30 Outubro 2024
Um missionário cristão nos ambientes digitais é, na verdade, um “anti-influenciador digital”, pois opta conscientemente por “uma presença que promove o encontro, a escuta, o diálogo e o testemunho de vida cristã, transcendendo e contrastando o individualismo, a superficialidade e a efemeridade típicas dos ambientes digitais”.
O comentário é de Moisés Sbardelotto, mestre e doutor em Ciências da Comunicação pela Unisinos, com estágio de pesquisa doutoral na Università di Roma La Sapienza.
Nesta semana, a Comissão Episcopal Pastoral para a Comunicação da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) está promovendo um encontro com um grupo de 17 padres que “evangelizam no ambiente digital”, conforme reportagem publicada no site da CNBB (disponível aqui).
O encontro é fruto de uma história de vários anos, desde 2015, quando a CNBB, por meio da comissão e de seus ex-presidentes, foi buscando articular e dialogar com tais figuras midiáticas. Diante do cenário do catolicismo brasileiro contemporâneo, trata-se de uma iniciativa relevante por parte dos bispos, tendo em vista a necessidade de discernimento e de amadurecimento da presença digital da Igreja.
Não é um diálogo fácil. E a dificuldade desse diálogo explicita-se, por um lado, na presença no encontro de presbíteros que atuam em sentido contrário, senão até abertamente contraposto, às próprias diretrizes da CNBB sobre a ação evangelizadora. Por outro lado, evidencia-se também na ausência de alguns (muitos?) outros presbíteros igualmente (ou até mais) reconhecidos socialmente por sua atuação nos ambientes midiátcos e digitais. Por que não responderam ao convite dos bispos?
O evento – que contou até com uma fala do núncio apostólico no Brasil, Dom Giambattista Diquatro – ganhou grande destaque no site e nas mídias digitais da CNBB. Diversas postagens foram feitas pela instituição ao longo do dia, especialmente em sua conta no Instagram, que rapidamente passaram a circular em diversos ambientes. Algumas dessas postagens até tiveram de ser apagadas devido à repercussão fortemente negativa e agressiva por parte de alguns seguidores.
Assim como em todo acontecimento público, portanto, as entrelinhas do evento e suas ressignificações sociais por meio da circulação nas redes digitais revelam questões que merecem um olhar mais atento. Especialmente quando evidenciam “um verdadeiro ‘cisma silencioso’, em que muitos fiéis seguem mais aos ‘gurus’ e ‘influenciadores’ do que às orientações dos bispos, da CNBB e do Papa”, como afirma o teólogo Geraldo De Mori, SJ.
Alguns desses casos foram analisados no livro “Influenciadores digitais católicos: efeitos e perspectivas”. Na obra, fruto de uma pesquisa científica coletiva e interdisciplinar que durou três anos, afirmamos que, na atuação de muitos desses influenciadores, inclusive presbíteros, “há um ‘silêncio gritante’ em relação ao magistério de Francisco e da CNBB. Desse modo, as grandes questões eclesiais são simplesmente ignoradas em favor de uma fé mais individualista e devocional, desconectada das problemáticas socioculturais e eclesiais contemporâneas” (p. 24).
Haveria muito a dizer, então, sobre o fato de o próprio secretário-geral da conferência ter participado do encontro para apresentar, explicar e esclarecer aos presbíteros a organização da CNBB e sua evolução desde sua fundação em 1952. Sua presença no encontro parece ter visado a sanar uma certa ignorância (ou seria discordância?) por parte de muitos membros do próprio clero sobre esta que é uma das maiores conferências episcopais católicas do mundo. Aliás, por falar na fundação da CNBB, chamou a atenção a presença de um “participante involuntário” (ou talvez até indesejado por alguns) no encontro dos presbíteros. Nas fotografias que circularam na internet, esse participante aparecia emoldurado nas paredes do auditório na sede da entidade que, não por acaso, leva seu nome: Dom Hélder Câmara. Embora tenha sido um dos fundadores da CNBB e seja um dos grandes nomes da história da Igreja no Brasil, Dom Helder e sua presença imagética (ou seria melhor dizer simbólica e profética?) nas postagens sobre o evento foi fortemente criticada por diversas pessoas que, pelo contrário, se diziam fiéis a alguns dos presbíteros presentes no encontro e ao tipo de igreja que eles comunicam e encarnam.
Haveria muito a dizer ainda sobre o fato de o grupo também ter refletido sobre as campanhas organizadas pela CNBB, particularmente a Campanha da Fraternidade, com um foco na “prestação de contas” de tais iniciativas, como afirma o site da CNBB. A respeito desse tema, especificamente, e de sua relevância na pauta de um encontro com presbíteros que atuam nos ambientes digitais, basta lembrar as “campanhas da desfraternidade”, pautadas por desinformação e ódio, e alimentadas inclusive por alguns padres midiáticos contra a própria CNBB e a suposta “ideologia comunista e abortista” por trás da CF. Realizada há mais de 60 anos, a CF nunca foi tão questionada, atacada e até deturpada – ou simplesmente ignorada e explicitamente menosprezada – quanto nos anos mais recentes, inclusive por alguns presbíteros que atuam nos ambiente digital. O apelo desses indivíduos e grupos “católicos” era claro e direto: “Não doe seu dinheiro para a CF”.
Porém, para além daquilo que foi efetivamente dialogado entre os participantes – ao qual não tivemos acesso –, quero me focar em uma afirmação específica presente na reconstrução jornalística oficial, por dizer respeito a um processo do qual fiz parte. Segundo a notícia do site da CNBB, o Diretório de Comunicação da Igreja no Brasil, aprovado e publicado pelos bispos do Brasil em 2014, foi um elemento que contribuiu para a caminhada de articulação desse grupo. No entanto, afirma-se ainda que o Diretório teria sido “reformulado para conseguir aproximar-se deste conjunto de padres que evangelizam no ambiente digital”.
Na verdade, muito além de um foco específico nesse “conjunto de padres”, a atualização e a ampliação do documento tornaram-se necessárias devido a “todos os avanços culturais e tecnológicos” ocorridos ao longo desta última década, o que levou a “reconhecer que atualizar é um processo natural e permanente, possibilitando dar novas respostas aos novos desafios”, como afirma a presidência da CNBB na apresentação da edição atualizada do Diretório, publicada no fim de 2023.
Os bispos indicam ainda uma segunda motivação para tal atualização: “Passados 10 anos de sua publicação, faz-se necessário, também, incorporar as contribuições do Papa Francisco, em seu fecundo magistério de palavras e gestos, uma proposta de Igreja missionária em saída permanente para as periferias existenciais, geográficas e sociais, de maneira sinodal, gerando a cultura do encontro”.
Aproveitando, portanto, as referências feitas ao Diretório, gostaria de resgatar alguns trechos em que o documento fala justamente sobre a presença nos ambientes digitais por parte de toda a Igreja – entendida não apenas como um “conjunto de padres” cantores ou midiáticos, mas sim como “todo o corpo eclesial, em comunhão e sinodalidade”, cujos sujeitos são “os fiéis leigos e leigas, os fiéis de vida consagrada e os fiéis ordenados” (n. 351).
Espero que estes parágrafos inspirem e ajudem a aprofundar o diálogo na continuação do encontro entre os presbíteros, que segue até esta quarta-feira, ou talvez em seus desdobramentos posteriores. Os destaques em negrito são meus.
159. Num contexto em que se desenvolve e cresce a cada dia uma “cultura dos influenciadores” que trazem características que desafiam a ética cristã, como o narcisismo e a economia da atenção, os comunicadores e as comunicadoras católicos devem estar comprometidos com o princípio da unidade da Igreja, em contraposição a uma postura individualista e ideológica, que promove a divisão e a polarização”.
251. O ministério presbiteral pode encontrar nas formas de comunicação emergentes e nas tecnologias digitais um foco de sua atenção pastoral. Sendo sua tarefa primária “anunciar Cristo, Palavra de Deus encarnada, e comunicar a multiforme graça divina portadora de salvação mediante os sacramentos”, o presbítero é convidado a estar presente no mundo digital, em constante fidelidade à mensagem evangélica, para desempenhar o seu papel de animador da comunidade e de seus membros, que hoje se fazem presentes nesses ambientes. Não se trata de ocupar um espaço, mas sim de criar oportunidades para novos contatos e encontros, para dar a conhecer o amor de Deus e revelar o rosto de Jesus. Para isso, fazem-se necessárias “uma sólida preparação teológica e uma espiritualidade sacerdotal forte, alimentada pelo diálogo contínuo com o Senhor”.
254. Em muitos casos, é necessário um profundo discernimento para que a presença e a influência de presbíteros, religiosas e religiosos, leigas e leigos em rede não manifeste aquilo que o Papa Francisco denuncia como mundanismo espiritual. Isto é, aparências de religiosidade e até mesmo de amor à Igreja que não buscam a glória do Senhor, mas promovem apenas a glória humana, os próprios interesses, o bem-estar pessoal, um cuidado excessivo com a aparência ou um exibicionismo com a liturgia, a doutrina e o prestígio da Igreja, um elitismo narcisista e autoritário do ponto de vista moral ou doutrinal. Em tais casos, “já não há ardor evangélico, mas o gozo espúrio de uma autocomplacência egocêntrica”. Pelo contrário, a presença cristã nos ambientes digitais deve trazer estampado “o selo de Cristo encarnado, crucificado e ressuscitado”, de modo que “o Evangelho adquira uma real inserção no povo fiel de Deus e nas necessidades concretas da história”.
255. O mundanismo espiritual também leva alguns membros da Igreja a estarem em guerra aberta e muitas vezes violenta contra seus próprios irmãos e irmãs de fé nos ambientes digitais. Mais do que manifestar sua comunhão com a Igreja inteira e com a sua rica diversidade, tais cristãos comunicam o seu pertencimento a este ou àquele grupo que se sente diferente ou especial. Isso se explicita em rede por meio de “várias formas de ódio, divisão, calúnia, difamação, vingança, ciúme, desejos de impor as próprias ideias a todo o custo, e até perseguições que parecem uma implacável caça às bruxas. Quem queremos evangelizar com estes comportamentos?” Espera-se da comunidade cristã “um testemunho de comunhão fraterna, que se torne fascinante e resplandecente [...] de comunidades autenticamente fraternas e reconciliadas”. Isso também diz respeito a um testemunho de fidelidade e coerência ao magistério dos bispos quando se pronunciam de modo colegiado por meio da CNBB, assim como – e principalmente – ao magistério do Sumo Pontífice.
256. Além do conhecimento tecnológico, é necessário aprender modalidades comunicativas e linguagens comunicacionais eficazes, mas assegurando principalmente uma presença em rede que dê testemunho dos valores evangélicos. “No processo do anúncio do Evangelho, a verdadeira questão não é como utilizar as novas tecnologias para evangelizar, mas como se tornar uma presença evangelizadora no continente digital”. Segundo o Papa Francisco, “o testemunho cristão não se faz com o bombardeio de mensagens religiosas, mas com a vontade de se doar aos outros através da disponibilidade para se deixar envolver, pacientemente e com respeito, nas suas questões e nas suas dúvidas, no caminho de busca da verdade e do sentido da existência humana”, a exemplo de Jesus com os discípulos de Emaús (cf. Lc 21,13-35). Com sensibilidade espiritual, “é preciso saber-se inserir no diálogo com os homens e as mulheres de hoje, para compreender os seus anseios, dúvidas, esperanças, e oferecer-lhes o Evangelho, isto é, Jesus Cristo”.
257. Na prática cotidiana, existe um “estilo cristão” de presença também no mundo digital: traduz-se numa forma de comunicação honesta e aberta, responsável e respeitadora do outro. “Comunicar o Evangelho através dos novos meios significa não só inserir conteúdos declaradamente religiosos nas plataformas dos diversos meios, mas também testemunhar com coerência, no próprio perfil digital e no modo de comunicar, escolhas, preferências, juízos que sejam profundamente coerentes com o Evangelho, mesmo quando não se fala explicitamente dele”. Também no mundo digital, o anúncio de uma mensagem está intimamente vinculado a um testemunho coerente por parte de quem a anuncia. “Não deveria haver falta de coerência ou unidade entre a expressão da nossa fé e o testemunho do Evangelho na realidade onde somos chamados a viver, seja ela física ou digital. Sempre e de qualquer modo que nos encontremos com os outros, somos chamados a dar a conhecer o amor de Deus até os confins da terra”.
258. Em um ambiente marcado pela instantaneidade da informação e pela abrangência do contato, o testemunho do Evangelho por parte de todo o povo de Deus não deve se basear em critérios como popularidade, celebridade, aceitabilidade, persuasão, atratividade. A verdade do Evangelho “não é algo que possa ser objeto de consumo ou de fruição superficial, mas dom que requer uma resposta livre”. “Quando a comunicação tem como fim predominante induzir ao consumo ou à manipulação das pessoas, encontramo-nos perante uma agressão violenta”. Cristãos e cristãs têm o dever de anunciar o Evangelho a todos, sem excluir ninguém, “e não como quem impõe uma nova obrigação, mas como quem partilha uma alegria, indica um horizonte estupendo, oferece um banquete apetecível. A Igreja não cresce por proselitismo, mas ‘por atração’”.
* * *
Caso os presbíteros reunidos queiram aprofundar também os frutos do processo sinodal dos últimos anos, no qual o tema da missão nos ambientes digitais ganhou grande relevância, o documento final do Sínodo – aprovado e assumido pelo Papa Francisco em seu magistério – oferece outros elementos importantes para tal reflexão (a tradução é minha):
113. A difusão da cultura digital, particularmente evidente entre os jovens, também está mudando profundamente a percepção do espaço e do tempo, influenciando as atividades cotidianas, as comunicações e as relações interpessoais, incluindo a fé. As possibilidades que a rede oferece reconfiguram relações, laços e fronteiras. Embora hoje estejamos mais conectados do que nunca, muitas vezes experimentamos solidão e marginalização. Além disso, as mídias sociais podem ser utilizadas por portadores de interesses econômicos e políticos que, manipulando as pessoas, divulgam ideologias e geram polarizações agressivas. Essa realidade nos encontra despreparados e requer a escolha de dedicar recursos para que o ambiente digital seja um lugar profético de missão e de anúncio. Que as Igrejas locais encorajem, apoiem e acompanhem aquelas pessoas que estão envolvidas na missão no ambiente digital. As comunidades e os grupos digitais cristãos, particularmente de jovens, também são chamados a refletir sobre o modo como criam laços de pertença, promovem o encontro e o diálogo, oferecem formação entre pares, desenvolvendo uma modalidade sinodal de ser Igreja. A rede, constituída por conexões, oferece novas oportunidades para viver melhor a dimensão sinodal da Igreja.
Como tive a oportunidade de escrever em um livro recentemente publicado, um missionário cristão nos ambientes digitais é, na verdade, um “anti-influenciador digital”, pois opta conscientemente por “uma presença que promove o encontro, a escuta, o diálogo e o testemunho de vida cristã, transcendendo e contrastando o individualismo, a superficialidade e a efemeridade típicas dos ambientes digitais” (p. 105).
Em suma, “um missionário digital é seguidor de Alguém que afastou de si mesmo a tentação da fama, da riqueza e do poder (Mt 4,1-11), que não serviu a dois senhores (Mt 6,24), nem condescendeu com a mercantilização da casa do Pai (Jo 2,13-22) e se fez servo de todos a ponto de lhes lavar os pés (Jo 13-1-11), sendo fiel até à morte, e morte de Cruz. [...] Por isso, a missão cristã no ambiente digital é um chamado a ser ‘sinal de contradição’ (Lc 2,34), de ‘escândalo e loucura’ (1Cor 1,23) e até de ‘subversão’ (Lc 23,2) em meio àquilo que impera no mercado da comunicação digital” (pp. 104-105).
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Sobre os “padres que evangelizam no ambiente digital”. Artigo de Moisés Sbardelotto - Instituto Humanitas Unisinos - IHU