30 Outubro 2024
"Que tipo de anúncio queremos propor para aqueles/as cristãos que se encontram aos cuidados da nossas Igrejas locais? O anúncio que considera pessoas abstratas, e as levam cada vez mais a abstração, a não práxis conformada a práxis de Jesus; ou o anúncio que dialoga com pessoas reais, e as ajuda à luz do ensinamento do Mestre a se construírem como suas discípulas e seguidoras. A primeira apresenta um Jesus de culto e a segunda o do seguimento".
O artigo é de Alzirinha Souza,leiga, doutora em Teologia pela Universidade Católica de Louvain (Bélgica), onde realizou a primeira tese doutoral sobre o pensamento de José Comblin. É mestre em Teologia pela Universidad San Dámaso (Madri) e pós-doutora em Ciências da Religião pela Universidade Católica de Pernambuco (Unicap). É professora e pesquisadora do PPG Teologia Prática PUC Minas e do Instituto São Paulo de Ensino Superior (Itesp). É membro da Société International de Théologie Pratique e fundadora e colaboradora do Centro pesquisa e documentação José Comblin, da Unicap.
Estamos vendo nos últimos tempos, se desenhar um longo caminho para a Igreja do Brasil construído, certamente, a partir de sua diversidade, mas com peculiaridades que chamam atenção. O autor de minha tese doutoral, José Comblin, tinha por hábito perguntar-se frequentemente: para que ser serve alguma coisa? Utilizando de sua técnica de pensamento que se coloca entre a destruição e reconstrução, Comblin invariavelmente à luz da Tradição, Sagrada escritura e Magistério, levava seus leitores a perceberem de forma processual a reflexão sobre algum tema.
Ora, em linha com Comblin, poderíamos nos perguntar: A que serve a Igreja? A reposta já é dada pela Igreja universal e pela Igreja local, em EN, 19 e DAp, 331, respectivamente:
“A Igreja procura transformar mediante a força do Evangelho, os critérios de juízo, os valores determinantes, os pontos de interesse, as linhas de pensamento, as fontes inspiradoras e os modelos de vida da humanidade que estão em contraste com a Palavra de Deus e o desígnio da Salvação”. (EN 19).
“A missão primária da Igreja é anunciar o Evangelho de maneira tal que garanta a relação entre Fé e Vida tanto da pessoa individual como no contexto sociocultural em que as pessoas vivem, atuam e relacionam entre si”. (DAp, 331)
Porém, nos últimos tempos, parece que estamos deixando de fazer processo de análise, desconstrução e reconstrução propositiva de ideias e estamos indo de saltos em saltos, no desafio de anunciar a pessoa de Jesus e seus ensinamentos às pessoas concretas que se encontram nas periferias existências e geográficas atuais. Cada vez mais incluem-se neste processo, elementos externos e estranhos a Igreja do Vaticano II, é dizer, a Igreja Povo de Deus, que reúne em si a comum unidade de seguidores e seguidoras de Jesus, não é novo.
Aliás, desde as primeiras comunidades, os texto bíblicos nos mostram momentos de tensão entre a forma de ser comunidade espelhada nos ensinamentos de Jesus e a comunidade dos desejos humanos. É significativo pensar que no livro dos Atos dos Apóstolos ao final do Capítulo 4 a comunidade era expressão do desejado por Jesus e ao início do Cap 5, encontra-se o relato de Safira e seu marido, que vendem um terreno e são denunciados por não colocarem os recursos à disposição da comunidade (Atos, 4 e 5). Em última expressão aliaram-se ao que era externo aos ensinamentos de Jesus e na forma de ser configurar em “comum unidade de pessoas”.
Igual podemos dizer que vivemos na América Latina, desde o Concilio Vaticano II, a tensionalidade que se expressa em duas formas de compreensão de sermos esta comum unidade eclesial: ou encontramo-nos “colocando tudo em comum”, ou nos colocamos “como Safira e seu marido”, esquecendo-nos que, o que diferencia diametralmente as duas posições é o Evangelho de Jesus. Assumir uma posição é necessário. Tal como expressado em Mateus 10, 34-35: “Não penseis que vim trazer paz à terra; não vim trazer paz, mas espada. Pois Eu vim para ser motivo de discórdia entre o homem e seu pai; entre a filha e sua mãe e entre a nora e sua sogra. Assim os inimigos do homem serão os da sua própria família”. Não que fosse o desejo de Jesus, nos colocar em guerra, mas seguramente levar-nos a tomar uma única posição a favor de seus ensinamentos que nos indicam o Reino de Deus, de forma segura, mesmo que isso nos custe a ruptura, tal como expressa o Senhor nos versículos 32-33: “Portanto, qualquer que me confessar diante dos homens, eu o confessarei diante de meu Pai, que está nos céus.33 Mas qualquer que me negar diante dos homens, eu o negarei também diante de meu Pai, que está nos céus.” Negamos ou afirmamos sua pessoa com nossa práxis?
Historicamente a Igreja Povo de Deus, se coloca de forma dúbia. Contudo, no contexto latino-americano, as Conferências do Celam – notadamente de Medellín, Puebla, Santo Domingo e Aparecida, elegem um critério de ação pastoral, logo um critério de colocar-se no mundo e expressar a ação evangelizadora no continente que se vincula diretamente a prioridade dos pobres.
Esta prioridade tem origem no Humanismo expresso por Deus, que se distancia do humanismo ocidental que qualifica pessoas. De todos os humanismos possíveis Deus elege seu critério central os pobres. Deus é aquele que ouve o clamor de seu povo, não como massa, mas como pessoas concretas-particulares que estão na história. Aqueles que eram os escravizados na terra do Egito, são os que são ouvidos primeiramente por Deus. Jesus a seus tempo, refazendo o humanismo de Deus, “ouve” prioritariamente os que estão à margem do sistema político-social e religioso de sua época. A religião da Bíblia, não é a de uma humanidade generalizada. É de homens e mulheres específicos, aos quais Deus escolhe e com os quais constitui o seu povo: são os pobres de seu tempo. Por isso, Deus não nos dá outra possibilidade a não ser de submeter todos os “humanismos” ao critério do humanismo de Deus.
A Igreja da AL, elege os pobres não por outra razão que a razão mesma de Deus. A forma de “ser Igreja” no continente à luz das Conferências do Celam, não mudou “ainda”. A Igreja Povo de Deus, caminha buscando vincular-se à práxis de Jesus como critério primeiro de sua ação pastoral. E nesse sentido, une-se ainda mais a Igreja universal do Papa Francisco, que deseja à luz do Concilio Vaticano II, vincular-se às realidades de homens e mulheres que tem alegrias e tristezas, que devem tocar o coração da Igreja (GS 1).
Ora, como tocar o coração de homens e mulheres que estão no chão da América Latina, senão os ensinando a compreensão das realidades onde se encontram? Por qual imagem de humanidade a Igreja do Brasil vem se deixando tocar? Pela concretude de homens e mulheres que se encontram nas mais distintas realidades, ou pela “abstração” de humanidade. Essa é uma questão essencial para descobrirmos de que forma a Igreja colabora com as questões humanas atuais. Se tratamos pessoas abstratas lhes propomos práxis abstratas, ao contrário, se tratamos com pessoas concretas, lhes propomos caminhos concretos. E para sermos honestos com o Evangelho, não deveríamos ter outra forma que não fosse a segunda.
Esse é o ponto central de reflexão: que tipo de anúncio queremos propor para aqueles/as cristãos que se encontram aos cuidados da nossas Igrejas locais? O anúncio que considera pessoas abstratas, e as levam cada vez mais a abstração, a não práxis conformada a práxis de Jesus; ou o anúncio que dialoga com pessoas reais, e as ajuda à luz do ensinamento do Mestre a se construírem como suas discípulas e seguidoras. A primeira apresenta um Jesus de culto e a segunda o do seguimento.
Em última instância, estamos falando de formas de conceber a pessoa mesma de Jesus, que desvelam diferentes formas de se compreender como Igreja na história. Se anunciamos um Jesus, etéreo, desencarnado, adaptado ao desejo contemporâneo da individualidade, facilidade, da retribuição, do devocionismo, do milagre, e do completo desconhecimento e manipulação da Pessoa do Espírito, teremos igual uma Igreja que contêm todos estes elementos. Ao contrário, se anunciamos Jesus que é o Emanuel, que está conosco, que nos ensina sobretudo o caminho para desvelar o Reino de Deus na história. O estar de Deus na história deveria ser o nosso estar. O Reino de Deus, centro e chave do pensamento de Jesus, não pode ser desvelado a não ser pela práxis daqueles/as que se encontram concretamente na história e se colocam na dinâmica de seu seguimento. Fora isso, não há como se afirmar como Igreja – comum unidade de pessoas reunidas em torno a pessoa de Jesus.
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Os estranhos caminhos para o anúncio do Evangelho. Artigo de Alzirinha Souza - Instituto Humanitas Unisinos - IHU