24 Mai 2023
Atencioso, muito amável, Peter Singer me recebe por videoconferência, de sua Austrália natal. Antes de iniciar a entrevista, conversamos sobre o vínculo com Princeton, universidade onde ocupa a prestigiosa cátedra DeCamp, de Bioética, e onde fiz meu doutorado. Ah, esse gótico recente!, brinco, em relação aos edifícios do campus, que ele considera aconchegantes. “Mas o gótico antigo eu vivi em Oxford”, ressalta, recordando o lugar onde começou a se interessar pelo bem-estar animal, ainda como estudante de filosofia.
É que Singer, nascido em Melbourne, de pais judeus vienenses que fugiam do nazismo, acabaria se tornando um ícone da luta pelos direitos dos animais, a partir de 1975, quando publicou Libertação Animal, um clássico que deu a volta ao mundo e é considerado o livro que promoveu o movimento animalista.
Mais tarde, surgiram dezenas de volumes, entre os quais Ethics into Action (1999), o livro que nos ocupa, traduzido pela primeira vez ao espanhol graças à editora Plaza y Valdés, em parceria com Igualdad Animal, com o título Ética en acción: Henry Spira, el activista que doblegó a las multinacionales (2023).
Aqui, o professor conta a história do homem com quem uniu forças para combater os maus-tratos aos animais em inúmeras campanhas. Conversamos sobre essa obra essencial que oferece pistas sobre a necessidade de uma ação coletiva e que também é uma ode à amizade.
A entrevista é de Azahara Palomeque, publicada por La Marea-Climática, 23-05-2023. A tradução é do Cepat.
Este livro é uma homenagem a Henry Spira e, ao mesmo tempo, também fala sobre o seu trabalho. Para mim, talvez o mais importante de "Ética en acción" seja a proposta de conexões entre sua própria abordagem filosófica e o ativismo. Estou certa?
Sim, tem toda a razão. É uma homenagem a Henry, mas também um guia para ativistas, que é a melhor forma de homenagear Henry. Em primeiro lugar, porque ele era bom em traçar estratégias para conseguir avanços reais no movimento animalista, que há muito tempo já existia, desde o século XIX, mas não havia tido sucesso.
Henry costumava me dizer: essas organizações antivivissecção enviam fotos repugnantes de animais torturados para fazer você se sentir mal, e essa é a estratégia que usam. Depois, dizem: envie-nos mais dinheiro, doações!, e no mês que vem enviamos mais fotos horríveis de animais para fazer você se sentir mal novamente. Como se conquistará algo com isso?
Ele se preocupava em dizer que há coisas que podemos fazer. Concretamente, quando Henry soube que tinha câncer e não tinha muito tempo de vida, estava preocupado em espalhar sua mensagem de mudanças sociais para que outras pessoas pudessem usá-la. Esse era o seu maior desejo. Queria que eu escrevesse este livro porque sabia que eu faria o possível para transmitir sua mensagem. Então, você captou exatamente a dupla natureza do livro, uma homenagem a Henry e um guia para ativistas.
Considera que deveria existir pontes entre o trabalho acadêmico e o ativismo? Porque normalmente não se relacionam... Os ativistas estão nas ruas e os acadêmicos estão em suas torres de marfim. Neste livro, parece que você tenta vincular os dois grupos.
Sim, claro. Considero que buscava vinculá-los de uma maneira que os filósofos não tinham feito antes... O melhor exemplo de um grande filósofo e ativista, ao menos no mundo anglófono, é Bertrand Russell. Ele foi um importante filósofo, sobretudo na lógica, mas também em outras áreas, e foi um grande ativista na campanha pelo desarmamento nuclear. No entanto, não os relacionou.
De fato, em algum lugar de sua autobiografia, Russell diz: eu tenho duas linhas de trabalho, uma é a filosofia e outra o ativismo, mas não as via atuando juntas. Então, escreveu livros sobre questões éticas – desarmamento nuclear, moralidade sexual –, mas sem ser rigoroso, e também não publicou artigos acadêmicos a esse respeito.
Refiro-me a que, no passado, os filósofos escreviam sobre questões práticas, mas em algum momento do século XX pararam. Depois, a partir dos anos 1970, tentei escrever sobre a ética de alguns temas de uma forma que refletisse minha trajetória filosófica, mas sendo acessível a pessoas que não haviam estudado filosofia.
Considero que Libertação animal é um desses livros, provavelmente, a primeira coisa relevante que fiz. Tem uma base filosófica, mas no resto é mais descritivo. É importante juntar as duas tarefas. Espero que meu volume sobre Henry faça algo parecido.
Explica as campanhas contra o Museu Americano de História Natural, a marca de cosméticos Revlon e o método de testagem com animais DL50. Considera que essas lutas falam às do presente? Podemos aprender com elas ou ficaram obsoletas?
Penso que podemos aprender com elas. Henry ficaria encantado em ver que muitas organizações, agora, utilizam suas táticas. Especificamente, estão dirigidas às multinacionais na área de alimentos, como a agricultura industrializada, na qual Henry trabalhou mais tarde em sua carreira… Sendo assim, podemos dizer que algumas dessas campanhas que ele iniciou continuaram após sua morte.
Um exemplo seria a utilizada com o McDonald’s. Eu estava com ele em Nova York quando a desenvolveu, e as pessoas lhe diziam: “Você nunca conseguirá fazer com que o McDonald's se torne vegano!” E Henry respondia, é claro, o McDonald’s não se tornaria vegano, mas caso você consiga fazer com que uma empresa assim mude uma pontinha, é melhor do que abrir um restaurante vegano em Nova York, terá mais impacto.
Lembro-me dele pensando cuidadosamente no que iria pedir ao McDonald’s... E pediu que seus matadouros fossem submetidos a inspeções por parte de alguém preocupado com o bem-estar animal. Foi assim que conseguiu que Temple Grandin se envolvesse (...). Henry conseguiu avançar, melhoraram as condições dos animais, não só nos matadouros do McDonald’s, mas basicamente em todo o país. Houve progressos, ainda que pequenos.
Após sua morte, houve outras organizações que abordaram o McDonald’s e o fizeram parar de usar ovos de galinhas engaioladas. Isso é enorme, porque a vida de uma galinha é muito pior dentro de uma gaiola do que fora, e o McDonald’s usava cerca de dois bilhões de ovos por ano. Desde então, as campanhas que Henry criava ainda continham sendo utilizadas. O básico permanece, alcançando resultados.
Eu tinha justamente uma pergunta sobre os matadouros. Recentemente, nosso ministro do Consumo, Alberto Garzón, deu uma entrevista ao The Guardian criticando as macrogranjas. Suas palavras foram puro senso comum, mas houve uma grande reação contra, pois as pessoas querem continuar comendo carne. Até o presidente do governo chegou a dizer que gostava de “chuleta ao ponto”. Por que ainda relutamos tanto em aceitar que não deveríamos comer carne, ou ‘tanta’ carne? Não aprendemos a lição, nos anos 1970?
Penso que subestimamos o quanto as pessoas são rígidas com seus hábitos alimentares e como é difícil mudá-los. Parece-me ridículo que digam… queremos comer carne e, como consequência, não deveríamos mudar os matadouros. Considero que os matadouros podem ser mudados. Não será da noite para o dia, mas podemos promover melhores condições de vida para os animais, mesmo que acabem sendo sacrificados. E podemos introduzir alimentos de origem vegetal com gosto de carne, que são preparados como a carne…
Há muita pesquisa e investimentos em alimentos vegetais e em carne cultivada a partir de células animais, em vez de animais inteiros. Se as pessoas querem comer carne – eu não sinto a menor vontade –, então, que seja essa, no lugar do sofrimento dos animais e da emissão de todos aqueles gases do efeito estufa. Penso que, ao final, eliminaremos a carne, mesmo em países com uma forte cultura carnívora, e a Espanha parece ser um deles…, mas levará tempo.
Avalia que estamos mais conscientes dos direitos dos animais, agora, com a aceleração da mudança climática? Por exemplo, em apenas 50 anos, aniquilamos 70% da vida selvagem. Essa perda de biodiversidade tem efeitos climáticos, além das consequências para a vida animal. Saber disso ajuda na luta animalista?
Bem, talvez, se as pessoas entenderem as conexões… Primeiro, entre a carne e a mudança climática, que é responsável por muita perda de biodiversidade. Conforme os climas forem mudando e os animais não conseguirem uma adaptação ou uma mudança para outras regiões… perderemos muitos. Depois, vem a questão do pastoreio e do cultivo de alimentos para os animais, como a soja ou grãos, responsáveis pela derrubada de florestas.
Por exemplo, a principal causa individual da devastação da Amazônia é a alimentação do gado, seja para receber espaço para pastar, seja para cultivar soja para alimentá-lo. Das safras mundiais, 77% são destinadas à alimentação de animais. Podemos pensar em quantos hectares de terra poderiam ser devolvidos à vida silvestre, destinados a proteger a biodiversidade, se não estivessem sendo utilizados para alimentar o gado.
Talvez algumas pessoas não se importem com o sofrimento animal, mas, sim, importam-se com a perda de espécies, de florestas nativas e de biodiversidade. Para muitas pessoas, esse é um motivo de peso para deixar de comer carne.
Peter, você tem 76 anos. Gostaria que você me contasse como seu pensamento sobre os direitos dos animais evoluiu, ao longo deste último meio século, e se há algo que você aprendeu ou percebeu, que não esperava.
Em parte, percebi o que lhe disse há alguns minutos: mudar o que as pessoas comem é mais difícil do que eu esperava. Pensei que os argumentos eram tão sólidos e claros que... tinha a esperança de que hoje, 50 anos depois de Libertação Animal, as macrogranjas desapareceriam, pois as pessoas parariam de comprar seus produtos. Infelizmente, isso não aconteceu e é decepcionante.
Mas, por outro lado, o movimento animalista é muito mais forte do que há 50 anos, porque não existia realmente, só havia sociedades preocupadas com a prevenção da crueldade contra os animais, basicamente concentradas em cães, gatos, cavalos... e depois, algumas organizações antivivissecção antiquadas. Então, formou-se um grande movimento mundial, particularmente forte na Europa.
No próximo dia 7 de junho, falarei em Bruxelas, no Eurogrupo para o Bem-Estar Animal. Isso me dá esperança de que as coisas possam mudar. De fato, a Europa e o Reino Unido provavelmente sejam os precursores neste âmbito. Algumas partes dos Estados Unidos, como a Califórnia, também têm leis progressistas a esse respeito. Mas outras partes dos Estados Unidos, e alguns países como a China, ainda nem começaram a pensar no bem-estar animal.
Agora, que você menciona cães e gatos... Uma coisa que notei no livro é que Henry baseava seu trabalho em uma espécie de hierarquia animal: vamos proteger os gatos e os coelhos porque são muito fofos, mas é difícil fazer uma campanha a favor das baratas ou outros insetos. Qual é a sua opinião acerca dessa hierarquia? Por exemplo, na Espanha, a nova Lei de Bem-Estar Animal excluiu os cães de caça, mas não os animais de estimação.
É preciso deixar algo claro: Henry não pensava que existisse uma hierarquia segundo a qual os gatos e os coelhos brancos valessem mais do que os porcos e as vacas. Henry só queria aproveitar o fato de que as pessoas estavam preocupadas com esses animais. Por isso, escolheu o Museu de História Natural, porque estavam usando gatos, e depois passou aos testes cosméticos em coelhos.
Depois, o teste LD50 foi realizado principalmente em ratos e camundongos. Às vezes, em cães também, mas a maioria eram ratos e camundongos, e Henry nunca disse que deveríamos interromper o LD50 em cães e continuá-lo em roedores. Era muito mais uma tática para conseguir envolver as pessoas e depois chegar a outros animais que não contavam com opiniões positivas, como de fato aconteceu. Mais tarde, Henry passou a se ocupar dos animais de granja e fez campanhas sobre os frangos. Acredito que a percepção geral dos animais de granja melhorou um pouco.
Mas você mencionou as baratas e… bem, essa é a minha opinião, não posso falar por Henry, embora considero que concordaria com o fato de que mesmo que se possa fazer as pessoas sentirem compaixão pelas baratas, não está claro se deveriam, pois não sabemos realmente se as baratas sentem dor. No entanto, penso que podemos estar certos de que os vertebrados sentem dor, e os cefalópodes também, como os polvos e lulas. Por certo, sei que há planos para construir uma horrível granja de polvos nas Ilhas Canárias.
E depois existe a recente lei britânica sobre seres sencientes, que inclui lagostas e caranguejos... Contudo, agora, isso é o máximo que podemos ir com segurança. Sobre os insetos realmente não sabemos. Então, há uma razão: não exatamente uma hierarquia de status moral, mas, sim, a garantia de que se esse ser é capaz de sentir dor, torna-se prioridade tentar reduzir tal dor.
Quando Henry estava morrendo com câncer, disse-lhe algo que aparece desse modo no livro: “As pessoas querem ter a sensação de que sua vida serviu para algo a mais do que consumir produtos e gerar lixo”. Toda uma filosofia de vida... Propõe que sejamos como Henry?
Proponho que pensemos em nossos valores e consideremos o que realmente importa. Se pararmos e fizermos isso, a maioria de nós perceberá que o quanto consumimos e produzimos de lixo não serve para medir o quão exitosas e gratificantes nossas vidas são. Esse sentimento de que vivemos com algum propósito, de que vivemos ao lado de quem faz do mundo um lugar melhor, buscando ajudar os oprimidos e desfavorecidos... isso é muito importante.
Acredito que faz parte da citação onde Henry diz algo assim: Acordo todos os dias com vontade de ir trabalhar e fazer o que estou fazendo. Para ele, era revitalizante. Eu concordo com isso. Então… sim, quero que as pessoas pensem em seus valores. Não posso impô-los, mas acredito que se mais pessoas parassem e refletissem, iriam na direção que Henry mencionava.
Tenho conversado com alguns de meus alunos sobre esse assunto. Há os que me dizem: estive em sua aula de Ética Prática, anos atrás... dedico-me a isto agora, você teve uma grande influência sobre mim. Isso é sempre agradável.
Uma última pergunta, Peter: como você percebeu que devemos desbancar o antropocentrismo, apagá-lo do topo de nossos ideais?
Eu era um estudante de pós-graduação em Oxford... Tinha 24 anos, interessava-me por filosofia e estava estudando ética, mas nunca havia pensado que os animais representassem um problema ético. Tinha sido muito ativo nas campanhas contra a Guerra do Vietnã, porque a Austrália enviou tropas para lutar com os estadunidenses. Até certo ponto, tinha me envolvido no movimento pelos Direitos Civis, e também a favor do direito ao aborto, que estava começando na Austrália.
Essas eram grandes questões morais, mas nunca havia considerado os animais assim, até conhecer um estudante canadense que era vegetariano. Perguntei-lhe por que era vegetariano. Era raro encontrar alguém naquela época, e a maioria pensava que [o vegetarianismo] fazia bem à saúde, ou eram índios que o praticavam por questões culturais e religiosas. Contudo, a resposta do canadense foi algo assim: não acho justificável a forma como tratamos os animais para transformá-los em carne. Era uma resposta tão simples e direta que eu tive que dizer… Está justificado? Por que estaria?, nunca faríamos isso com os humanos…
E comecei a ler alguns filósofos. A maioria ignorava o assunto, e os que falavam a seu respeito diziam coisas verdadeiramente absurdas. Aristóteles dizia: “Os menos racionais existem para servir aos mais racionais”, e assim justificava utilizar animais para nossos propósitos. Para São Tomás de Aquino, tudo era um presente de Deus. No Gênesis, os animais não têm alma. E Kant dizia que não eram autônomos (não explicava a razão) e que seu sofrimento não contava.
Contudo, Bentham afirmou que a questão não era se podiam raciocinar ou falar, mas se podiam sofrer. E, então, eu disse: sim, essa é a questão. Foi a partir desse momento que comecei a ler e pensar a respeito de tudo isso. Como você bem disse, é difícil destronar o antropocentrismo.
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“Mudar o que as pessoas comem é mais difícil do que eu esperava”. Entrevista com Peter Singer - Instituto Humanitas Unisinos - IHU