25 Outubro 2024
Uma reflexão sobre o amor, que flui do coração, dos gestos e das palavras, do coração que tanto amou. Um amor que dá de beber, que é amor por amor. A quarta encíclica do Papa Francisco nos leva à parte mais íntima de Deus, ao coração do Filho Amado, àquilo que articula o Deus Trinitário, o amor divino e humano, pois acreditamos em um Deus cuja atitude fundamental é doar-se.
A reportagem é de Luis Miguel Modino.
Um amor que nos entusiasma a ponto de não querermos nos separar dele, que vem de alguém que toma a iniciativa de nos amar incondicionalmente. A encíclica Dilexit nos (Ele nos amou) tem como ponto de partida a dimensão humana, afirmando que “é necessário recuperar a importância do coração”, cujo significado é analisado a partir de diferentes perspectivas: o centro do ser humano, o mais profundo, o lugar da sinceridade, alertando contra a superficialidade que o esconde e as mentiras, porque o coração deve ser o lugar das questões decisivas, ainda mais na sociedade líquida de hoje.
Francisco afirma que “em última análise, poder-se-ia dizer que eu sou o meu coração, porque é ele que me distingue, que me molda na minha identidade espiritual e que me põe em comunhão com as outras pessoas”, que me leva a “conhecer melhor e mais plenamente”. Diante da fragmentação do individualismo, o coração une, nos abre aos outros, nos doa, unifica e harmoniza nossas vidas, mantém o que a inteligência artificial não consegue captar. É um lugar de afeto, também espiritual, que nos coloca “numa atitude de reverência e obediência amorosa ao Senhor”. É um espaço a partir do qual o mundo pode mudar, pois “levar o coração a sério tem consequências sociais”, o que fará do coração a coisa mais importante e necessária diante das guerras, dos desequilíbrios socioeconômicos, do consumismo e do uso anti-humano da tecnologia.
Irmã Antonella Fraccaro e D. Bruno Forte apresentam Dilexit nos (Foto: Luis Miguel Modino)
O coração é visto pelo Papa como “o núcleo vivo do primeiro anúncio”, a origem da fé e a fonte das convicções cristãs. Ele se expressa em gestos, a exemplo de Jesus, “está sempre à procura, sempre próximo, sempre aberto ao encontro”, quer iluminar a existência, inclusive a tua. Um coração que nos leva a olhar com atenção, a descobrir as preocupações e os sofrimentos dos outros, que nos fala interiormente, expressando sentimentos profundos, além de algo superficial, do puro sentimento ou alienação espiritual, pois é na cruz que ele encontra sua expressão mais plena.
Além das imagens, o texto nos chama a adorar o Coração vivo de Cristo. Nessa imagem, que não é mais do que uma figura motivadora, o coração aparece como “um centro íntimo que gera unidade e, ao mesmo tempo, como expressão da totalidade da pessoa”, uma imagem que “nos fala de carne humana”. De fato, o coração, “o centro mais íntimo da nossa pessoa, criado para o amor, só realizará o projeto de Deus enquanto amar”. No caso de Jesus, esse amor é humano, divino e infinito, é um coração que, movido por uma perspectiva trinitária, é o caminho para ir ao Pai, ao seu “paizinho”, ao seu “Abbá”. Não nos esqueçamos de que, “perante o Coração de Cristo, é possível voltar à síntese encarnada do Evangelho” e viver “na infinita misericórdia de um Deus que ama sem limites e que deu tudo na Cruz de Jesus”.
Um amor que dá de beber ao seu povo, como aparece repetidamente na Bíblia e se concretiza na história da Igreja por meio da vida dos santos, transformando suas vidas, “numa relação pessoal de amor, na qual se iluminam os mistérios da vida”, como o texto nos conta a partir da experiência de São Francisco de Sales, que “face a uma moral rigorista ou a uma religiosidade de mero cumprimento de obrigações, o Coração de Cristo lhe aparece como um apelo à plena confiança na ação misteriosa da sua graça”. O texto analisa a vida de um bom número de santos, mostrando os vários aspectos que a devoção ao Coração de Cristo produziu em sua jornada espiritual. Uma relação que levou a contemplar o coração como a fonte que levou tantos homens e mulheres a serem testemunhas de consolação.
Nesse progressivo crescimento no amor que a encíclica contém, o último capítulo é o ponto alto, pois convida-nos a “procurar aprofundar a dimensão comunitária, social e missionária de toda a autêntica devoção ao Coração de Cristo”, já que “o Coração de Cristo, ao mesmo tempo que nos conduz ao Pai, envia-nos aos irmãos. Nos frutos de serviço, fraternidade e missão que o Coração de Cristo produz através de nós, cumpre-se a vontade do Pai”, a ponto de ver nisso a maneira pela qual se fecha o círculo: “Nisto se manifesta a glória do meu Pai: em que deis muito fruto” (Jo 15,8).
“O pedido de Jesus é o amor”, nos diz Francisco, e isso deve levar a “prolongar o seu amor nos irmãos”, da mesma forma que os primeiros cristãos reconheciam os pobres, os estrangeiros e tantos outros descartados pelo Império Romano, os últimos da sociedade. A história da Espiritualidade nos mostra essa dinâmica, esse “ser fonte para os outros”, essa união entre “fraternidade e mística”. Nesse sentido, falando de reparação, uma dinâmica nascida da devoção ao Sagrado Coração, o texto nos convida a construir sobre as ruínas, a reparar os corações feridos, a descobrir a beleza de pedir perdão, porque “não se deve pensar que reconhecer o próprio pecado perante os outros seja algo degradante ou prejudicial para a nossa dignidade humana”.
Nessa dinâmica de reparação, a encíclica nos adverte que “a nossa cooperação pode permitir que o poder e o amor de Deus se difundam nas nossas vidas e no mundo, e a rejeição ou a indiferença podem impedi-lo”, chamando-nos a descobrir que “as renúncias e os sofrimentos exigidos por estes atos de amor ao próximo unem-nos à paixão de Cristo”. Trata-se de fazer com que o mundo se apaixone pela proposta cristã, que será atraente “quando pode ser vivida e manifestada na sua integralidade”, e não permanecer “um simples refúgio em sentimentos religiosos ou em cultos faustosos”. É uma comunhão de serviço, onde o amor se torna serviço comunitário, “com a própria comunidade e com a Igreja”, porque “se nos afastarmos da comunidade, afastamo-nos também de Jesus”. É Ele quem envia para espalhar o bem, sendo um missionário que não deixa de “viver a alegria de tentar comunicar o amor de Cristo aos outros”.
Irmã Antonella Fraccaro e D. Bruno Forte apresentam Dilexit nos (Foto: Luis Miguel Modino)
Uma encíclica que Francisco relaciona à Laudato si' e à Fratelli tutti, mostrando que bebendo do amor de Jesus Cristo tornamo-nos capazes de tecer laços fraternos, de reconhecer a dignidade de cada ser humano e de cuidar juntos da nossa casa comum”. Um amor gratuito, do qual a Igreja precisa “para não substituir o amor de Cristo por estruturas ultrapassadas, obsessões de outros tempos, adoração da própria mentalidade, fanatismos de todo o género que acabam por ocupar o lugar daquele amor gratuito de Deus que liberta, vivifica, alegra o coração e alimenta as comunidades”.
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'Dilexit nos': o Coração de Jesus, caminho para ir ao seu “paizinho”, ao seu “Abbá”, aos irmãos e irmãs - Instituto Humanitas Unisinos - IHU