensar também numa conversão do papado. Compete-me, como Bispo de Roma, permanecer aberto às sugestões tendentes a um exercício do meu ministério que o torne mais fiel ao significado que Jesus pretendeu dar-lhe e às necessidades da evangelização”. No entanto, tal empreitada se depara com um grande empecilho: a Constituição Dogmática Pastor Aeternus que definiu como dogma de fé divinamente revelado a infabilidade papal em matéria de fé e costumes, quando o bispo de Roma fala ex cathedra. Se feitas nessas circunstâncias, as declarações do papa são irreformáveis ex sese, non ex consenso Ecclesiae – por si, não pelo consenso da Igreja.
Nesta perspectiva se situa a obra A reforma do papado (Paulinas, 2024, 224 p.), escrita por Tiago Cosmo da Silva Dias, presbítero, mestre e doutorando em Teologia e professor no Instituto de Teologia São Miguel, da Diocese de São Miguel Paulista, São Paulo. Nos marcos das reformas do Concílio Vaticano II e do papa Francisco, o presente livro ajuda a entender o significado e a necessidade de uma reforma do papado em nossos dias. A obra em questão está organizada em quatro capítulos e o caminho proposto pelo autor no texto não é o de esgotar o tema da reforma do papado, mas ser uma espécie de guia para apontar algumas estradas possíveis por onde, efetivamente qualquer mudança poderia ocorrer.
Livro "A Reforma do Papado", de Tiago Cosmo da Silva Dias (Editora Paulinas, 2024).
No primeiro capítulo Aspectos da conjuntura socioeclesial – séculos XVIII e XIX (p. 17-53), expõem-se os antecedentes históricos que contribuíram para as definições da infalibilidade e do primado de jurisdição do papa, partindo dos acontecimentos da Revolução Francesa (1789), da qual a Igreja já saíra bastante ferida. Nas páginas deste capítulo o autor pontua que no contexto em que a polarização crescia, em 1846 chegou ao governo supremo da Igreja o cardeal Giovanni Maria Mastai Ferreti, que adotou para si o nome de Pio IX (1846-1878) e representou o ápice do distanciamento da Igreja para com o mundo moderno, especialmente em sua tríade de documentos: a carta encíclica Qui Pluribus (1846), a bula Ineffabilis Deus (1854) e a carta encíclica Quanta Cura (1864). Foi durante o pontificado de Pio IX que aconteceu o Concílio Vaticano I (1869-1870), que definiu, na Constituição Dogmática Pastor Aeternus (1870), os dogmas que giram em torno do papa. Se, porém, de um lado, o papa era declarado infalível em matéria de fé e de costumes ao falar ex cathedra, de outro perdia o poder temporal, graças ao movimento de unificação italiana. Segundo o autor olhar para estes fatos auxilia no entendimento dos caminhos que a Igreja ia, aos poucos, traçando para si, cada vez mais se compreendendo como societas perfectas governada por um monarca: o papa.
Na sequência, o segundo capítulo intitulado O Concílio Vaticano I e as definições do primado de jurisdição e infalibilidade papal (p. 55-102), faz uma exposição sistemática dos antecedentes históricos e das razões pelas quais o papa Pio IX sentiu-se impelido a convocar um Concílio, cuja abertura aconteceu em 1869. O autor salienta que foi durante este Concílio que o primado de jurisdição e a infalibilidade papal foram proclamados como dogma de fé, revelados pelo próprio Deus, na Constituição Pastor Aeternus, de 18 de julho de 1870. Por estas razões, o autor faz uma análise dos fundamentos do presente documento, na tentativa de verificar se o embasamento bíblico e histórico-eclesial são suficientes para pensar o bispo de Roma como chefe da Igreja e, como tal, com o primado de jurisdição e a infalibilidade, quando fala ex catedra.
No terceiro capítulo O Concílio Vaticano II e os papas: renovação e retrocesso (p. 103-154), o autor expõe, em primeiro lugar, a postura dos papas, depois de Pio IX e até o Concílio Ecumênico Vaticano II, diante da realidade que se lhes apresentava. Ao mesmo tempo, procura analisar como os documentos conciliares avaliaram a figura do bispo de Roma, bem como seu ministério, para verificar se, a partir das próprias afirmações do Concílio, se poderia empreender uma reforma no papado. No contexto pós-conciliar, também se salientava os avanços e retrocessos nos pontificados que se sucederam, de Paulo VI (1963-1978) a Bento XVI (2005-2013).
Por fim, no quarto capítulo A eleição de Francisco, bispo de Roma e a necessidade da reforma (p. 155-198), são expostos algumas das iniciativas do pontificado posterior, do papa Francisco, procurando identificar determinadas mudanças de paradigma impostas pelo próprio bispo de Roma em alguns de seus discursos e gestos. Ao mesmo tempo, partindo exatamente desta análise, o autor, sugere, tendo em mente todo o levantamento histórico feito nos capítulos anteriores, alguns caminhos por onde a reforma do papado possa transcorrer.
Nas Considerações Finais (p. 199-203), ressalta-se que a monarquia que se construiu em torno do papado é fruto de um longo processo histórico, inclusive de confusões e divisões internas que, naturalmente, provocaram também dificuldades na relação entre a Igreja e a sociedade. Logo, à problemática levantada para o desenvolvimento desta pesquisa, a resposta parece ser simples, embora de longa complexidade: uma reforma do papado depende, necessariamente, de um voltar-se à história, antiga e recente, para se constatar diversos elementos que, sim, se encaixam, mas que também possuem suas incongruências.
Em suma, o autor diz que o desafio que se mantém é o de como construir uma nova maneira de o bispo de Roma ser papa também sem ferir a autonomia das Igrejas locais e respeitando os organismos colegiados de cada nação ou continente, como as Conferências Episcopais. Isso envolve, sobretudo abraçar um caminho diferente no que tange ao governo da Igreja, e deverá passar, necessariamente, pela reforma da Cúria Romana, um caminho já iniciado pelo papa Francisco desde o início de seu pontificado. O atual modelo eclesial, no qual as conferencias apenas subsistem como uma espécie de reprodutoras dos anseios da Cúria Romana, não pode mais existir, sob o risco de, inclusive, fazer a Igreja ser uniforme, e não uma, como professa o Símbolo da Fé.
Portanto, não se trata de reinventar a Igreja, mas de continuar a reforma a partir do governo central, descendo aos governos locais. Isso significa repensar o exercício do poder como serviço, sem arrogâncias pagãs do poder sagrado, sem as tiranias monárquicas e sem os pragmatismos dos governos modernos. A Igreja peregrina não tem um modelo definitivo nem uma receita segura para si mesma. Nesse sentido, reforma é algo inerente à Igreja, atitude de espírito (audição e docilidade ao Espírito) que se torna ação em cada tempo e lugar; fidelidade à própria dinâmica da tradição, entendida como o que é transmitido através do tempo, e que rejeita, por isso mesmo, toda forma de conservadorismo.
A leitura desta obra deixará claro ao leitor que a revisão no modus operandi da missão do papa, porém, exigirá força da Igreja não só para se reorganizar suas questões burocráticas como também para rever a própria fundamentação teológica e bíblica desse encargo.