03 Abril 2024
"A saída para o risco de falta de água não é trabalhar contra a natureza, mas sim usar as estratégias que ela sempre usou para garantir água boa mesmo em regiões que naturalmente chove pouco. E pensar no que é interesse coletivo sempre em primeiro lugar. Isso é que vai garantir a segurança alimentar, a disponibilidade de água para todos os usos e a proteção da natureza ao mesmo tempo".
O comentário é de Arno Kayser, agrônomo, ecologista e escritor, em artigo publicado em seu blog, 19-03-2024.
Com as mudanças climáticas em franca expansão o setor agrícola tem lidado cada vez mais com o problema das secas gerando quebra de safra. Além de ser um problema para a geração de renda no setor ele também é uma preocupação quanto à segurança alimentar da humanidade cuja necessidade de comida tente a crescer com a expansão da população. O que pode fazer mais gente no mundo passar a ter riscos de passar fome.
Em geral se houve muitas vozes indicando a irrigação como saída para diminuir esse risco. São apontados sempre os mesmos caminhos. O uso de tecnologia de irrigação mais eficiente que use menos água, grandes obras de transposição de bacia e a necessidade de mais estruturas de armazenamento dos excessos de chuvas para uso nos meses de escassez.
Essa lógica está correta de um modo geral. Mas para ser efetiva é preciso, antes de tudo, termos água disponível para todos os usos humanos. As projeções de câmbio climático apontam que a disponibilidade de água pode cair em várias regiões do Brasil. No noroeste da Bahia os estudos do Cemaden apontam a passagem de uma região do Semiárido para um clima árido com a redução do regime de precipitação já se verificando.
No sul parece que vai chover mais, mas cada vez em períodos mais concentrados com grandes enchentes seguidas de estiagens curtas ou mesmo mais longas.
O assunto tem vários aspectos a serem observados.
A opção por irrigação é correta, mas depende de disponibilidade do recurso. Se não chove regularmente não adianta ter estrutura de irrigação. Inclusive se fala num paradoxo da melhoria da tecnologia de irrigação. Quanto mais eficiente for à irrigação mais gente procura se valer dela. O que aumenta o consumo resultando no curioso fato de que com mais tecnologia de irrigação aumenta a falta de água não só na agricultura, mas em outros usos também.
Mesmo contado com obras de reservação ou transposição pode faltar água se ela não estiver disponível na grande caixa d’água natural que é o solo. Um metro quadrado de solo pode segurar até 500 litros de água. Mas para isso ela tem que entrar no solo. E isso só ocorre quando se preservam as áreas naturais produtoras de água que são os banhados, as matas e a vegetação natural, junto às encostas e nascentes, bem como as Áreas de Preservação Permanente. Essas áreas estratégias para infiltração de água no solo deve ser o foco principal de quem se preocupa com falta de água na agricultura e noutros usos. Solos urbanizados ou com agricultura muito intensa não têm a mesma taxa de infiltração de água do que um solo conservado com vegetação natural.
A grande transposição do São Francisco corre o risco de não ter água suficiente se seguir a devastação do Cerrado e as Áreas de Preservação Permanente junto aos rios mais acima na bacia. É ali que a água entra no solo e vai ser liberada aos poucos na época seca. Esse mesmo risco existe para os sistemas de transposições que abastecem a Grande São Paulo e a Cidade do Rio de Janeiro.
No sul pode faltar água a ser acumulada em barragens e açudes, caso as Áreas de Preservação Permanente e outras áreas estratégias para infiltração de água no solo seguirem sendo destruídas.
Todos que já acompanharam um processo de recuperação da vegetação nativa numa região logo apontam a volta das nascentes como um dos primeiros frutos dessas ações. Junto com o retorno da fauna silvestre é um dos primeiros efeitos percebidos o aumento da água nos cursos hídricos por que aumenta a reserva no lençol freático onde a água está protegida da evaporação. O que não ocorrem em barramentos e açudes onde o sol quente e o ar seco das estiagens podem roubar muito da água acumulada.
Mais infelizmente não se vê essa lógica sendo muito difundida nos debates sobre a falta de água. O que se vê são saídas caminhado no sentido de destruir essas áreas estratégias para infiltração de água no solo, em especial as Áreas de Preservação Permanente. E saídas querendo reservar água, um bem público, para usos exclusivamente privados.
No Rio Grande do Sul um projeto de lei liberou para quem quiser fazer açude e barragem o uso das Áreas de Preservação Permanente. O que beneficiam apenas uns poucos grandes produtores. Em geral os que também têm grandes Áreas de Preservação Permanente devastadas.
Além disto, com essa lei estamos voltando ao Código das Águas de 1934 que considerava a água localizada numa área de terras como propriedade privada de quem era dono das terras onde ela era armazenava ou mesmo a que ocorria naturalmente. Isso vai contra o conceito de água com bem público que embasa a legislação nacional de gestão das águas. O que a torna inconstitucional.
Essa lei vai aumentar o risco de conflito por água como o já existente em muitos lugares do mundo onde se criou maciços projetos de irrigação que levam a falta dela nas partes mais baixas das bacias.
O que deveríamos estar fazendo é incrementar ainda mais os comitês de bacias onde democraticamente podemos gerar políticas públicas para garantir água de abundância e qualidade para todos os usos. Também temos que implantar mais projetos de recuperação das áreas estratégias para infiltração de água no solo. Isso vai ajudar no combate tanto das consequências como das causas das mudanças climática pelo sequestro de carbono e pelo aumento da disponibilidade da água no solo. Também ajuda na proteção da biodiversidade e reduz a poluição das águas. Regiões com áreas estratégias para infiltração de água no solo e Áreas de Preservação Permanente recuperadas e /ou preservadas tem águas mais limpas, pois a vegetação filtra a contaminação ambiental de resíduos tóxicos lançados na água.
A saída para o risco de falta de água não é trabalhar contra a natureza, mas sim usar as estratégias que ela sempre usou para garantir água boa mesmo em regiões que naturalmente chove pouco. E pensar no que é interesse coletivo sempre em primeiro lugar. Isso é que vai garantir a segurança alimentar, a disponibilidade de água para todos os usos e a proteção da natureza ao mesmo tempo.
Os comitês de bacia têm trabalhado nesse sentido. Resta que alguns parlamentares ligados ao agronegócio parem de propor ideias que só atrapalham a construção dos grandes desafios atuais de gestão das águas, proteção da biodiversidade e produção de alimentos em harmonia com as leis da natureza.
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Secas, crise hídrica e Áreas de Preservação Permanente. Artigo de Arno Kayser - Instituto Humanitas Unisinos - IHU