23 Outubro 2024
“Perdemos as referências. Antes, era só escutar as cigarras que sabíamos que era hora de preparar o plantio do milho. Estamos um pouco desorientados. A chuva nos avisava de sua chegada pelo canto das cigarras, mas já não conversa com a gente”, escreve Silvia Adoue, educadora popular da Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF) e professora da UNESP, em artigo publicado por Quilombo Invisível, 20-10-2024.
As cigarras armam um escândalo incrível às sete da manhã. São os machos chamando pelas fêmeas. Duas horas depois, já estão caladas e apenas voltam a cantar quando baixa o sol, lá pelas seis da tarde. “Alguma coisa anda mal”, me dizia hoje David, enquanto eu preparava os posts para plantar as pitaias. As cigarras, todos os anos, anunciam as primeiras chuvas de primavera, mas neste ano ainda não choveu, e já vamos pela metade de outubro. De toda maneira, estamos semeando, correndo contra o tempo, para ter tudo pronto para quando chegue a chuva tão esperada. O córrego, perto da horta, é um fiozinho, ainda que teimoso. Continuam as queimadas nos canaviais, aqui e ali.
Alguns bairros estão sem água, tem rodízio: hoje você toma banho, amanhã não. No entanto, às fábricas da Ambev e da Heineken não falta água sequer um dia, nem à Cutrale (do suco concentrado de laranja), nem à Raízen (que moe cana para fazer etanol). Parece mentira estarmos acima do aquífero Guarani, na área de recarga. Tem pouco, e o pouco está mal repartido.
Enquanto demoram as chuvas aqui, na capital teve o temporal, todo rápido e repentino. Com a queda das árvores sobre os cabos de energia, quase um milhão e meio de casas (mais do que na Florida, depois do furacão Milton) ficaram sem luz por vários dias. Aqui, no interior, dizem que a falta de chuvas tem a ver com a imensa seca na Amazônia, que atingiu 70% dos municípios [1]. Só no estado do Amazonas, a escassez de água atingiu 750 mil pessoas [2]. Se na Amazônia não se evapora mais do que o suor do povo, não temos esses rios aéreos que depois chovem por aqui. Assim estamos.
Na retomada Guarani e Kaiowá de Douradina, no estado do Mato Grosso do Sul, os fazendeiros derramaram agrotóxicos no rio que atravessa o território.
Cansados de esperar do governo, em terras que os povos Tupi chamam de Pindorama (“terra das palmeiras”), os Guarani e Kaiowá resolveram fazer a autodemarcação de seu território. O Estado criou todo um complexo e demorado procedimento para reconhecer os territórios dos povos. O presidente Lula iniciou seu mandato em 1º de janeiro de 2023 subindo a rampa do Palácio do Planalto acompanhado pelo cacique Raoni, criou o Ministério dos Povos Indígenas e preencheu todos os postos do ministério e da FUNAI com indígenas. Há uns 300 processos de demarcação correndo e o presidente prometeu que seriam concluídos até 2027. Estamos em outubro de 2024 e, no que vai do mandato, apenas foram demarcadas 12 terras indígenas [3]. Do resto dos territórios, já há laudos antropológicos, estudos cartográficos… em alguns casos falta apenas a assinatura.
Em Douradina, reivindicam uma área de mais de 12 mil hectares que o agronegócio vem explorando com soja e milho [4]. Apesar do cerco e dos ataques reiterados dos fazendeiros, com suas caminhonetes, armados e a cara descoberta, os Guarani e Kaiowá não desistiram. Retomar não é apenas entrar na terra, é preciso recuperá-la para seu nhanderekó (modo de vida). Porém, para isso, é necessário recuperar as nascentes.
Os jara (espíritos) do rio e da mata ciliar se retiraram. Como já aconteceu no rio Watu (conhecido como rio Doce), em território Krenak, depois do desastre de Mariana [5]. Foram embora, não conversam com as pessoas.
Os Wajãpi sabem que houve uma época em que era possível a comunicação entre os mundos dos diferentes seres. Hoje já não é possível. Não sem a intermediação dos xamãs [6]. Porém, temos alguns indícios.
Perdemos as referências. Antes, era só escutar as cigarras que sabíamos que era hora de preparar o plantio do milho. Estamos um pouco desorientados. A chuva nos avisava de sua chegada pelo canto das cigarras, mas já não conversa com a gente.
São as seis da tarde. As cigarras voltam a cantar. Dizem por aí que podem chegar a um volume de som de 120 decibéis. (Muito mais do que é permitido às motos, que apenas podem atingir os 80 decibéis para os motoqueiros não serem multados!) E a gente escuta o canto das cigarras como uma esperança.
[1] Ver: https://infoamazonia.org/2024/08/09/seca-atinge-69-dos-municipios-da-amazonia-em-2024/
[4] Ver: https://mst.org.br/2024/07/31/a-velha-alianca-genocida-do-capital-e-estado-sobre-os-guarani-kaiowa-no-ms/ ; https://www.brasildefato.com.br/2024/09/13/estamos-na-guerra-retomadas-kaiowa-em-douradina-ms-se-tornam-epicentro-do-conflito-fundiario-por-demarcacao y https://quilomboinvisivel.com/2024/07/28/um-novo-tempo-de-retomadas-territorios-ancestrais-guarani-e-kaiowa-na-terra-indigena-panambi-lagoa-rica-enfrentam-o-terror-estatal-latifundiario/
[5] Ruptura da barragem da empresa Sanmarco, que liberou detritos da mineração de ferro, em 2015, no estado de Minas Gerais.
[6] Ver: OLIVEIRA, Joana Cabral de. “Mundos de roças e florestas”. In: Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, v. 11, n. 1, p. 115-131, jan./abr. 2016. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/1981.81222016000100007.