20 Dezembro 2024
Resistir ao acolhimento de outros modos de organização jurídico-política, de pensamento e de produção implica em se fechar para possibilidades concretas de adaptação ao novo regime climático. Enquanto o país seguir privilegiando fortemente o modelo monocultor-agroexportador com vultuosas somas de recursos, despejadas anualmente por meio de Plano Safra, as alternativas tradicionais das terras indígenas e dos quilombos, da agricultura familiar e da agroecologia seguirão marginalizadas e sob a mira raivosa da bancada ruralista. Sobrerrepresentada no Congresso, essa parte do agro que se regozija com a destruição ambiental e que apoiou a recente tentativa de golpe, como apontam as investigações da Polícia Federal, será sempre uma ameaça à diversidade dos povos do campo, das florestas e das águas.
O artigo é de Gabriel dos Anjos Vilardi, jesuíta, bacharel em Direito pela PUC-SP e bacharel em Filosofia pela FAJE. É mestrando no PPG em Direito da Unisinos e integra a equipe do Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
Entre as várias crises em que o mundo globalizado está imerso, podem-se citar a ascensão da extrema-direita com posições supremacistas e neofascistas, a proliferação da desinformação e dos discursos de ódio como expressão da pós-verdade e a terceira guerra mundial em pedaços, com risco de escalada atômica. Mas, certamente, a principal delas é o colapso ecológico-climático. Como é mais do que evidente, os eventos climáticos extremos serão cada vez mais frequentes e intensos.
Recentemente, o Rio Grande do Sul foi assolado por severas inundações que atingiram quase todo o estado e milhões de pessoas. Milhares perderam suas casas e quase duas centenas foram mortas na maior tragédia climática do país. O rastro de destruição foi avassalador e os impactos ainda serão sentidos por muitos anos. Dentre as muitas inquietações que surgiram, uma delas parece a mais perturbadora: reconstruir-se-á o estado nas mesmas bases de outrora?
Passados os primeiros meses, as pessoas buscam retomar suas vidas rumo a antiga normalidade. Entretanto, há algo que parece não estar claro para o cidadão médio. O desastre ambiental não foi obra do acaso inexorável, mas sim frutos de sistemas econômico e de ocupação urbana que se esgotaram. O planeta não suporta mais o estilo de vida da parte mais rica da humanidade. E se não houver um freio de arrumação profundo, com mudanças estruturais no modelo capitalista, a destruição climática estará apenas no começo.
Acontece que nos planos de reconstrução, pouco se menciona – para não falar de uma eloquente ausência – dos povos indígenas atingidos. Pelo menos 80 comunidades originárias foram afetadas pelas enchentes de maio. [1] Contudo, mais do que negligência, existe um racismo ambiental entranhado na sociedade e no Estado brasileiro. Trata-se de uma questão que vem desde o Brasil Colônia, quando começaram o extermínio e a expulsão dos indígenas de suas terras.
Um dos princípios do Direito Climático é o da solidariedade e equidade intergeracional, que estabelece a garantia de um futuro ambientalmente equilibrado para as gerações futuras. Nesse sentido, ensinam Ingo Wolfgang Sarlet, Gabriel Wedy e Tiago Fenstersefer:
“Na perspectiva ecológica e climática, há também a necessidade de se assegurar uma redistribuição justa e equânime do acesso aos recursos naturais, sob pena de incidir-se em prática discriminatória, o que se acentua de forma significativa em vista da feição socioambiental que caracteriza alguns aspectos da crise climática (por exemplo, no caso dos deslocados e refugiados climáticos.” [2]
Todavia, é preciso esclarecer que nenhuma das 80 Terras Indígenas foram devidamente reconhecidas pelo poder público. Segundo o art. 231 da Constituição Federal, são reconhecidos aos indígenas “os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”.
Já o art. 67 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias determinou que “a União concluirá a demarcação das terras indígenas no prazo de cinco anos a partir da promulgação da Constituição”. Ou seja, tal mandamento constitucional deveria ter sido cumprido há mais de 35 anos, o que nunca aconteceu. As comunidades originárias do Rio Grande do Sul se encontram em situação de hipervulnerabilidade, uma vez que estão confinadas em pequenos, insuficientes e insalubres espaços à espera da restituição dos seus territórios ancestrais.
Conforme está mais do que comprovado por inúmeros estudos científicos, as terras indígenas possuem um nível de preservação ambiental não verificado nas propriedades rurais privadas. Por isso, demarcar os territórios das comunidades originárias significa também indiretamente salvaguardar o meio ambiente, nos termos do art. 225 da Carta de 1988. Na posse desses territórios ancestrais, os indígenas terão meios mais eficazes de enfrentar os nefastos efeitos da crise climática e de escolher como desejam viver, como lhes é garantido pelo direito à autodeterminação garantido na ordem jurídica interna e nos tratados firmados pelo país:
“Posteriormente, a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, no ano de 2007, trouxe em seus arts. 3º, 4º e 5º a autodeterminação de forma mais contundente, consistindo no direito desses povos em determinar livremente sua condição política e buscar livremente seu desenvolvimento econômico, social e cultural, podendo assim exercer o direito à autonomia ou ao autogoverno nas questões relacionadas a seus assuntos internos e locais, além de poder conservar e reforçar suas próprias instituições políticas, jurídicas, econômicas, sociais e culturais”. [3]
Além disso, o Brasil também é signatário da Convenção nº 169 da OIT, recepcionada com status supralegal, que estabelece o direito à consulta livre, prévia e informada das comunidades indígenas afetadas por quaisquer medidas legislativas e administrativas. Portanto, os planos de reconstrução em formulação e execução pelas várias instâncias governamentais devem promover a escuta apropriada e intercultural dos povos originários, para que possam exercer concretamente o supramencionado direito à autodeterminação.
Entretanto, as comunidades indígenas não estão inertes. Inegável o fato de serem vítimas de um cruel processo de apagamento identitário e de prolongado e não encerrado genocídio, como demonstram os sucessivos Relatórios de Violência Contra os Povos Indígenas no Brasil, elaborados há décadas pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi). [4] Mas também é evidente que existe uma forte resistência do movimento indígena na luta pela preservação de seus territórios, culturas e cosmovisões.
Dentro do pluralismo jurídico, defende-se a importância do reconhecimento dos sistemas jurídicos indígenas e da organização social e política dessas comunidades. Assim aprofunda a estudiosa Rosane Lacerda ao falar da força do Novo Constitucionalismo Latino-Americano:
“Foi a tenacidade da luta descolonial desses movimentos, inicialmente no sentido de fazer emergir, visibilizar aqueles saberes e práticas jurídicas não estatais e não ocidentais não como peças de museu, mas como diria Eugene Ehlich, experiências de um direito vivo, ou, melhor dizendo, de ‘direitos vivos’, que levou aos reconhecimentos constitucionais das juridicidades indígenas e, com elas, à percepção de mais um bom motivo para a autodeclaração plurinacional daqueles Estados. A prática, contudo, vem mostrando que a implementação dessa coexistência intercultural, além de contar com as dificuldades decorrentes de sua complexidade intrínseca, é também alvo de uma sistemática oposição de diversos setores”. [5]
Resistir ao acolhimento de outros modos de organização jurídico-política, de pensamento e de produção implica se fechar para possibilidades concretas de adaptação ao novo regime climático. Enquanto o país seguir privilegiando fortemente o modelo monocultor-agroexportador com vultuosas somas de recursos, despejadas anualmente por meio de Plano Safra, as alternativas tradicionais das terras indígenas e dos quilombos, da agricultura familiar e da agroecologia seguirão marginalizadas e sob a mira raivosa da bancada ruralista. Sobrerrepresentada no Congresso, essa parte do agro que se regozija com a destruição ambiental e que apoiou a recente tentativa de golpe, como apontam as investigações da Polícia Federal, será sempre uma ameaça à diversidade dos povos do campo, das florestas e das águas.
Não basta reconstruir nos mesmos termos de antes, ultrapassados e destruidores. Para encarar com seriedade a emergência climática, os povos indígenas não podem ser descartados. Ao contrário, sua vida e dignidade precisam ser asseguradas. E para isso a demarcação de suas terras tradicionais é inadiável. Isso implica no imediato encerramento da acintosa Mesa de Conciliação no Supremo Tribunal Federal – com claro viés anti-indígena – e a definitiva declaração de inconstitucionalidade da indecente Lei do Marco Temporal. Além de justa medida de reparação histórica, as Terras Indígenas são um caminho alternativo de reconstrução de “novos existires”. Demarcação já!
[1] RELATÓRIO da SESAI indica que mais de 16 mil indígenas foram impactados pelas enchentes no Rio Grande do Sul. Informe Técnico nº 19 da Sesai, 22 maio 2024. Disponível em: https://www.gov.br/povosindigenas/pt-br/assuntos/noticias/2024/05/relatorio-da-sesai-indica-que-mais-de-16-mil-indigenas-foram-impactados-pelas-enchentes-no-rio-grande-do-sul Acesso em: 28 ago. 2024.
[2] SARLET, Ingo Wolfgang; WEDY, Gabriel; FENSTERSEFER, Tiago. Curso de Direito Climático. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2023. p. 129.
[3] SILVA, Victor Melo Fabrício da. Jurisdição indígena: fundamento de autodeterminação dos povos indígenas na América Latina e no Brasil. São Paulo: Editora Dialética, 2022, p. 39/40.
[4] RELATÓRIO Violência Contra os Povos Indígenas no Brasil-Dados de 2023. Conselho Indigenista Missionário. 21 ed. Brasília: Conselho Indigenista Missionário, 2024.
[5] LACERDA, Rosane Freire. “Volveré, y Seré Millones”: contribuições descoloniais dos movimentos indígenas latino-americanos para a superação do mito do Estado-Nação. Tese (Doutorado em Direito) – Faculdade de Direito, Universidade de Brasília, 2014, p. 368.
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Emergência climática e a demarcação das terras indígenas como caminho de resistência ao colapso. Artigo de Gabriel Vilardi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU