02 Novembro 2015
“Os animais são os ‘outros’. E os outros sempre inspiram as melhores reflexões éticas porque a ética é a inclusão do outro”, provocam os dois freis capuchinhos e professores de teologia.
Capa do livro de Luiz Carlos |
“Na segunda parte, o livro pergunta se a forma como tratamos os animais não humanos é a forma correta, boa, moral e eticamente justificada e, se não for a melhor forma, o que deveríamos fazer para cessar de causar terror, sofrimento e morte a um ser que compartilha com os humanos pelo menos duas condições básicas que lhe conferem igual consideração de interesse e direitos, a saber: eles sofrem e vivem uma vida e são sujeitos de uma vida que vale por si e não são meio para uma outra vida ou interesse”, exemplificam.
Em tempos de ofensivas cada vez mais amplas e variadas sobre o direito dos animais, que há muito deixaram de ser sacrificados apenas para a alimentação humana, mas são uma das “commodities” preferidas da indústria de cosméticos e da moda, o livro recoloca o debate em torno do tema. “Portanto, ética e filosoficamente, é preciso fazer valer a nossa condição de seres livres, isto é, capazes de dizer não. E, no caso, capazes de dizer não à indústria do sofrimento e da morte”, ponderam.
Luiz Carlos Susin é frei capuchinho, mestre e doutor em Teologia pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma. Leciona na PUCRS e na Escola Superior de Teologia e Espiritualidade Franciscana – Estef, em Porto Alegre. É também secretário-geral do Fórum Mundial de Teologia e Libertação. Dentre suas obras, destacamos Teologia para outro mundo possível (Paulinas, 2006).
Gilmar Zampieri, frade capuchinho, graduado em Filosofia pela Universidade Católica de Pelotas e em Teologia pela Escola Superior de Teologia e Espiritualidade Franciscana (Estef), com mestrado nas duas áreas na Pontifícia Universidade Católica de Porto Alegre. É professor de Ética e Direitos Humanos no Centro Universitário Lasalle de Canoas e de Teologia Fundamental na Estef.
O lançamento do livro A vida dos outros. Ética e teologia da libertação animal (São Paulo: Paulinas, 2015) ocorre na segunda-feira, 02-11-2015, a partir das 19 horas, na Praça Central de Autógrafos da Feira do Livro de Porto Alegre e pode ser adquirido no estande das Editoras Paulinas.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Em sentido amplo, do que trata o livro A vida dos outros. Ética e teologia da libertação animal? De que forma ele atualiza o debate ético acerca do tema?
Luiz Carlos Susin e Gilmar Zampieri - O livro trata, primeiramente, da relação dos homens com os animais. Relação que sempre foi cruel, mas com o incremento da indústria da carne, ovos, leite e seus derivados, com a indústria do couro, pele, com a indústria dos cosméticos e produtos químicos testados em animais, aumentou assustadoramente, a ponto de o prêmio Nobel de literatura J.M. Coetzee, em seu livro A vida dos animais (São Paulo: Companhia das Letras, 2002), sugerir uma instigante analogia entre o holocausto humano perpetrado aos judeus na segunda guerra mundial, e o holocausto animal imposto, diariamente, pelo homem aos indefesos e inocentes animais. A conclusão é que o termo “campos de concentração” é o que melhor define a nossa relação com os “outros” animais. A primeira parte do livro se debruça sobre esses “campos de concentração” (estimação, pesquisa, instrumentos, entretenimento, alimentação) mostrando como os animais, no atual estágio da indústria, são coisificados, sem consideração para com seus interesses e direitos.
Luiz Carlos Susin
Segunda parte
Na segunda parte, o livro pergunta se a forma como tratamos os animais não humanos é a forma correta, boa, moral e eticamente justificada e, se não for a melhor forma, o que deveríamos fazer para cessar de causar terror, sofrimento e morte a um ser que compartilha com os humanos pelo menos duas condições básicas que lhe confere igual consideração de interesse e direitos, a saber: eles sofrem e vivem uma vida e são sujeitos de uma vida que vale por si e não são meio para uma outra vida ou interesse. Nesse particular o livro resgata a história da ética, nos seus momentos e autores mais representativos, e faz ver como a temática dos animais tem sido posta e debatida. Tradicionalmente os filósofos justificaram o trato dos animais como coisa e propriedade do humano, sem valor inerente e, portanto, fora da comunidade moral, colocado no reino das coisas e não no reino dos fins em si mesmos. Essa postura hierarquizante e antropocêntrica culmina em Kant na conhecida fórmula: “O homem tem dignidade, tudo o mais tem preço”. Se o animal tem preço, então pode ser tratado como coisa e substituído por qualquer coisa e nisso não implica um erro do ponto de vista moral.
Novas visões
Hoje, porém, essa concepção já não faz sentido. Depois de Jeremy Bentham, Darwin, Peter Singer e Tom Regan, sustentar essa posição é, no mínimo, desinformação ou uma postura alheia e insensível com o que há de mais elevado moralmente. E o que há de mais elevado moralmente é justamente a proteção, compaixão, justiça, libertação e cuidado para com o mais frágil e vulnerável, inclusive os animais não humanos. Nesse aspecto impõe-se uma real conversão animal, ao lado da conversão ecológica proposta pelo Papa Francisco na Laudato Si’.
Debate ético
Gilmar Zampieri |
Nesse aspecto o livro abre um debate no campo teológico como, ao que se sabe, nunca tinha sido feito explicitamente, pelo menos no Brasil. Provocativamente, o subtítulo sugere o fazer teológico sob um novo enfoque, para além do ecoteológico que, a nosso ver, não dá conta de pensar a especificidade dos seres particulares sencientes e sujeitos de uma vida como são os animais.
IHU On-Line – Quem são os animais? Qual a questão de fundo que está por trás desta pergunta? De que forma ela se torna ética e filosoficamente um ponto crucial em nosso tempo?
Luiz Carlos Susin e Gilmar Zampieri - Os animais são os “outros”. E os outros sempre inspiram as melhores reflexões éticas porque a ética é a inclusão do outro. No âmbito humano, costumamos dizer que os outros são os diferentes, os não-eu, os de fora do círculo do eu, os mais distantes, os além da margem, os pobres etc. Fala-se, até mesmo, do outro totalmente outro. E diz-se que um ser humano é tanto mais ético e religioso, quanto mais for capaz de respeitar e se sacrificar pelo outro. Ora, não seria o caso de pensar os animais como os outros, verdadeiramente outros? Por isso o título pode soar provocativo: A vida dos outros.
Os outros, que são os animais, são muitos. Não infinitos, mas, certamente, incontáveis. Não há recenseamento de todos os animais que vivem na terra, debaixo da terra, no ar e nas águas. São incontáveis! Mas há uma conta que os órgãos governamentais conhecem e os defensores dos direitos dos animais também conhecem. Estima-se que assassinamos anualmente em torno de 60 bilhões de animais, para o nosso prazer na alimentação. Isso significa algo em torno de 180 milhões diariamente. Sete milhões por hora. Os números impressionam. Os números também têm peso moral. Não é a mesma coisa a morte de um e a morte de bilhões. Esses animais são criados em condições precárias, para não dizer cruéis. Esses animais vivem em campos de concentrações e sacrificados no altar do mercado que é insensível aos humanos e muito mais insensível à vida dos animais não humanos.
Os animais
Quando se pergunta quem são os animais, é preciso colocar a dimensão qualitativa e quantitativa. Bem sabemos da variedade que se esconde sob o nome genérico: animais. Animal é o mosquito, a mosca, a barata, o inseto mais imperceptível, o passarinho, o cachorro, o gato, o boi, o leão etc. Não podemos continuar com a postura especista seletiva que constituiu a moral tradicional. Amamos e cuidamos os cachorros e gatos, mas matamos e comemos sem sentimento de culpa, vergonha e indignação, o boi, a vaca, o carneiro, o coelho, o peixe etc. Como continuar sustentando essa postura?
Portanto, ética e filosoficamente, é preciso fazer valer a nossa condição de seres livres, isto é, capazes de dizer não. E no caso, capazes de dizer não à indústria do sofrimento e da morte que constitui a indústria da carne, ovos e leite, para dar um exemplo apenas.
IHU On-Line – Em termos teológicos e bíblicos, como se compreendeu historicamente a relação entre o ser humano e os animais (Gênesis 1:26-28 )? Qual o impacto da Laudato Si’ (LS 69) sobre a hermenêutica bíblica e como isso atualiza o debate?
Luiz Carlos Susin e Gilmar Zampieri - O texto bíblico está repleto de referências aos animais, da primeira à última página. Mas para ver o óbvio é necessário prestar atenção de forma diferente. A Escritura foi objeto de uma leitura viciada por, praticamente, os dois mil anos que se seguiram ao texto. Ela traz uma história da relação dos humanos com os demais seres vivos, sobretudo com os mais próximos, os animais. Nessa história está tanto a tragédia da relação de abuso - comer, sacrificar, idolatrar etc - como os ensinamentos que provêm dos próprios animais, o que é mais do que se imagina ao ler com atenção. O Papa Francisco, na Laudato si', insiste que é mais do que tempo de corrigir uma leitura antropocêntrica e arbitrária do célebre mandato de "dominar" sobre os animais que, na verdade, é governar no sentido ético, responsável. Além disso, o Papa leva mais adiante a compreensão de que os animais têm um valor em si mesmos, inerente às suas vidas, e não podem ser reduzidos a uso humano.
IHU On-Line – A partir de quando os animais passam a ser vistos como seres de direitos? De que forma isso coloca em questão o antropocentrismo exacerbado que surge a partir do Iluminismo?
Luiz Carlos Susin e Gilmar Zampieri - Por muito tempo, e ainda continuamos com essa mentalidade, pensamos que os animais só teriam direitos indiretos. Direitos indiretos que nos colocam deveres indiretos. Tanto Tomás de Aquino quanto Kant expressam essa concepção limpidamente. Eles dizem que não devemos maltratar ou matar animais não porque a eles devemos algum respeito por um valor inerente que nos obrigaria a não maltratar. Não. Segundo esses autores, e eles são a síntese de todo o antropocentrismo, não devemos maltratar os animais, porque em maltratando-os nos tornamos piores e desumanos. Não devemos ser cruéis com os animais, porque com isso nos tornaríamos insensíveis e propensos a cometer crueldade também com os humanos. O argumento é, pois, de deveres indiretos exatamente porque os animais não portam direitos. Isso mudou no século XX, através de vários autores, mas principalmente com Peter Singer, e mais definitivamente, com o filósofo americano Tom Regan. É inestimável a contribuição desses dois pensadores para a inclusão dos animais não humanos na roda do discurso e prática moral. A partir desses dois autores a ação de não maltratar e não matar muda de centro. Não é por nossa causa, é por eles mesmos.
IHU On-Line – Metodologicamente, como a Teologia de Libertação Animal aborda a questão de fundo em torno dos direitos dos animais?
Luiz Carlos Susin e Gilmar Zampieri - Se o título do livro pode parecer demasiado e provocativo, o subtítulo pode parecer pretensioso, inadequado e inoportuno. Mas é importante lembrar que o livro que levantou a poeira da nossa consciência moral foi exatamente o livro que se intitula Libertação Animal (Porto Alegre: Lugano, 2004), de Peter Singer.
Sabemos que a teologia da libertação opera com o método ver, julgar e agir, agora também incorporado até pelo Papa, como é o caso da Laudato Si’. O ponto de partida para uma teologia da libertação sempre será uma situação de opressão, escravidão, sofrimento, cruz. Lá onde não há cruz, não há porque insistir e proclamar a ressurreição e libertação. Onde há paz, bem-estar, vida plena, liberdade etc, aí acontece o reino e a glória. A libertação arranca da dor. A libertação inicia lá onde o sofrimento e morte se insinuam. É teologia porque o horizonte de juízo, avaliação e de olhar é da fé no sentido religioso, em nosso caso, com fonte bíblica.
A questão é que nunca se colocou explicitamente um enfoque teológico em que o sujeito seja a vaca, o boi, o cachorro etc. Até há uma ecoteologia da libertação com relativo relevo e produção teológica. A Laudato Si’ é um bom exemplo. Mas na ecoteologia, parece-nos, há um excesso de platonismo. Insiste-se, acertadamente, na necessidade de pensar o todo, as conexões, a integralidade. Acertada e corajosamente o Papa Francisco eleva em nível teológico e religioso a reflexão em torno da ecologia integral, pensando a necessidade do cuidado da casa comum de uma forma que une economia, política, ética, antropologia, religião, ciências e teologia.
O valor dessa reflexão e dessa metodologia é inestimável. Mas ainda não chega ao ponto de uma possível teologia da libertação animal. E sem uma teologia da libertação animal, a reflexão fica a meio caminho. E por quê? Porque os animais não compõem o meio ambiente, não são apenas parte de um todo, não são valiosos somente como espécie para a harmonia do todo. Não. Os animais são nossos irmãos. São nossos iguais, mesmo sendo os “outros”. São iguais no sofrimento e no desejo de viver livres, em estado de bem-estar, com saúde e respeito. Eles não são um produto, uma mercadoria na cadeia alimentar. Eles não são algo, são alguém. Se aceitarmos isso, então há um longo caminho de teologia da libertação animal a ser percorrido. O nosso intuito foi exatamente, além de revisitar as fontes filosóficas na sua dimensão ética, testar as fontes bíblicas para ver se é possível contar com a fé para uma mudança de mentalidade e de ação em relação aos animais. E a conclusão é que a acusação de que a tradição judaico-cristã é antropocêntrica e especista, não se confirma, quando a leitura bíblica for colocada numa ajustada hermenêutica.
IHU On-Line – Como Francisco de Assis ajuda a pensar a questão animal nos dias atuais? Que harmonias possíveis há entre o ser humano e os animais? De que ordem é tal desafio ético?
Luiz Carlos Susin e Gilmar Zampieri - Para compreender Francisco é necessário distinguir dois tipos de escritos: os dele mesmo, que são poucos, e o que depois se escreveu sobre ele. Francisco prefere deixar os animais viverem suas próprias vidas e, por isso, proíbe seus seguidores de terem animais de criação. Ele se recusa a utilizar animais até para seu encantamento. Ao invés de dispor dos animais, sugere que se deve estar disposto a "obedecer" os animais, se Deus assim quiser. Isso parece bobagem, mas, na verdade, é uma inversão da hierarquia em que os humanos sempre se colocam no topo da hierarquia da vida. Para ele, o mandato bíblico de governar é traduzido em "servir" inclusive os animais. Os textos poéticos coincidem todos no fato de que Francisco amava uma relação de reciprocidade com os animais, cada um falando a sua própria língua: ele pregava o evangelho e o louvor a Deus, e os animais gorgeavam, abanavam o rabo... uma convivência que antecipa o sonho de Isaías, a boa convivência entre humanos e animais no gozo do Reino do Messias.
Por Ricardo Machado
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Por uma teologia da libertação animal. Entrevista especial com Luiz Carlos Susin e Gilmar Zampieri - Instituto Humanitas Unisinos - IHU