17 Outubro 2024
Em 2022 tive a alegria de ajudar o Instituto Humanitas da Unisinos - IHU na elaboração de um número da revista IHU On-Line sobre a Zooliteratura, e nele participaram autores nacionais fundamentais para o debate do tema, entre os quais Maria Esther Maciel e Evando Nascimento. Evando Nascimento escreveu um maravilhoso livro sobre o pensamento vegetal (Civilização Brasileira, 2021). É interessante constatar que neste livro ele tece importantes elogios a Han Kang, e seu romance de 2018, A vegetariana. Sabemos que a autora ganhou o Nobel de Literatura de 2024.
O comentário acima é de Faustino Teixeira, publicado em sua página do Facebook. Na sequência da sua fala, ele reproduziu um estrato do livro de Evando Nascimento, O pensamento vegetal: a literatura e as plantas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2021, p. 314-315.
Quero partilhar aqui com vocês a síntese feita por Evando Nascimento desse precioso livro de Han Kang.
O “romance da sul-coreana Han Kang (2018) impressiona justamente pela ênfase dada a uma situação de extrema violência contra o corpo feminino. Não se trata de um panfleto em favor do vegetarianismo, mas sim de uma crítica ao modo como se abatem os animais e como se consome carne vermelha e branca abusivamente. Tem-se, portanto, uma dupla violência: contra os animais e contra as mulheres, mas também contra os vegetais.
Han Kang | Foto: Reprodução
O fato da protagonista Yeonghye se identificar a estes últimos, a ponto de querer se transformar numa árvore, fazendo a fotossíntese, radicaliza a ideia de uma resistência feminina à agressividade falocêntrica, encarnada pelo marido, pelo cunhado, mas sobretudo pelo pai.
Nesse romance, tudo começa no dia em que o marido da protagonista Yeonghye acorda durante a noite e encontra a mulher diante da geladeira, colocando todas as carnes num saco para jogar no lixo. Trata-se de um casal absolutamente comum de classe média, cuja vida transcorreria anonimamente não fosse a mudança súbita de comportamento por parte da esposa, a qual passa a não consumir, a não cozinhar e não servir nenhum tipo de carne.
A explicação que ela dá para sua atitude são os sonhos terríveis que tem, envolvendo matança de animais, com muito sangue. Tais narrativas oníricas são as únicas dela própria em primeira pessoa, e logo na inicial ela conclui descrevendo seu rosto coberto de sangue, como se ela fosse a própria vítima do holocausto animal: Era familiar e desconhecido ao mesmo tempo... Essa sensação real e esquisita, terrivelmente estranha (Kang, 2018, p. 17).
A atmosfera de familiar estranheza (o Unheimliche freudiano) perpassa toda a narrativa, que não tenho intenção de analisar aqui em toda sua extensão, pois mereceria um longo estudo à parte. O fato de Yeonghye se identificar aos vegetais a ponto de querer se transformar numa árvore reforça a identificação das formas verdes de vida com as existências mais vulneráveis do planeta.
O enredo é trágico, e a protagonista acabará num hospício, exatamente por não se submeter às injunções da família que a obriga a comer carne. Num dos episódios mais fortes, ela foge para o parque onde fica o hospital e tenta plantar a si própria de cabeça para baixo, pois é assim que acha que as árvores estão. Segundo conta à sua irmã Inhye, atendeu ao chamado que vinha da terra: ´Fui para lá porque escutei um chamado (Kang, 2018, p. 152).
E ao se tornar planta, recusa-se a comer, bastando ficar exposta ao sol para se alimentar... Eis como narra a descoberta que a leva ao ato extremo de 'plantar-se' como uma árvore, entregando-se às intempéries e à luz solar:
´Sabe como descobri isso? Foi durante um sonho: eu estava de cabeça para baixo e do meu corpo cresciam folhas, e das minhas mãos brotavam as raízes. As raízes iam perfurando a terra, mais e mais profundamente... Senti que uma flor ia nascer do meio das minhas pernas e as abri, abri bem as pernas` (p. 140).
Não por acaso, o componente erótico (e tenebroso) que perpassa todo o romance tem sempre na flor sua mais chamativa metáfora: do modo que acontece na ficção de Clarice, é como se das flores viesse o apelo mais forte para o devir-vegetal. Han Kang explicou em entrevista que foi numa frase do poeta Yi Sang que ela encontrou a inspiração para essa temática: ´Acho que os humanos deveriam ser plantas` (Apud Benevides, 2021)”.
Referência: NASCIMENTO, Evando. O pensamento vegetal: a literatura e as plantas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2021, p. 314-315.
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A vegetariana Han Kang 2018 - Instituto Humanitas Unisinos - IHU