28 Fevereiro 2024
A obra de Corine Pelluchon permeia os direitos e os problemas dos animais, a saúde ambiental e a vulnerabilidade humana: todas problemáticas deste longo presente, que são debatidas em muitos cenários e que deveriam interessar – absolutamente – a todos. Pelluchon tem especialização em filosofia política e ética aplicada (ambiental, animal e médica). Também é pioneira em trafegar todos estes territórios. Escreveu cerca de quinze livros, com alguns tendo sido traduzidos ao espanhol, embora não foram publicados (em papel) em nosso país, a Argentina.
Filósofa, professora na Universidade Gustave Eiffel, Pelluchon estudou filosofia na Universidade Paris 1 Panthéon-Sorbonne. Visitou Buenos Aires, em 2015, e participou da primeira edição de A Noite da Filosofia. Naquele momento, ela propos criar um humanismo que estabeleça um novo pacto social para reorganizar as relações entre humanos e não-humanos.
Da França (e por e-mail), ela analisa as idas e vindas do mundo animal ao humano.
A entrevista é do Hector Pavon, publicada por Clarín-Revista Ñ, 23-02-2024. A tradução é do Cepat.
Nos últimos anos, que mudanças observou na relação entre humanos e animais? Podemos falar de um tratamento mais consciente e cuidadoso por parte das pessoas?
A situação é paradoxal: por um lado, cada vez mais pessoas estão preocupadas com o destino dos animais e consideram os cães e gatos que convivem com elas membros da família, mas, por outro, os animais continuam sendo tratados como objetos. O número de animais abandonados não só não diminui, como até aumenta.
Além disso, a generalização da pecuária intensiva, que ilustra a mercantilização total dos animais, praticamente endossa esta instrumentalização dos animais. Sem falar na caça com cães e nas corridas de touros, que são a quintessência da dominação, na medida em que estetizam a violência contra os animais e fazem dela um sinal de superioridade humana, inclusive de virilidade. Como ter consideração por esses seres sensíveis e individuais, quando na alimentação e no lazer são tratados como inimigos ou objetos?
E como esses vínculos podem ser transformados?
Não haverá nenhuma mudança real em nossa relação com os animais de estimação enquanto não assumirmos a melhora substancial da condição dos animais como um dever moral fundamental e uma meta política que deve pesar em todas as decisões. Enquanto não se ressaltar o que está em jogo nos maus-tratos aos animais – como tento fazer em todos os meus livros, particularmente em Manifiesto animalista, onde desde as primeiras linhas digo que esta violência é o espelho daquilo em que nos transformamos –, continuaremos sendo ambivalentes a respeito deles: mimaremos certos animais, enquanto forem jovens e não interferirem em nossos planos, e os dispensaremos quando não necessitarmos mais deles, para depois fazer vista grossa à violência insuportável infligida a porcos, patos, touros torturados em arenas, animais selvagens e elefantes presos para o resto de sua vida em um circo etc.
Os maus-tratos aos animais são uma expressão do mal e a marca da nossa incapacidade em aceitar a alteridade, e enquanto a nossa consideração moral permanecer confinada à nossa família e amigos e, portanto, a um círculo restrito de pessoas, não deve nos surpreender que aumente a indiferença moral em relação aos outros, incluídos os humanos, e com ela a incapacidade de conviver com os outros, para lhes dar espaço, e depois a intolerância e o racismo.
A questão da nossa relação com os animais é importante em si, mas também tem uma dimensão estratégica, e estou convencida de que não sairemos de uma relação de dominação, que leva à destruição da natureza e à exploração de outros seres vivos, incluindo outros humanos, enquanto não mudarmos fundamentalmente a nossa relação com os animais, o que toca o mais profundo de nossa humanidade.
Neste aspecto, a pandemia significou alguma coisa? Os maus-tratos e a violência contra os animais diminuíram?
Desde a pandemia, tem havido uma taxa muito alta de abandono de animais, muitas vezes, animais jovens que foram comprados durante o período de confinamento. As pessoas adquirem animais de estimação como objetos e depois os dispensam. São a sua companhia quando se sentem sós e, depois, quando não precisam mais deles ou percebem que um animal exige cuidados, tempo e dinheiro, livram-se deles. Muitos ficam sem comida e sem água.
A falta de responsabilidade fez com que a legislação francesa obrigasse todos os adotantes a ter um certificado para que saibam o que implica ter um animal de estimação. Mas, sobretudo, existe uma indiferença moral que, na minha opinião, se generalizou, e as vítimas são os animais, que dependem de nós. Esta indiferença moral não provoca apenas o abandono em massa de animais, mas também explica por que esses animais são abandonados de qualquer forma: amarrados a um poste em terra de ninguém, sem comida, nem água, em um apartamento que ficou vago etc. O céu é o limite!
As associações protetoras dos animais que visito estão sobrecarregadas e me dizem que embora sempre tenha existido crueldade e abandono, tudo isto aumentou desde a pandemia e que, em geral, cada vez há mais atos de maus-tratos. A boa notícia é que estas associações fazem tudo o que é possível, resgatando muitos animais após alertas de vizinhos ou transeuntes, e que a polícia intervém cada vez mais para que os animais sejam apreendidos e confiados a abrigos ou famílias de acolhimento.
Os movimentos de certos animais são imitados (por exemplo, gorilas, crocodilos), são usados como modelos por homens e mulheres, através de uma inteligência artificial, e muitas pessoas se fantasiam de animais. Existe o desejo de querer ser um animal?
Estas brincadeiras e situações são um exemplo da nossa relação ambivalente com os animais. Por um lado, nós os admiramos, imitamos, sentimo-nos próximos deles a ponto de imitá-los e reproduzi-los como modelos através da inteligência artificial e, por outro, na realidade, impomos-lhes uma vida de miséria ao apoiar a pecuária intensiva através das nossas escolhas alimentares.
Talvez tentemos também redimir, através dessa projeção e dessas criações pela inteligência artificial, toda a violência que lhes infligimos. No entanto, é uma ilusão. Não tenho nada contra essas fantasias e artifícios, mas jamais poderão compensar, nem apagar o sofrimento animal, nem o mal que cometemos. Temos que ter a coragem de enfrentar o que, através das nossas escolhas de consumo, dos nossos estilos de vida e da nossa preguiça ou passividade, estamos impondo a estes outros seres sensíveis aos quais ninguém pensa, agora, em comparar com máquinas e que não são brinquedos.
Qual é a sua opinião a respeito do movimento transespécie? Qual é o seu objetivo?
As semelhanças entre animais e humanos e entre espécies não implicam o reconhecimento das diferenças e da alteridade. Não sou apaixonada pelas proezas técnicas destinadas a criar espécies híbridas. Embora seja importante refletir sobre as variações individuais, como Charles Darwin nos convidava a fazer, parece-me que antes de tudo é necessário velar pelo bem-estar dos seres e a sua relação com o meio ambiente. O caráter dinâmico da vida faz com que as fronteiras entre as espécies não sejam as que imaginávamos antes, mas isso não significa que tudo seja possível, nem que estejamos em uma metafísica da mistura na qual, em definitivo, não exista mais diferença entre um animal e um cogumelo.
Até que ponto considera que, hoje, a relação entre cultura e natureza está mudando?
Existe um movimento fundamental que atinge cada vez mais pessoas, em todo o mundo, e que tenho tentado acompanhar nos meus últimos livros, particularmente em Ecología como nueva ilustración. A preocupação de muitos com a ecologia, que não se reduz à sua dimensão ambiental – ou seja, a luta contra o aquecimento climático e a erosão da biodiversidade –, mas que é uma forma de viver, de habitar a Terra de uma forma diferente e de compartilhar as suas riquezas com outros, humanos e não humanos, é um presságio deste movimento fundamental que testemunha a emergência de uma nova era, de uma nova época.
Há uma década, o interesse pelo destino dos animais é evidente (embora quando comecei a trabalhar nessas questões, há mais de 15 anos, não se pensava bem nisso). Faz também parte de um vasto movimento profundamente preocupado com a relação do ser humano consigo e pela forma como se percebe e o seu lugar na natureza. Eu acrescentaria que o desejo de muitas pessoas de comer, vestir e trabalhar de outra forma, preocupando-se com o seu impacto na natureza e nos outros e reivindicando a sua existência, em vez de seguir os ditames do mercado, assim como o feminismo, dão fé desta transformação do eu e da relação com os outros, que é o prelúdio de um movimento social fundamental.
Claro, mas existe a consciência de que a problemática é global?
Em vez de nos vermos como um império dentro de outro império, como uma exceção ou como o número um da criação, nós, seres humanos, estamos tomando consciência daquilo que nos une aos outros, tanto humanos como não-humanos. Mais concretamente, a consciência desta interdependência e de pertencer a uma comunidade biótica, que não exclui o reconhecimento das diferenças entre nós e os animais e entre nós e as plantas, torna-se evidente por si mesma. Não é apenas intelectual e abstrata, mas leva a mudanças profundas nas representações, valores, afetos e comportamentos.
A razão pela qual esta transformação da subjetividade, da forma como nós nos percebemos e pensamos a nossa relação com a natureza e com os outros seres vivos, é tão profunda, na minha opinião, que marca o corpo. Deixamos de nos ver apenas como seres pensantes caracterizados pelo projeto, pela liberdade da vontade e levamos em consideração o fato de que vivemos da água, do ar, dos alimentos, dependemos da água, dos ecossistemas, dos elementos, reconhecemos nossa condição terrena e a comunidade de destino que nos une aos outros seres vivos.
Em um nível mais profundo, a consciência da nossa fisicalidade anda de mãos dadas com a consciência da nossa vulnerabilidade, da nossa passividade e da nossa dependência das condições biológicas, ecológicas, sociais e emocionais de nossa existência. Não somos apenas o que fazemos, devemos também cuidar da Terra e dos outros seres vivos, sem os quais a nossa liberdade, as nossas opções pessoais e coletivas, a justiça e até a paz se veem ameaçadas. Por último, o aquecimento do planeta e as suas consequências globais, que ameaçam a nossa sobrevivência e a de outras espécies, confrontam-nos com os nossos limites, a nossa precariedade, mas também com os limites do nosso modelo de desenvolvimento e a precariedade da nossa civilização.
A espécie humana reconhece a sua finitude, os seus limites?
Esta situação nos obriga a examinar a fundo os nossos modos de ser e, sobretudo, a aceitar a nossa mortalidade e falibilidade, como mostro em La esperanza o la travesía de lo imposible. Para além da superação dos dualismos natureza/cultura, humano/animal, homem/mulher – dualismos que implicam a subordinação de um termo sobre o outro –, a preocupação com a ecologia, com os animais, com o feminismo e a entrada da vulnerabilidade na ética e no direito dão testemunho de uma revolução antropológica, de uma mudança muito profunda na forma como pensamos a nós mesmos e o nosso ser-com-o-mundo-e-com-os-outros.
O horizonte da ecologia não é apenas a natureza, é o mundo. A ecologia não é um retorno à natureza, mas a sabedoria (logos) do nosso habitar a Terra e da casa comum (oikos). E não pode haver sabedoria, nem arte da medida, nem autolimitação, nem capacidade de atribuir limites aos nossos direitos sobre tudo, sem o reconhecimento dos nossos limites, da nossa vulnerabilidade, da nossa mortalidade, da nossa falibilidade.
Somos convidados a um encontro com nós mesmos, não a uma simples superação intelectual da divisão entre natureza e cultura. É isso que está em jogo no que chamo, em Ética de la consideración, a consideração, que é o oposto da dominação, que é sempre uma tripla dominação: sobre os outros, sobre a natureza exterior a nós (ecossistemas, animais) e sobre a nossa própria natureza, ou seja, implica fundamentalmente reprimir a nossa natureza sensível, a nossa vulnerabilidade e a nossa finitude.
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“Os maus-tratos aos animais é uma expressão do mal e da nossa incapacidade de aceitar os outros”. Entrevista com Corine Pelluchon - Instituto Humanitas Unisinos - IHU